por Astier Basílio
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Se Rubem Fonseca tiver preservado a máquina de escrever herdada do pai português, uma Underwood, provavelmente terá sido nela que escreveu Feliz Ano Novo, conto que deu nome ao sexto livro. A obra chegou às livrarias do país no começo de outubro de 1975.
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Quem folhear os jornais da época vai se deparar com dois personagens, José Rubem Fonseca e Rubem Fonseca. Ambos dividindo a mesma a assinatura. Um deles, o José Rubem Fonseca, frequentava as colunas sociais. Ia a jantares com pessoas importantes. Participava de solenidades. Na função, chegou até a estar com presidentes da República, como foi o caso do marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, com quem José Rubem Fonseca se encontrou ao integrar a comitiva de recepção da Light, na cidade de Lajes, em 1967.
Como bem se escreveu no Correio da Manhã, na edição de 30 de abril de 1969, quando o executivo José Rubem Fonseca integrou o comitê para arrecadar fundos para a Seleção Brasileira, prestes a ir a Copa do México, tratava-se de um homem que sabia tocar sete instrumentos. “Agora que aceitou tocar um oitavo, todos esperam que ele levante […] um tutu tão rápido quanto aquele que a Light conseguiu em sua espetacular venda de ações”.
O outro é conhecido de todos que amam literatura. Rubem Fonseca. Tão logo estreou, em 1963, com o livro de contos Os prisioneiros, trouxe um ar novo à prosa brasileira e ao longo do tempo criou uma legião de epígonos e seguidores. A consagração da crítica foi unânime. Era o que melhor se produzira em nossas letras desde Guimarães Rosa.
Os dois personagens, José Rubem Fonseca e Rubem Fonseca, de modo mais ou menos intenso, conviveram juntos, dividindo as páginas dos cadernos de cultura e de política ou coluna social, praticamente até 1981.
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O executivo e o escritor
1976. Era por volta do Natal. Feliz Ano Novo havia um ano figurava entre os livros mais vendidos em todo o país. Um amigo do Ministro da Justiça, Armando Falcão, ficara horrorizado após folhear o livro que o filho lera. Foi assim que teve início um dos episódios mais significativos da carreira do escritor. Naquele ano, o órgão censor da ditadura houvera examinado 219 livros, vindo a proibir 74. Um deles era de Rubem Fonseca.
Muitos anos depois, no longínquo 1994, o episódio do arbítrio autoritário foi evocado como justificativa e argumento de um possível afastamento do escritor com o regime militar. Mais do que um tema sensível, era um dos poucos motivos que tirava o autor de seu anonimato. Àquela altura, José Rubem Fonseca, o executivo e personagem frequente em atividades sociais, saira definitivamente de cena e dera lugar de vez ao homem das letras Rubem Fonseca: recluso, que não gostava de dar entrevistas, nem se deixava fotografar.
O sumiço público vai se evidenciar a partir dos anos 1980, ocasião em que Rubem Fonseca saiu do último cargo público que ocupava, a presidência da Fundação Rio, entidade da qual participara desde 1979 e da qual houvera sido fundador. Justiça seja feita, o escritor nunca, em nenhum momento, foi dado a conversar com a imprensa.
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O estudante fala com a imprensa
Vasculhando jornais antigos, porém, encontramos duas declarações suas. A primeira, em 1946, quando era segundanista da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. O universitário, que no ano anterior, assinara um manifesto virulento a favor da candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes, da UDN, contra os “desmandos da ditadura policial-fascista”, de Getúlio Vargas, dava sua opinião sobre um comício, em favor da democracia a ser realizado na semana seguinte.
“Acho magnífica a idéia da realização desse comício. Os estudantes sempre lutaram pelos verdadeiros princípios da democracia e nada mais justo que manifestemos perante o povo, o nosso firme propósito de defender os ideais democráticos que sempre possuímos.”
A segunda foi quando regressou de um curso feito nos Estados Unidos. Falava como membro da polícia. Propunha soluções para os problemas da delinquência brasileira. Mas, é melhor não nos apressarmos. Voltaremos a este episódio mais adiante. É preciso não se perder nas armadilhas da memória.
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O episódio do IPÊS
Voltemos, pois, ao episódio da censura. Outro escritor, Edilberto Coutinho, escreveu um matéria especial para o jornal O Globo. Era um sábado. 18 de outubro de 1975. No alto do reportagem, no qual vários amigos falavam em nome do escritor, uma declaração muito significativa de Rubem Fonseca: “O que não está nos livros, eu não soube ou não quis dizer”.
O escritor deve mais ver do que ser visto. A fama subtrai, portanto, o lugar de observador privilegiado. Era este o argumento de Rubem Fonseca para manter-se afastado dos holofotes. Porém, vez por outra, nos anos 1970, o escritor não se furtava a participar de debates e atividades públicas. Um exemplo? Em 15 de setembro de 1975, participou no teatro Casa Grande de um encontro sobre literatura brasileira atual ao lado de vários escritores como Roberto Drummond, Sérgio Sant’Anna, entre outros. A moderação foi de Antonio Houaiss.
O episódio mais espinhoso da longa biografia de Rubem Fonseca foi, sem dúvidas, sua participação no Instituto de Pesquisas Sociais – o IPÊS. Quem melhor estudou este assunto foi a professora Aline Andrade Pereira. Em artigo, ela recorda o fato de que Rubem Fonseca participava de eventos, palestras e outras atividades da vida literária, mas exclusivamente no exterior. O que faz “[…] levantar a suspeita de que o silêncio em território brasileiro se deva à possibilidade de certas partes do seu passado virem à tona – possivelmente a única parte do seu passado que ele prefere ocultar é a passagem pelo IPES”.
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As relações com a ditadura
É preciso evocar as circunstâncias históricas nas quais foi escrito o artigo “Anotações de uma pequena história”, no qual Rubem Fonseca, em gesto raro, falou abertamente sobre seu passado. O texto foi publicado em 27 de março de 1994. Integrou um especial feito pela Folha de São Paulo relativo a efeméride dos 30 anos do golpe militar de 1964.
Estávamos no último ano do governo do presidente Itamar Franco. A percepção sobre aquele período do passado recente da política brasileira era completamente diversa da que se tem hoje. Basta que sejam citados alguns títulos dos textos publicados: “Nascidos em 31 de março rejeitam política”, “Minha geração é desligada”, “Não me ligo nessas coisas”, “Nem tudo foi treva e martírio na cultura” e “Debate revela que o tempo amorteceu ódios e afetos criados em 64”.
É de forma direta e objetiva, marca de seu estilo, que Rubem Fonseca começa seu artigo. “Decidi escrever estes breves apontamentos para satisfazer a curiosidade de algumas pessoas que me perguntam por que teria eu participado, há mais de 30 anos, como escritor, da agremiação empresarial conhecida pela sigla Ipes”.
O IPÊS, fundado em 1962 e em funcionamento até 1972, era uma organização que agregava empresários e militares. A instituição, que atuava de várias maneiras, uma delas por meio de propaganda ideológica veiculada em filmetes, é considerada pelos estudiosos como peça importante no jogo político que desencadeou no golpe militar.
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O afastamento (?) após o golpe
O pomo da discórdia se dá na questão: teria o escritor saído do IPÊS quando da conflagração do regime autoritário? Rubem Fonseca é categórico: “Eu afastei-me completamente do Ipes e nunca me aproximei do novo governo, nem daqueles que o sucederam”.
Mas este fantasma não foi enterrado. E fez o escritor sair da reclusão e enviar uma nota de esclarecimento à Rede Globo, em 2001. Isso ocorreu após a entrevista da jornalista Denise Assis por ocasião do lançamento de seu livro Propaganda e Cinema a Serviço do Golpe – 1962/1964. Ela havia constatado, por meio de pesquisa, que era de Rubem Fonseca a autoria do roteiro de 14 filmes de curta-metragem produzidos pelo IPÊS.
A nota de Rubem Fonseca ao programa Fantástico diferia muito do que houvera escrito antes à Folha. Apenas, acrescentava que não se lembrava ter redigido os roteiros. Havia, sim, participado do Instituto. Mas, ratificou, saiu dele no dia do golpe. Em artigo, publicado após a morte do escritor, Denise conta que no dia do lançamento do livro, um senhor lhe entregou uma pasta na qual continha a ata de encerramento do IPÊS. E lhe disse: “Ele ficou lá o tempo todo”.
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Registros desmentem escritor
Uma consulta aos jornais antigos desmente a versão de Fonseca e ratifica a de Denise Assis. Correio da Manhã, 21 de agosto de 1964. Cinco meses após o golpe. Cinco meses após, supostamente ter se afastado do IPÊS, o nome de “José Rubem Fonseca” é citado. Mais do que isso. Sua função é informada. “O IPES -Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais está sendo reestruturado para uma nova etapa. A Comissão Diretora, sob a presidência do sr. Haroldo Polland reuniu-se para esse fim […] O sr. José Rubem Fonseca focalizou a situação do setor editorial, a seu cargo, sugerindo providências […]”.
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Esta não é a única referência. 14 de dezembro de 1964. Oito meses após o golpe. O Correio da Manhã traz outro informe sobre o IPÊS, que “está elaborando, há cerca de três meses, dois estudos sobre inflação no Brasil e os fatores positivos e negativos de nosso desenvolvimento econômico […]. A comissão Diretora do IPÊS – GB [Guanabara] composta dos srs. Haroldo Poland, Glycon de Paiva, […] José Rubem Fonseca […], examinou aqueles dois trabalhos em elaboração. Pretende editá-los, oportunamente […]”.
Teria o escritor sido traído pela memória? Não. Há uma outra ata. Esta publicada em 1971. Um ano antes da dissolução do órgão. Sete anos após o início da ditadura militar. O documento foi publicado na edição de 17 de abril do jornal Diário de Notícias. É um informe no qual consta a votação do Conselho Orientador, aprovado por unanimidade, do qual constavam 40 pessoas.
Além de Rubem Fonseca figuravam na lista Antônio Galloti, que trabalhou com o escritor na Light, empresa por este presidida. Outro ilustre nome integra a lista dos conselheiros. O do general Golbery do Couto e Silva, um dos personagens mais importantes do regime militar.
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Mas e a censura?
Tão logo escreveu que saíra do IPES, Rubem Fonseca rememorou o episódio da censura de Feliz Ano Novo. “Influentes políticos e autoridades do governo militar declararam publicamente que, além de ter meu livro proibido, eu devia ser preso por minhas ‘atividades imorais, subversivas e criminosas’.”
Ao que se conhece, o único político a bravatear que o escritor deveria ser preso não era assim tão influente. Um senador biônico do Rio Grande do Norte de nome Dinarte Mariz. Em 7 de janeiro de 1977, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, o político nordestino afirmou, sim, que o escritor deveria ser preso. Porém, a contrariedade do senador em relação ao romance era de ordem moral e não de ordem política. Cogitou ler trechos na tribuna do senado para embasar seu argumento, mas foi dissuadido por colegas. “É pornografia baixa”.
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Dinarte Mariz disse: “Quem escreveu aquilo deveria estar na cadeia e quem lhe deu guarida também”. E não foram poucos os que abertamente defenderam Rubem Fonseca. Na véspera de Natal de 1976, o principal colunista político do país, Carlos Castello Branco, escreveu no Jornal do Brasil: “Condenar como pornógrafo um dos melhores escritores brasileiros da atualidade premiado inclusive pelo Governo de Brasílio já em pleno período revolucionário, é repetir um erro monótono no qual a incompetência oficial tem incorrido sistematicamente ao longo dos tempos em diversos países”.
Um manifesto foi organizado com centenas de assinaturas de escritores e entregue ao presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter. O esquerdista Jorge Amado ligou para oferecer solidariedade. A batalha seguiu até 1989. Uma ação ordinária foi movida por Rubem Fonseca.
No início, advogado no processo foi o jurista Clóvis Ramalhete mais tarde convidado pelo Presidente João Figueiredo para a Consultoria-Geral da República. O juiz federal da 1a Vara convidou o crítico Afrânio Coutinho para atuar como perito. O parecer foi de que Rubem Fonseca não era um autor pornográfico.
O irônico de tudo é que o professor Oswaldo Quinsan, assessor adjunto da Secretaria de Imprensa da Presidência da República houvera distribuído, como forma de presente de natal em 1975 aos profissionais credenciados em seu gabinete, conforme registrou reportagem da Revista Veja, publicada à época.
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Falando pelos amigos
A melhor reportagem sobre o passado como policial de Rubem Fonseca foi escrita por Mario Cesar Carvalho, que foi ao Rio de Janeiro e cascavilhou os arquivos das delegacias e escreveu “A verdadeira história policial de Rubem Fonseca”. Isso chamou atenção da já citada pesquisadora Aline Andrade Pereira. A ela o jornalista deu uma informação importante. O autor dava entrevistas, sim. Porém o fazia através de amigos. “[…] Mas pede para que seja publicada como se fosse uma matéria da qual ele [Rubem Fonseca] não tivesse conhecimento. Dessa forma, mantém o domínio sobre as versões de si e, concomitantemente, se preserva de indesejáveis perguntas sobre o seu passado, mantendo a fama de recluso”.
Vários amigos, entre os quais, Cícero Sandroni, serviram de fontes para uma reportagem de fôlego publicada na revista Bravo! com o título “Rubem Fonseca – o personagem”. Saiu em 2009 e foi assinada por Tiago Petrik, Malu Porto e João Gabriel de Lima. Algum dos amigos deve ter soprado aos repórteres mais um argumento, que foi incorporado ao texto, como fato fosse. “Quando a Light foi estatizada pelos militares, ele foi um dos primeiros a perder o emprego”.
Tudo indica que se tratava de mais um esforço de afastar a imagem do contato com os militares. O fato é que a estatização da Light ocorreu em 27 de dezembro de 1978. A saída de Rubem Fonseca da empresa só veio ocorrer quase meio ano depois. Em 1 de junho de 1979, notinha do jornal Tribuna da Imprensa traz a informação. “Waldemar Barros Filho assumiu o cargo de Gerente de Comunicação Social da Light – Serviços de Eletricidade – substitui o escritor José Rubem Fonseca que agora presta serviços à Secretaria Municipal de Educação”.
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Cargos de confiança no governo militar
Embora a censura, em 1976, tenha sido brandida como argumento de evidência de afastamento com os governos militares, isso não impediu Rubem Fonseca de ser nomeado, no ano seguinte, como membro do Conselho de Cultura, do Rio de Janeiro, que na ocasião tinha como chefe do executivo, Faria Lima, que houvera sido indicado pelo general Ernesto Geisel. Era o que se chamava à época de “governador biônico”.
Durante a ditadura militar, os prefeitos das capitais também eram escolhidos sem a participação popular, mas por indicação dos governadores. Em 1979, o chefe do executivo municipal não se importou com o fato de Rubem Fonseca ter sido censurado e o convidou para integrar sua administração.
A imprensa à época não esqueceu essa ambivalência. Vejamos o que foi escrito em 26 de abril de 1979, no Jornal do Brasil: “O autor do livro Feliz Ano Novo, proibido pelo ex-Ministro da Justiça, Sr. Armando Falcão, por conter ‘matéria contrária à moral e aos bons costumes’, escritor e jornalista José Rubem Fonseca, será o novo diretor do Departamento Geral de Cultura da Secretaria Municipal de Educação, atendendo a convite pessoal do Prefeito Israel Klabin”.
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Ao assumir esta função no município, todavia, Rubem Fonseca se desligou do Conselho de Cultura.
Há que se acrescentar, porém, no ano anterior, houve mudança na chefia do executivo no Rio de Janeiro. As eleições, feitas pelas Assembleias Legislativas, eram indiretas. O MDB ganhou sua única eleição durante todo o regime militar com Chagas Freitas, que, como a legenda que comandava em nível regional, não antagonizava com o regime. Tanto é que foi do Rio de Janeiro o único caso em que a ditadura escolheu nas fileiras rivais um senador biônico. Naquela mesma eleição de 1978, “Amaral Peixoto foi eleito senador, tornando-se assim o único emedebista a assumir uma cadeira no Senado por via indireta”.
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A entrevista como delegado
Agora é o momento de mostrar o que pensava Rubem Fonseca, em 1955, recém chegado de uma viagem aos Estados Unidos, a qual fora como comissário de polícia fazer treinamentos. A conversa foi com o jornalista Hélio Rocha, do jornal Diário da Noite, assinava a quarta reportagem de uma série. O título: “Jardim de infância do crime – os anjos de cara suja atacam ao anoitecer”. O futuro escritor foi assim apresentado: “Um dos componentes da missão oficial do governo brasileiro aos Estados Unidos onde foi estudar os métodos modernos de combate à criminalidade é o professor José Rubem Fonseca, estudioso de sociologia criminal”.
Naquele momento, o escritor não se desligara da polícia, mas obtivera uma licença, em ato da presidência da República, para continuar atuando como professor na Fundação Getúlio Vargas. “A missão da Polícia não deve ser apenas reprimir o crime, mas, também, de analisar suas causas e os fatores que levam o homem a delinquir, procurando removê-los numa conjugação de esforços onde atuem vários setores de uma coletividade”.
A experiência nos Estados Unidos ofereceu uma espécie de modelo ao jovem Rubem Fonseca, então com 30 anos. Uma das maneiras, portanto, de aperfeiçoar a polícia brasileira seria a criação de “cursos intensivos de atualização para os servidores que não prestaram exames, tudo isso nos moldes da técnica mais avançada como se processa nos Estados Unidos”.
Não só o aparato oficial o impressionou. Mas a sociedade local. “Já na parte referente ao combate à delinquência juvenil existe uma impressionante conjugação de esforços da sociedade norte-americana reprimindo o crime na sua fonte, afastando assim os fatores criminogenéticos na base do Instituto de Controle da Delinquência que estuda além das causas e os efeitos os meios de combate”.
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O esforço da invenção
O mais próximo que o autor chegou em falar de sua vida foi em 2014, quando publicou o livro José, obra no qual refere-se a si mesmo em terceira pessoa. O irônico de tudo é que a obra foi catalogada como ficção. Talvez, numa estratégia para contornar os temas indesejáveis, Rubem Fonseca optou por escrever, da infância até os anos em que atuou como advogado.
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Em José, logo nas primeiras páginas, o autor fala em memória e esquecimento. E diz: “todo relato autobiográfico é um amontoado de mentiras — o autor mente para o leitor, e mente para si mesmo”. O jogo de esconde-esconde entre vida e ficção deflagrou-se praticamente toda sua obra, disposta em 30 volumes.
Ao recordar os tempos de advogado, escreveu em José: “A maior parte dos seus clientes era de gente pobre, negros na maioria, que não tinham dinheiro para lhe pagar”. É rememorada a inusitada ocasião em que um cliente pagou-lhe com uma galinha.
O episódio foi mencionado em momento anterior, no romance Agosto, de 1990. O comissário Mattos, espécie de alter-ego de Fonseca, o recorda: “[…] A pobre mulher havia decidido que precisava pagá-lo de alguma forma. Lembrava-se da cara satisfeita da mulher quando lhe dera a galinha, viva, embrulhada em papel de jornal, com as pernas presas por um barbante”.
Não é esta a única passagem na qual situações ocorridas com escritor são transferidas ao comissário Mattos. “Ao se formar em direito, quando ainda não entrara para a polícia, Mattos fora trabalhar como assistente do defensor público e representara um pobre diabo envolvido com uma quadrilha de falsários. Galvão era o advogado do chefe da quadrilha. O único absolvido fora o cliente de Mattos”.
A história é verdadeira. Foi o Diário de Notícias, na edição de 18 de março de 1949, quem trouxe, sob a manchete “Interrogada a segunda quadrilha de falsários”, a informação de que “[…] O juiz da 7ª Vara Criminal vem nomear os advogados Carlos D’Eça e José Rubem Fonseca, defensores de Orlando Soares Filho denunciado […] por ter introduzido em circulação cédulas falsas […]”.
Rubem Fonseca escreveu em José que “se alguma coisa foi esquecida, ele [José] se esforçou para que nada fosse inventado”. Poderíamos tomar este trecho como paráfrase e ampliar numa visada sobre como o escritor protegeu sua biografia e acrescentar que aquele não foi seu único esforço. O escritor esforçou-se também para que algumas passagens de sua vida fossem esquecidas.
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