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O mais antigo exemplar do romance latino a sobreviver até os nossos dias, ainda que de forma fragmentária, o Satíricon de Petrônio foi escrito por volta de 60 d.C., no período do imperador romano Nero. Narrando as aventuras de Encólpio, seu amante Ascilto e o servo Gitão, que formam um tumultuado triângulo amoroso e se metem em uma série de confusões para pagar uma dívida ao deus Priapo, o livro é uma grande sátira à caótica civilização romana, ao mesmo tempo em que registra de forma ferina as relações entre os diferentes estratos sociais da época.
Tudo é impreciso quando se trata de Petrônio Árbitro, a quem a tradição atribui a autoria do Satíricon: personagem da política romana sob Nero, chegou a cônsul e chefe de cerimonial — elegantiae arbiter — no palácio do imperador, antes de ser obrigado a cometer suicídio em 66 d.C. por envolvimento numa conspiração. Seja como for, uma coisa é certa: a prosa do Satíricon não tem nada de vago ou de impreciso, pródiga que é de traços fortes, detalhes argutos e alusões ferinas.
Convidando seus leitores a um riso sem cerimônias, Petrônio lança-os no meio do caos plebeu e mundaníssimo da Roma imperial, que se descortina ao sabor das cambalhotas do enredo. Seus personagens são de toda origem e de vária plumagem, de retores a gladiadores, de prostitutos a novos-ricos, cada um deles dotado de voz própria, crassa, lépida. Andam todos às voltas com o desejo e a ambição, motores centrais desse universo — e, vez por outra, também com a nostalgia e a melancolia. Têm todos, sobretudo, que se haver com a escrita cômica e paródica de seu autor, que não poupa nada nem ninguém — e que faz do Satíricon uma das obras centrais da literatura latina e — por que não? — do romance ocidental.
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No Brasil, a Editora 34 lançou uma belíssima edição do Satíricon, com tradução, introdução, posfácio e notas de Cláudio Aquati, e com textos em apêndice de Tácito, Marcel Schwob e Raymond Queneau. Em nossa parceria com a 34 — a quem agradecemos profundamente, personificando o belo trabalho em Amanda Viana —, trazemos ao leitor do Estado da Arte o ensaio de Raymond Quenau.
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Satíricon
Raymond Queneau
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A “mentalidade primitiva”, que florescia no período em que eu me preparava na Sorbonne para obter o diploma de Moral e Sociologia, e já era então contestada, hoje é um tiro que saiu pela culatra. Numa época em que os progressos da ciência — da possibilidade de desintegrar a Terra à realidade das máquinas capazes de “aprender” — parecem alçar o homem moderno mil côvados (um pouco mais alto que a Torre Eiffel) acima do mais recente de seus ancestrais, o tão ridículo e tão querido homo 1800us, esse tal homem moderno, ao estudar seus semelhantes, antigos e contemporâneos, só se convence da unicidade do pensamento humano, da “inteligência humana”, se admite variações nos comportamentos e reações afetivas; se não fosse assim, aliás, por que precisaríamos ler os clássicos? De todos os escritores da Antiguidade, não há nenhum mais “moderno” que Petrônio. Ele poderia entrar, e com o pé direito, na literatura contemporânea, e seria tomado como um de nós. Para dizer tudo: eu o amo como a um irmão (embora eu seja filho único), com fervor e sinceridade. Sinceridade, pois é muito difícil amar um escritor: às vezes nós nos obrigamos, ou nos envergonhamos de confessar que vemos com reservas sua vida ou sua obra. Amo Petrônio como Montaigne ama Paris, “ternamente, inclusive suas manchas e verrugas”, com a diferença de que nele não encontro nem manchas nem verrugas.
Ele nos enviou a mensagem mais objetiva e mais ousada, a mais compreensível e difícil ao mesmo tempo, a mais vingativa e a mais engraçada, sobre aquela época suja que foi o apogeu do Império Romano, que nem os persas, nem os bárbaros conseguiram combater, mas que o cristianismo (numa das coisas boas que fez) roeu por dentro até esvaziá-lo de toda sua substância, embora nem tivesse tanta — aquela época suja em que o tirano tinha menos inteligência (naturalmente) que o gladiador. Encólpio, assim como Espártaco, lutou na arena, e o tolo é Nero.
Este episódio do Satíricon se perdeu, assim como tantos outros; podemos apenas supor a sua existência, primeiro pelo capítulo 81, e também pelas alusões obscenas do capítulo 9; pode-se presumir, no entanto, que se Encólpio foi gladiador, provavelmente teve a inteligência de não se deixar levar até a arena para lutar. Este é apenas um exemplo das numerosas lacunas do texto atual. Segundo o manuscrito de Trau, descoberto por volta de 1650 (que nos revelou o “Banquete de Trimalquião”), tudo o que subsiste do Satíricon pertenceria aos livros XV e XVI, o que parece confirmar o interpolador de Fulgêncio no códice Parisinus 7975, que remete ao livro XIV o capítulo 20 das edições modernas. Em geral, todas essas indicações são vistas com suspeitas, e eu não entendo por quê. E é notável que, com a exceção de um manuscrito do século IX ou X e de cinco outros, dos séculos XII e XIII (todos muito fragmentários, quase uma poeira de citações), só conheçamos a obra de Petrônio pelos códices do século XV. Como ela pôde atravessar mais de dez séculos, dada a sua natureza, é um enorme mistério! E que só tenha sobrado o que temos é outro mistério, pois o que desapareceu dificilmente seria mais obsceno do que o que foi copiado pelos monges na Idade Média, portanto não é isso o que foi eliminado.
Já episódios como a “A matrona de Éfeso” ou “O testamento de Eumolpo” subsistiram. Ora, cristãos mais suscetíveis poderiam ver neles piadas sacrílegas. Também não foi o latim vulgar, o latim falado, que foi cortado. E então? É difícil admitir que seja obra de um falsário da Renascença, mais hábil que Nodot e Marchena, rapidamente desmascarados quando quiseram pôr em circulação Satíricons mais ou menos completos. Se o Petrônio Árbitro cuja morte é narrada por Tácito (Anais, XVI, 18-19) é mesmo o autor do Satíricon, este certamente não é o panfleto que ele escreveu depois de cortar os pulsos. Sem chegar a pensar (como Bürger e Bloch, além de mim mesmo, aliás) que só nos resta a trigésima quinta parte, os mais otimistas calculam que nos faltem pelo menos dois terços do Satíricon, o que torna pouco verossímil que seja a obra noturna de um homem que se esvai em sangue e prepara uma vingança póstuma. Aqui, aliás, não há nenhuma dificuldade: esse panfleto, no final das contas, até que pode ter existido, além do que, como conjecturou Ernout em seu prefácio à edição das Belles Lettres, “Tácito fez uma enorme confusão”, e é “por amor ao pitoresco dramático” que ele “atribuiu à última noite de Petrônio um romance escrito tempos atrás”.
A identificação entre o Petrônio Árbitro autor do Satíricon e C. Petronius, o elegantiæ arbiter [árbitro das elegâncias], o “amigo” e vítima de Nero, é constantemente questionada. Por ora, não há o menor motivo para duvidar. O C. Petronius que dormia de dia e vivia de noite, o depravado insaciável, o cônsul enérgico, o “voluptuoso refinado” que saboreia a própria morte e desafia os poderosos — como ele devia desprezar Nero, até mesmo quando estava na corte! —, será possível não reconhecer nele o autor do Satíricon? Há nesse romance, um dos maiores de todas as literaturas, aquele conhecimento do homem que só se aprende no amanhecer de uma noite passada em “maus” lugares, com encontros em encruzilhadas; um conhecimento do homem que dá prova de uma incessante e voraz curiosidade pelos costumes literários e os dos novos-ricos, pelas religiões de mistérios, por histórias de fantasmas, a administração das colônias romanas, a legislação sobre a herança nas diferentes nações (anunciando, assim, Montesquieu); um conhecimento do homem que se expressa com uma graça, uma lucidez, uma species simplicitatis [ar de simplicidade], como diz Tácito, que parece ser exatamente a proeza do antigo procônsul da Bitínia.
De identidade incerta, autor de uma obra de dimensões desconhecidas, com estrutura misteriosa e tema enigmático, Petrônio é, como Villon, um desses maravilhosos escritores que não conseguimos explicar. Quanto mais forte é sua fixação no tempo e no espaço, mais livre ele se mostra. Com histórias de vagabundos pederastas, sacerdotisas alcoviteiras e novos-ricos grosseiros, ele entra, de uma vez e sem contestação, na literatura universal, e permanece um de seus faróis mais brilhantes.
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Raymond Queneau, “Pétrone, ?-65 d.C.”,
in Les Écrivains célèbres, volume 1 (Paris: Manzenod, 1951),
Tradução de Paulo Werneck
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Petrônio
Tradução, introdução, posfácio e notas de Cláudio Aquati
Textos em apêndice de Tácito, Marcel Schwob e Raymond Queneau
Projeto gráfico de Raul Loureiro
Imagem de capa: Bruce Nauman, Marching man, 1985, tubos de neon sobre painel de alumínio, 195,6 x 167,6 x 25,4 cm, Hamburger Kunsthalle, Alemanha
Coleção Fábula | 224 p. | 15 x 22,5 cm | 335 g | ISBN 978-65-5525-068-8 | R$ 59,00
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