O sequestro de Machado de Assis

Há dez anos, Eduardo Wolf publicava o ensaio “O sequestro de Machado de Assis” na revista Dicta&Contradicta. É o mesmo texto que sai agora reproduzido.

por Eduardo Wolf

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Há exatos dez anos, publiquei o ensaio “O Sequestro de Machado de Assis” na revista Dicta&Contradicta. É o mesmo texto que sai agora, com autorização, reproduzido no Estado da Arte – Estadão.

Naquele supinamente distante 2010, o livro Um mestre na periferia do capitalismo, de Roberto Schwarz, que analisa as Memórias Póstumas de Brás Cubas, comemorava duas décadas de publicação. À época, pareceu-me que a naturalização da interpretação de Schwarz acerca da obra machadiana era tanto onipresente quanto incontornável. A longa década que levou Um mestre a seu trigésimo aniversário parece ter flagrado-me em erro: qualquer que seja a força da interpretação sociológica e política de Machado de Assis em 2020, é razoável afirmar que ela não mais reside no tipo de análise formal adorno-marxiana praticada por Schwarz. Novas e ruidosas querelas tomaram-lhe o lugar, e a dimensão do ganho ou do prejuízo que tal mudança traz consigo é, no momento, vaga.

Machado segue sendo restituído à grande corrente da melhor literatura universal possível, sem prejuízo de ser o autor brasileiro que foi. Duas excelentes novas traduções para a língua inglesa publicadas neste ano que se encerra, amplamente recenseadas em escala internacional, atestam esse alegre fato. Isso é mais que qualquer crítico pode fazer — e muito, muito mais do que podem os limitados críticos dos críticos.

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Machado de Assis c. 1905, por Henrique Bernardelli

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O sequestro de Machado de Assis: Um Mestre na Periferia do Capitalismo vinte anos depois

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[publicado em Dicta&Contradicta n. 6, Dezembro de 2010]

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Eu, pela minha parte, na?o tinha parecer. Na?o era por indiferenc?a; e? que me custava achar uma opinia?o. Algue?m me disse que isto vinha de que certas pessoas tinham duas e tre?s, e que naturalmente esta injusta acumulac?a?o trazia a mise?ria de muitos; pelo que, era preciso fazer uma grande revoluc?a?o econo?mica, etc. Compreendi que era um socialista que me falava, e mandei-o a? fava.

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Machado de Assis, Bons Dias!, 11 de maio de 1888

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Moon reduci?a la historia universal a un so?rdido conflicto econo?mico. Afirmaba que la revolucio?n esta? predestinada a triunfar. Yo le dije que a un gentleman so?lopueden interesarle causas perdidas…

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Jorge Luis Borges, La forma de la espada

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Ha? vinte anos, o socio?logo e cri?tico litera?rio Roberto Schwarz publicava seu estudo sobre Machado de Assis, Um mestre na periferia do capitalismo, consumando um processo a que chamarei de “sequestro” de nosso maior escritor. A?quela e?poca, o cri?tico ja? despontava como figura de refere?ncia na vida litera?ria do pai?s e a recepc?a?o do livro contou com estardalhac?o muito ale?m do comum para uma obra de cri?tica litera?ria, em particular em pai?s de escasso pu?blico leitor como o nosso. Duas de?cadas depois, o fato de que ate? o momento em que escrevo nenhum suplemento litera?rio tenha se dedicado ao tema e de que nenhum evento tenha ocorrido para marcar a efeme?ride pode dar a impressa?o de que o livro esta? superado, de que seu autor e suas ana?lises na?o esta?o mais na pauta do dia. Nada mais longe da realidade. O que temos e?, pelo contra?rio, a naturalizac?a?o da leitura que Roberto Schwarz faz de Machado de Assis: o estado natural das coisas e? tomar a leitura sociolo?gica desse cri?tico como a leitura de Machado.

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1. Explicitac?a?o do argumento de Schwarz e de seus pressupostos

A publicac?a?o do livro de Roberto Schwarz em 1990 dava continuidade a um trabalho iniciado muito antes, em 1972, quando o autor publicou o ensaio As ideias fora do lugar, depois lanc?ado no volume Ao vencedor as batatas, de 1977. Nesse ce?lebre ensaio, Schwarz apresentava pela primeira vez uma tese sociolo?gica forte, segundo a qual haveria um descompasso entre, de um lado, a base econo?mica do Brasil Imperial, ou seja, o escravismo (base essa que determinava nossas relac?o?es sociais), e as ideias e instituic?o?es europeias de presti?gio — as Luzes, o liberalismo e o progresso — de outro. Esse descompasso se fazia percepti?vel em diversos ni?veis: defesa de relac?o?es igualita?rias, mas estatuto escravocrata na constituic?a?o independente; elogio da modernizac?a?o ancorado em um modelo economicamente arcaico, ainda que integrado ao capitalismo europeu; entusiasmo com o progresso temperado com o freio a?s iniciativas progressistas.

Segundo o autor, nossas instituic?o?es e nossa vida econo?mica e intelectual estavam comprometidas por esse trac?o definidor do desajuste. A partir dessa percepc?a?o da realidade brasileira dos oitocentos, Schwarz pretende analisar o que chama de “come?dia ideolo?gica” montada no pai?s, que residia na disparidade entre as ideias que aparentemente norteavam a vida nacional e a realidade concreta que as desmentia. Disso resultaria a singularidade da forma social brasileira, que, de acordo com ele, estava instanciada plenamente no nexo do favor — com tudo o que ha? de arbitra?rio nele —, que regia boa parte das relac?o?es sociais, quer entre indivi?duos, quer na relac?a?o entre Estado e sociedade. Tal nexo — o favor — era, ale?m disso, um componente ti?pico de um sistema escravocrata, na qual o “homem livre” fica espremido entre o trabalho realizado pelos escravos (e do qual pouco ou nada lhe sobra) e as elites proprieta?rias das quais depende.

Mas Schwarz vai ale?m da sociologia e faz avanc?ar o argumento em direc?a?o a? este?tica, afirmando que esse estado de coisas, que e? um processo histo?rico, pode ser tambe?m origem arti?stica. E? nesse passo que os problemas mais graves efetivamente comec?am. Para o autor de A sereia e o desconfiado, era possi?vel enxergar esse processo social na produc?a?o romanesca do Brasil de Jose? de Alencar e de Machado de Assis. Tratava-se de analisar que tipo de contraste haveria entre a forma litera?ria (o romance europeu, em particular) e a realidade brasileira de enta?o — o cha?o social, no dizer de Schwarz, que lhe fornecia sua mate?ria. Dai? que em Ao vencedor as batatas a ana?lise do cri?tico se concentrasse precisamente na ficc?a?o urbana de Alencar e nos romances da chamada primeira fase de Machado, tentando demonstrar como o nexo social acima referido — o do favor — acabava por determinar formalmente a produc?a?o litera?ria, assinalando que as tramas das obras da primeira fase de Machado, bem como as obras de Alencar, orbitavam em torno do clientelismo nas relac?o?es sociais e das relac?o?es dos agregados e dependentes va?rios com os nu?cleos familiares de posse. Estava dado o passo mais importante da interpretac?a?o de Schwarz: a forma social e? o “princi?pio ordenador” da forma litera?ria. E? porque a forma social e? de tal-e-tal feic?a?o que a forma litera?ria assume uma tal-e-tal feic?a?o ana?loga, ou ainda, mimetizada.

Passaram-se treze anos da publicac?a?o de Ao vencedor as batatas ate? que Roberto Schwarz publicasse Um mestre na periferia do capitalismo, em 1990, no qual completa seu quadro de ana?lise das relac?o?es entre processo social e forma litera?ria em Machado de Assis, agora tratando do grande romance que inaugura a fase madura de nosso maior escritor, as Memo?rias Po?stumas de Bra?s Cubas.EmUm mestre, contudo, a tese de leitura de Roberto Schwarz avanc?a de maneira consideravelmente audaciosa, insinuando um vi?nculo extremamente forte entre a enormidade da mudanc?a de padra?o este?tico na produc?a?o de Machado de Assis e uma disposic?a?o cri?tica do autor em relac?a?o a? classe dominante do pai?s. Assim, a tese histo?rico-sociolo?gica com fins este?ticos que Roberto Schwarz vinha desdobrando desde As ide?ias fora do lugar encontrava nas Memo?rias Po?stumas uma espe?cie de consumac?a?o ma?xima, um acabamento perfeito. De fato, o argumento de Schwarz sustenta que a forma altamente inovadora (ainda mais para o acanhado padra?o este?tico local de enta?o) da narrativa desse grande romance tinha uma conotac?a?o de classe social. Desse modo, a quebra da linearidade narrativa, a atitude caprichosa e arbitra?ria do narrador, o tratamento mesclado de temas entre o filoso?fico e a anedota vulgar, tudo enfim, no romance, correspondia a? estrutura social brasileira que Machado vivia e observava e que, segundo o cri?tico, atacava de modo cifrado e esteticamente elaboradi?ssimo.

Agora, repare-se: na?o se trata de afirmar que a realidade social era espelhada ou mimetizada nos temas de que tratam os romances, tese cara a? sociologia mais vulgar, dominante em va?rios setores da cri?tica litera?ria dessa linhagem por muito tempo. Roberto Schwarz pretendia refinar o procedimento de ana?lise mostrando como a forma arti?stica era elaborada a partir da forma social, o que e? tese de outra estirpe. A tese de Schwarz quer mostrar como Machado chegou a realizar sua “viravolta”, como o cri?tico a chamou em artigo de 2004 (Revista Novos Estudos, 69), afirmando que o autor de Dom Casmurro encontrou a fo?rmula precisamente na elaborac?a?o de um determinado tipo de narrador. Esse narrador e? volu?vel — eis o conceito chave para a interpretac?a?o de Schwarz —, quer dizer, e? um narrador que submete tudo constantemente a seu capricho: desacata o leitor, ridiculariza o enredo e o pro?prio gesto de escrita, muda para atitudes elevadas que na?o duram um capi?tulo, etc. Para o cri?tico, essa volubilidade e? uma reproduc?a?o estilizada do comportamento da elite patriarcal escravista do Brasil oitocentista, que, pelo que vai exposto acima, defende a norma e a racionalidade modernas, pro?prias ao discurso progressista, mas pratica o desmando e o arbi?trio, situac?a?o calcada nas relac?o?es sociais entre proprieta?rios e escravos, homens livres no meio. Pelo que expus ate? aqui, os nexos seriam os seguintes:

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(i) A forma social brasileira e? singular por conta da acomodac?a?o de contra?rios (escravismo e liberalismo, grosso modo);

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(ii) essas incompatibilidades geram um comportamento desajustado, desencontrado, arbitra?rio nas relac?o?es sociais e institucionais do pai?s (o nexo do favor sendo sua principal figura);

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(iii) pela tese sociolo?gico-este?tica de Schwarz, essa estrutura social e seus resultados sa?o o princi?pio ordenador da criac?a?o este?tica.

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(iv) logo, o romance machadiano da? o grande salto qualitativo (a “viravolta”) por captar essa forma social especi?fica, dando-lhe um resultado este?tico mais satisfato?rio que o anterior (narrador volu?vel, com tudo o que esse procedimento narrativo acarreta).

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Fica claro para quem acompanhou essa exposic?a?o quais sa?o as fontes para a formulac?a?o de Schwarz: materialismo diale?tico marxista, leitura “na?o-dogma?tica” do Luka?cs de Teoria do Romance, acrescida de Adorno e Benjamin. Some-se a essa linhagem a tradic?a?o ensai?stica e interpretativa brasileira — com destaque para o Semina?rio Marx e os trabalhos de Fernando Henrique Cardoso e Maria Sylvia de Carvalho e Franco , e tem-se quase todo o quadro conceitual que explica a ge?nese de uma tal interpretac?a?o. Falta apenas incluir Antonio Candido, professor, mestre mesmo, de Roberto Schwarz, e de quem o autor de Um mestre adota o me?todo que o levou a?s “descobertas” que descrevi acima, a “reduc?a?o estrutural”, cujos pressupostos Schwarz explicita ao analisar o ensaio “Diale?tica da Malandragem”, em que Candido lia o resultado formal do romance de Manuel Antonio de Almeida, Memo?rias de um sargento de mili?cias, a partir de um interpretac?a?o da estrutura social brasileira:

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“Usando as expresso?es do A., esta forma e? tanto o esqueleto de sustentac?a?o do romance, quanto a reduc?a?o estrutural de um dado social externo a? literatura e pertencente a? histo?ria. Trata-se, noutras palavras, da formalizac?a?o este?tica de um ritmo geral da sociedade brasileira da primeira metade do se?culo XIX”. (Esboc?o de Figura: Homenagem a Antonio Candido)

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2. As quatro faltas do cri?tico
2.1 A falta expositivo-argumentativa: ideologia e circularidade

O primeiro passo em falso da ana?lise de Roberto Schwarz consiste no pro?prio modo como ele a conduz. O que pretendo mostrar agora e? a dimensa?o ideolo?gica desse procedimento, um objetivo que tem duplo alcance: (a) primeiro, o fato de que o autor de Um mestre na periferia do capitalismo apresenta uma hipo?tese de leitura sem realizar uma efetiva comprovac?a?o no texto que pretende analisar; (b) segundo, o fundamento dogma?tico da atitude do cri?tico para com as leituras concorrentes. Sem demora, passo a? tarefa de explicitar esse procedimento.

(a) No prefa?cio de seu livro, o cri?tico assinala a direc?a?o que sua leitura vai seguir — e que ja? apresentei sinteticamente. A pergunta geral e? sobre a “originalidade de sua [i.e., das Memo?rias] forma e as situac?o?es particulares a? sociedade brasileira do se?culo XIX” (p.9), insistindo em que o modo de lidar com forma e conteu?do romanescos traz “em si as pautas da realidade nacional, sem cuja identificac?a?o e ana?lise pela cri?tica o essencial do esforc?o ficaria na sombra” (p.11). Assim, apo?s enunciar brevemente o modelo de “captac?a?o” da estrutura social — eis em que consiste a criac?a?o arti?stico- litera?ria nesse esquema determinista que Schwarz apresenta —, o cri?tico explicita um pouco mais daquilo que, supostamente, vai submeter a ana?lise para comprovac?a?o. Na pa?gina 12, le?-se o essencial do argumento que o autor pretende fazer passar:

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“A ousadia de sua forma litera?ria, onde lucidez social, insole?ncia e despistamento [grifo meu] va?o de par, define-se nos termos dra?sticos da dominac?a?o de classe no Brasil: por estratagema [grifo meu] arti?stico, o Autor adota a respeito uma posic?a?o insustenta?vel, que entretanto e? de aceitac?a?o comum”.

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Em que consistem, portanto, a “reduc?a?o estrutural” e o processo do “dispositivo litera?rio” que “capta e dramatiza a estrutura do pai?s” de que falei acima? Ora, o cri?tico e? bastante claro quanto a isso: o Autor (Machado) captou as “desigualdades” e os “desajustes” de nossa sociedade patriarcal escravocrata e transformou esses elementos na forma do romance, no qual o procedimento do narrador faz as vezes de processo social. Na?o satisfeito em anunciar que e? esse o procedimento machadiano de criac?a?o litera?ria, o cri?tico se ve? forc?ado a introduzir duas noc?o?es centrais para sua interpretac?a?o (sem as quais, alia?s, sua hipo?tese na?o poderia sequer ser apresentada): trata-se das noc?o?es de despistamento, que serve, segundo quer Schwarz, para explicar o que exatamente Machado faz com o seu leitor, enganando-o com a intenc?a?o de deixar cifrada a cri?tica social talvez intolera?vel em sua e?poca, e da noc?a?o de estratagema, que, pela sua combinac?a?o, noções essas que permitem a Schwarz introduzir a tese segundo a qual Machado escolhe um personagem da elite brasileira para denuncia?-la, sem que isso ficasse efetivamente claro para o leitor. Por fim, a “cereja do bolo”: a “ousadia litera?ria” de Machado — e quem negaria que ha? ousadia de sobra em Machado? — e? definida nos termos da “dominac?a?o de classe”. O uso do termo indica que qualquer aceitac?a?o de uma leitura concorrente com a de Schwarz e?, como afirmei, jogo de cena, pois somente a leitura em chave sociolo?gico-adorniana e? capaz de revelar o que define, o que determina o romance e o “essencial do esforc?o” do autor. Considerada a tese, fica a tarefa de demonstrar (ou ao menos tornar plausi?vel) essa hipo?tese. E? de se esperar que o procedimento de ana?lise litera?ria busque comprovar nos textos aquilo que pretende atribuir aos textos. Evidentemente, na?o se trata de um recurso u?nico, uma vez que os elementos biogra?ficos, a corresponde?ncia de um autor, suas influe?ncias (declaradas ou na?o), o horizonte intelectual de seu tempo, enfim, todo um conjunto de elementos conta como fator de explicac?a?o na tentativa sempre imperfeita de realizar uma boa ana?lise litera?ria.

Com efeito, o que se le? nas duas primeiras sec?o?es da primeira parte de Um mestre na periferia do capitalismo e? um fino exerci?cio de leitura formal, em que boa parte do andamento da prosa machadiana e? analisada com astu?cia e fundamento. A ana?lise de Schwarz, de ini?cio, ale?m de insistir na atitude do narrador, e? capaz de lanc?ar luz sobre o ritmo e a composic?a?o da prosa. Esses bons momentos de ana?lise formal, contudo, nunca conseguem resistir um para?grafo inteiro sem que a petic?a?o de princi?pio ideolo?gica se apresente.

Por exemplo, no para?grafo em que esta? analisando a abertura das Memo?rias Po?stumas, Schwarz afirma que “a eloque?ncia esta? toda ela arranjada para significar prerrogativa social, dando dimensa?o e travo de classe a? escrita” (p. 20). Repare o leitor que a hipo?tese de leitura que fora anunciada no prefa?cio — precisamente a tese da “reduc?a?o estrutural” e da dimensa?o de “classe” do romance — e? pura e simplesmente reapresentada, sempre em tom conclusivo, sem que evide?ncia alguma seja apresentada, uma vez que a passagem se presta a outras interpretac?o?es, que de resto sequer sa?o testadas.

E? assim que uma das jogadas mais inventivas de nossa literatura — o narrador machadiano — e? transformada em estrate?gia de denu?ncia da “dominac?a?o de classe” — o gesto principal do “sequestro” de Machado.

A seque?ncia da ana?lise de Schwarz segue o mesmo padra?o: a seguir, Schwarz afirma que

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“Para completar, a prosa culta — que e? pose ela tambe?m — empresta um verniz de respeitabilidade a pulos, manobras e transformac?o?es do narrador, o que lhe disfarc?a o lado gritante da desfac?atez, ao mesmo tempo que (sic) aprofunda o seu tipo social, ale?m naturalmente de causar uma desproporc?a?o co?mica”.

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Ora, a “prosa culta” e? “pose”? Por essa lo?gica, a elega?ncia de estilo — que na?o e? constante, e? claro, ao longo do romance, pelas oscilac?o?es que lhe sa?o pro?prias — e? tambe?m um dispositivo de “despistamento” do leitor para melhor criticar a nossa elite “dita culta”. Parece na?o ter ocorrido um detalhe a Roberto Schwarz: a prosa de Machado de Assis tem, no aspecto estili?stico, uma certa uniformidade; quer dizer, encontraremos essa “prosa culta” nas cro?nicas, nas cartas, nos contos, nos demais romances. Logo, a tese segundo a qual a “prosa culta” e? “pose” teria de valer para todo o resto da obra de Machado, mesmo quando a evide?ncia de um narrador que mimetizasse estilisticamente o comportamento da elite brasileira na?o esta? em jogo. Pensemos nos contos, como “A cartomante”, “Noite de Almirante”, “Uns brac?os”, “Missa do Galo”, em que o tema amoroso e o interesse psicolo?gico predominam claramente, ale?m de tratarem de gente da camada me?dia e mesmo “dos debaixo” na escala social. Qual a explicac?a?o para essa marca estili?stica de Machado, para seu refinamento de prosa, que e? o mesmo? Esse sim e? um aspecto formal interessante de ser analisado, pois mostra o emaranhado singular entre o autor (Machado de Assis) e seus narradores — em geral autores (Bra?s Cubas, Bento Santiago, Aires) — num jogo de estilos que precisam ser especificados a cada situac?a?o romanesca, mas que nunca deixam de ter a voz do autor de fato sobreposta a? do “autor-suposto”, para usar uma expressa?o do cri?tico portugue?s Abel Barros Baptista.

Ainda sobre esse ponto, vale indicar que uma questa?o central para a interpretac?a?o de Roberto Schwarz consiste em mostrar a erudic?a?o (ora tida por real, ora de pacotilha) de Bra?s Cubas como sendo ela tambe?m mime?tica em relac?a?o a? superficialidade da elite brasileira da e?poca. Assim, na?o e? apenas a “prosa elegante” que e? reduzida a um procedimento de cri?tica social disfarc?ada na estrate?gia litera?ria: as refere?ncias filoso?ficas, litera?rias, histo?ricas, bi?blicas, o gosto pela civilizac?a?o europeia, tudo isso na?o passaria, na visa?o de Schwarz, de cri?tica a? postura intelectual da elite nacional, como se essa elite fosse composta integralmente de “medalho?es”, como no ce?lebre conto machadiano — tese descabida na qual Schwarz insiste ao longo do livro. O que mais espanta nessa hipo?tese — ou melhor, no que ela extrapola em relac?a?o ao texto das Memo?rias, pois e? certo que o pro?prio Bra?s Cubas fala de uma cultura superficial — e? a necessidade de esconder tanta coisa debaixo do tapete para que ela possa se sustentar. Seria preciso descartar tudo o que Machado leu e de que fez mate?ria para sua elaborac?a?o litera?ria, a verdadeira qualificac?a?o intelectual de uma considera?vel parcela da elite da e?poca e as pro?prias relac?o?es de Machado com essa elite. Estaria Machado pensando no ridi?culo de nossa elite ao ler Pascal, Lawrence Sterne e estudar o grego cla?ssico, quase ao final de sua vida? Apenas a ti?tulo de exemplo, lembre-se o ramo de carvalho de Tasso com o qual Joaquim Nabuco (que dificilmente seria considerado, mesmo por Roberto Schwarz, um “medalha?o” fu?til e superficial) presenteia Machado, e a emoc?a?o do autor com a lembranc?a do amigo. Para o nosso cri?tico, tudo isso e? falso, e? impostura, como era impostura de Machado o cultivo da leitura do Eclesiastes ou de Shakespeare.

Caberia , enta?o, a? segunda sec?a?o de “Uma desfac?atez de classe”, que o autor intitulou “Um princi?pio formal”, trazer as explicac?o?es faltantes. Mas na?o. As afirmac?o?es que seguem sa?o ta?o imprecisas quanto a pro?pria posic?a?o de Bra?s, a comec?ar por essa: “Bra?s finge de morto” (p. 29), o que seria apenas mais uma estrate?gia diversionista para com o leitor, sempre com o mesmo propo?sito: desacato a? norma, pro?prio de nossa elite. Afirmar que Bra?s e? um falso defunto — como o cri?tico ja? havia insinuado na pa?gina 19 — e? o mesmo que considerar Gregor Samsa um “falso metamorfoseado”, Joseph K. um “falso perseguido”, ou Zeno um “falso psicanalisado”. Esse disparate e? pronunciado para que a obra se ajuste aos pressupostos ideolo?gicos do cri?tico, o que e? falha teo?rica grave.

Quando finalmente o cri?tico pretende mostrar algum fundamento para sua hipo?tese de leitura — a reduc?a?o estrutural — na sec?a?o 3 da primeira parte (“A matriz pra?tica”), encontramos uma formida?vel desculpa: “A explicac?a?o deste passo requer um momento de reflexa?o extralitera?ria, cuja pertine?ncia, impossi?vel de provar por a + b [grifos meus], se documenta na compreensa?o acrescida que acaso permita”. A falha do racioci?nio e? clara, pois o argumento de Schwarz em favor de sua hipo?tese interpretativa depende de aceitarmos que sua tese acrescenta alguma coisa a? compreensa?o da obra de Machado. E? um exemplo de argumento circular digno de figurar em antologia:

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(i) a leitura de Roberto Schwarz afirma estar descobrindo algo de ine?dito acerca de Machado de Assis, ampliando a compreensa?o sobre sua obra;

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(ii) o argumento que vai embasa?-la depende de aceitarmos que a leitura de Schwarz amplia a compreensa?o da obra;

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(iii) logo, recusa?-lo, e? negar-se a aceitar que a leitura de Schwarz… amplia a compreensa?o da obra.

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Afinal, tudo o que a sec?a?o “A matriz pra?tica” oferece ao leitor e? uma ana?lise do Brasil escravocrata a? luz da historiografia de inspirac?a?o marxista recente, fundamentalmente Luiz Felipe de Alencastro, provando que o enredo de nossa histo?ria poli?tica e? ana?logo ao que ate? agora vinha sendo afirmado sobre nossa elite escravista: combinac?a?o de capitalismo perife?rico com escravida?o, participac?a?o no sistema global e atraso material, etc. Mesmo que essa leitura da histo?ria do pai?s esteja correta, na?o e? disso que se trata: o que caberia a Schwarz fazer seria demonstrar se ocorre ou na?o o processo de “reduc?a?o estrutural”, ou seja, o cri?tico deveria mostrar que efetivamente o “princi?pio” ordenador da estrutura da obra litera?ria e? a estrutura social em questa?o.

(b) E? preciso reconhecer uma extraordina?ria criatividade na leitura de Roberto Schwarz. De fato, sua interpretac?a?o compo?e um certo enredo machadiano. Vejamos: na abertura do livro, Schwarz afirma, muito ponderadamente, que as intromisso?es do narrador machadiano — centro formal da obra de Machado, a seu ver, com o que estou de acordo — ja? tinham sido tratadas de diversas perspectivas: “A cri?tica as tratou como trac?o psicolo?gico do Autor, deficie?ncia narrativa, superioridade de espi?rito, empre?stimo ingle?s, metalinguagem, nada disso estando errado” (p. 17). Assim, sua leitura, de tipo sociolo?gico, poderia perfeitamente ressaltar algum outro aspecto da obra — precisamente a dimensa?o sociolo?gica —, o que seria razoa?vel, quando na?o louva?vel. Entretanto, basta lembrar que ja? no prefa?cio o cri?tico chamava atenc?a?o para o fato de que sem captar a nota especi?fica e nacional, ou seja, a dimensa?o de classe, “o essencial do esforc?o [i.e., o esforc?o criativo de Machado] ficaria na sombra” (p. 11).

Quer dizer, sem um cri?tico marxista-adorniano que revelasse aquilo que propriamente explica o alcance da obra machadiana, ela continuaria “na sombra”, incompreendida. Ao longo de sua ana?lise, alia?s, na?o e? outro seu procedimento: toda inquietac?a?o metafi?sica resume-se a uma variac?a?o da “teoria do medalha?o”, e na?o enxergar isso e?, segundo Schwarz, prova de ingenuidade. Ou seja, apesar da aparente elega?ncia pluralista, o que o texto revela e? um procedimento autorita?rio, segundo o qual apenas uma leitura e? capaz de desvendar plenamente a natureza e o alcance das Memo?rias — o “essencial do esforc?o” machadiano, como o pro?prio cri?tico chamou.

O pressuposto impli?cito no racioci?nio e? que Roberto Schwarz, cri?tico de inspirac?a?o marxista e frankfurtiana, e? o leitor “ideal” de Machado de Assis, capaz de ver ali mesmo onde a ideologia encobre o texto, desvendando a “come?dia ideolo?gica” da vida social e os resultados este?ticos. Entretanto, quando confrontado com uma leitura concorrente, como aconteceu recentemente em relac?a?o a?s interpretac?o?es do cri?tico portugue?s Abel Barros Baptista, que se esforc?a por ler Machado em uma chave de leitura na?o-marxista e na?o-localista, o cri?tico que “desvenda tramas ideolo?gicas” reage com um simples ataque ideolo?gico. Em entrevista de 2009, por ocasia?o dos quarenta anos do Cebrap, tanto a posic?a?o de Baptista, que aproxima Machado dos grandes autores da tradic?a?o ocidental, como o sucesso de sua leitura, sa?o vistos por Schwarz como “a vontade que muitos professores te?m de morar no ca?non, e na?o no seu tempo” (Retrato de Grupo, p. 243).

Ou seja, a atitude de Schwarz e? ambi?gua: faz alardear (pois ele e? discreto) a sua genialidade por retirar o ve?u da ideologia das obras de Machado, mas quando confrontado com leituras divergentes, encobre-as, desqualificando-as com o manto ainda mais pesado da sua ideologia, trocando de postura de acordo com as convenie?ncias, em “piruetas” semelhantes a?s de Bra?s. Como se ve?, e? Machado de Assis quem nos ajuda a desvendar Roberto Schwarz, e na?o o contra?rio. Que tal chama?-lo cri?tico volu?vel?

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2.2 A falta este?tico-litera?ria

O equi?voco de ni?vel este?tico que funciona como base para a tese de Roberto Schwarz ja? vem anunciado nas pa?ginas iniciais de Um mestre, quando o cri?tico afirma que vai tratar das intromisso?es do narrador machadiano “como estilizac?a?o de uma conduta pro?pria a? classe brasileira” (p. 18). Ele anuncia, assim, na?o apenas a petic?a?o de princi?pio ideolo?gica como o movimento circular da argumentac?a?o — e? preciso aceitar essa afirmac?a?o para acompanhar Schwarz em suas concluso?es, mas ela e? precisamente aquilo que se tenta provar. Trata-se de um equi?voco, contudo, que atinge uma outra dimensa?o: com efeito, estamos diante de um reducionismo extremamente artificial em relac?a?o ao aspecto formal da obra de arte em geral.

Para compreender em que consiste esse me?todo, e? preciso uma considerac?a?o em dois passos: (i) lembrar a complexidade da forma litera?ria, ou, melhor ainda, da forma arti?stica em geral, e (ii) sair do quadro especi?fico da literatura brasileira para, tomando exemplos dos grandes momentos da literatura e da arte universais, avaliar qual o verdadeiro alcance da noc?a?o de forma defendida em b) pelo cri?tico.

(i) O leitor cultivado em questo?es de este?tica sabe que a reflexa?o sobre o tema e? vasta. A natureza da criac?a?o arti?stica e, consequ?entemente, da pro?pria obra de arte foi tema que na?o escapou a? atenc?a?o de filo?sofos e pensadores da cultura como Plata?o e Aristo?teles, Diderot e Kant, Hegel e Schiller, Schopenhauer e Nietzsche, Marx e Freud, Wittgenstein e Arthur Danto, Foucault e Derrida — a lista e? imensa, obviamente. Na?o cabe aqui — nem e? meu propo?sito — inventariar as posic?o?es especi?ficas a cada um desses pensadores, mas apenas mostrar que, dos variadi?ssimos resultados dessas reflexo?es ta?o di?spares, ha? uma conclusa?o comum que se impo?e a quem, como no?s, tem o privile?gio de considerar esses esforc?os em perspectiva histo?rica: o feno?meno arti?stico e? de tal forma complexo que nenhuma leitura, por mais poderosa que seja, e? capaz de esgota?-lo.

(ii) Tentemos desprovincianizar o debate e busquemos em outros registros litera?rios o alcance dessa compreensa?o de “forma litera?ria” defendida pelo autor. Pensemos, por exemplo nos procedimentos narrativos que encontramos nos poemas home?ricos: o uso reiterado de fo?rmulas, a estruturac?a?o dos cantos, os discursos dos personagens. Sera? uma atitude razoa?vel reduzir tais procedimentos a uma questa?o de classe? Nem mesmo a leitura de Luka?cs sobre tais poemas e? ta?o reducionista, visto que o cri?tico stalinista se ate?m ao reconhecimento da visa?o de mundo que as animava. Trata-se, enfim, de enxergar uma falha evidente: afirmar que a “forma litera?ria” pode ser compreendida em termos de “estilizac?a?o da conduta da classe dominante brasileira” e? o mesmo que na?o falar de “forma litera?ria”, uma vez que o conceito na?o pode ser aplicado sequer a um conjunto mi?nimo de obras relevantes.

Algue?m que quisesse defender o uso que Schwarz faz do termo poderia responder o seguinte: (i) a concepc?a?o aplica-se apenas a Machado; (ii) a concepc?a?o aplica-se apenas a? literatura brasileira; (iii) a concepc?a?o pretende destacar um entre outros sentidos de forma. Ora, (i) e? desmentido pelo pro?prio Schwarz, que, como vimos acima, diz ter se inspirado na aplicac?a?o que Antonio Candido faz do me?todo em outros romances da literatura brasileira; (ii) cai por terra quando se lembra que Schwarz diz que se trata, grosso modo, do me?todo adorniano, e Adorno na?o tratava de literatura brasileira; e (iii) na?o se sustenta porque, como demonstrei acima, Schwarz diz que e? esse, e na?o outro me?todo qualquer, que capta o princi?pio estruturador da forma litera?ria. Logo — e a conclusa?o se impo?e —, a concepc?a?o de “forma” litera?ria de Roberto Schwarz e? insustenta?vel.

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2.3 A falta lo?gico-epistemolo?gica

Passo a expor, agora, aquilo que poderia ser considerado o nu?cleo da minha tese, e que vem operando como fundamento de tudo o que foi dito ate? aqui. De fato, ja? deixei claro que minha objec?a?o a? leitura de Roberto Schwarz reside no nexo causal que o autor pretende estabelecer entre forma social e forma litera?ria. Na?o nego — e insisto nisso — que se possa ler em Machado muito da vida brasileira de seu tempo, coisa que ja? Astrojildo Pereira fazia, ainda que equivocadamente, e que Raymundo Faoro realizou com primor. O que minha ana?lise procura demonstrar e? a desfac?atez ideolo?gica de uma leitura que pretende ver na especificidade da formac?a?o social do pai?s a causa da especificidade da obra machadiana e que, ale?m disso, pretende atribuir uma intenc?a?o de cri?tica poli?tico-social ao Autor, querendo dar valor a uma obra litera?ria por me?ritos poli?ticos, aliás exatamente como o multiculturalismo ta?o em voga em nossos tempos (e ta?o criticado pelos schwarzianos) costuma fazer.

Como vimos acima, o argumento de Schwarz depende da tese da “reduc?a?o estrutural”, que e? sua base: o “dispositivo litera?rio capta e dramatiza a estrutura do pai?s, transformada em regra de escrita” (p. 11). Assim, na?o apenas e? o processo social que fundamenta a escrita — pois a “estrutura do pai?s” e? a “regra de escrita” — como, mais grave ainda, o procedimento e? fruto de uma “intuic?a?o decisiva” (p. 214) do autor. Ale?m disso, para que a tese de Schwarz se sustente, a especificidade de uma certa forma social, no caso, a brasileira dos oitocentos, define (o termo e?, como vimos, do pro?prio Schwarz) a forma litera?ria, estabelecendo um nexo causal forti?ssimo: a estrutura social e? a causa da estrutura litera?ria; e? na?o apenas seu princi?pio, como tambe?m, aquilo que permite explicar o processo de composic?a?o.

O equi?voco desse vi?nculo causal pode ser exemplificado a partir de va?rias leituras bastante distintas da obra de Machado de Assis, que sera?o brevemente analisadas a seguir:

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2.3.1 A leitura em chave comparatista e universalista

O ponto nevra?lgico do equi?voco de Roberto Schwarz esta? aqui: como explicar, diante do esquema schwarziano, que estruturas sociais que, no que diz respeito a? combinac?a?o de escravismo e liberalismo, sa?o as mesmas (pensemos no exemplo do resto da Ame?rica Latina, e mesmo dos Estados Unidos) geraram diferentes estruturas litera?rias? Afinal, onde esta? o narrador volu?vel da prosa norte- americana? E da Argentina? Ou sera? que Roberto Schwarz pretende convencer algue?m que a erudic?a?o de Jorge Luis Borges e? “de pacotilha” e que sua prosa culta “e? pose”?

Mas na?o e? esse o u?nico nem o melhor caminho para mostrarmos que o nexo causal defendido por Schwarz na?o se sustenta: diferentes estruturas sociais, como a inglesa e francesa do se?culo XVIII, por exemplo, geraram os mesmos resultados litera?rios — reconhecidos como formalmente os mesmos pelo pro?prio Machado de Assis em seu pro?logo — como e? o caso do Tristram Shandy de Sterne e da Voyage autour de ma chambre, de Xavier de Maistre.

Em Riso e melancolia, Se?rgio Paulo Rouanet afirma que sa?o quatro as caracteri?sticas fundamentais da forma shandiana: (i) hipertrofia da subjetividade (que se mostra no “capricho” do narrador); (ii) digressividade e fragmentac?a?o; (iii) subjetivac?a?o do tempo e do espac?o; (iv) interpenetrac?a?o do riso e da melancolia. Qualquer leitor de Machado reconhecera? aqui a forma narrativa adotada por Bra?s Cubas, que, alia?s, declaradamente fala na “forma livre de um Sterne”. Analisando as duas primeiras ja? se pode refutar a interpretac?a?o de Schwarz. Sobre a primeira, escreve Rouanet: “A hipertrofia da subjetividade se manifesta na soberania do capricho, na volubilidade, no constate rodi?zio de posic?o?es e pontos de vista. E se manifesta na relac?a?o arrogante com o leitor, a?s vezes mascarada por uma defere?ncia aparente” (p. 35).

Para Roberto Schwarz, a volubilidade do narrador machadiano, que nunca se “mante?m igual a si mesmo”, e que caprichosamente subordina todos os assuntos possi?veis (de Moise?s ao parlamentarismo europeu) a seu interesse, e? mimese da atitude da classe dominante: e? estrate?gia de submeter tudo ao capricho, que era marca da classe escravista. Schwarz chega a afirmar que “o esca?ndalo das Memo?rias esta? em sujeitar a civilizac?a?o moderna a? volubilidade” (p. 56). Para refutar essa leitura, basta observar o procedimento de Sterne, que Rouanet destaca: “[Tristram Shandy] e? um self-consious narrator, que interve?m constantemente na narrativa, como Fielding, Furetie?re ou Scarron, mas distingue-se dos outros pelo cara?ter caprichoso e imprevisi?vel dessa intervenc?a?o. […] E? o reino do capricho, que assume a?s vezes aspecto um aspecto cruel” (p. 35).

Note-se que essa crueldade, assim como no narrador de Machado, vem por vezes disfarc?ada de atitude lisonjeira. Diante dessas evide?ncias, e? lo?gica e textualmente impossi?vel sustentar que esses mesmos procedimentos, quando realizados por Machado (e Schwarz aceita que sa?o esses os procedimentos) te?m uma conotac?a?o de cri?tica a? classe dominante, estilizando sua conduta, mas quando na Inglaterra sa?o fruto da “eclosa?o da cultura democra?tica naquele pai?s” (p. 214), erro que Rouanet ja? assinalara em seu ensaio Contribuic?o?es para a diale?tica da volubilidade (Revista USP, no 9, p. 191), em que analisava Um mestre.

O mesmo argumento vale para o cara?ter digressivo e fragmentado da narrativa, que encontramos em Sterne (“As digresso?es, incontestavelmente, sa?o a luz do sol, a vida, a alma da leitura”), como em Xavier de Maistre. No pro?prio Tristram Shandy, como Rouanet observa, “tudo se passa como se na?o tivesse havido nenhum desenho a priori, como se os fragmentos e? que fossem origina?rios, reflexos esponta?neos de uma realidade em si fragmentada’” (p. 84).

Ora, se a mesma estrutura social (liberalismo indo de par com escravismo) produziu formas litera?rias distintas da machadiana, e se diferentes estruturas sociais (liberalismo democra?tico ingle?s e absolutismo france?s) produziram os mesmos resultados litera?rios (nos quais Machado declaradamente se inspira), enta?o a lo?gica obriga a? conclusa?o: na?o e? a especificidade da estrutura social brasileira que funciona como “princi?pio” formal do romance. Tal estrutura pode ser um elemento funcional da obra, sem du?vida — afinal, todo escritor sempre escreve sobre o material que tem ao seu redor — mas transforma?-la em princi?pio u?nico ou fundamental e? logicamente insustenta?vel. Claro, restaria a Schwarz contra-argumentar que a lo?gica e? socialmente determinada, e que as regras de implicac?a?o, bi-implicac?a?o, conjunc?a?o e disjunc?a?o sa?o aute?nticas na “modernidade burguesa”, na?o aqui…

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2.3.2 Machado de Assis programa?tico

Os primeiros capi?tulos do romance Memo?rias po?stumas de Bra?s Cubas trazem algumas considerac?o?es interessantes sobre a pro?pria natureza da obra que va?o ale?m de assinalar a peculiaridade do “defunto autor”. No capi?tulo IV, por exemplo, Bra?s afirma que seu livro e? “obra supinamente filoso?fica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que na?o edifica nem destro?i, na?o inflama nem regela, e e? todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado”. A passagem da? margem a diferentes interpretac?o?es, entre elas a de Jose? Raimundo Maia Neto, que em seu livro O ceticismo na obra de Machado de Assis ve? nesse procedimento de Bra?s uma etapa da evoluc?a?o ce?tica do pro?prio Machado. O que importa assinalar, entretanto, e? que Bra?s da? uma pista quanto a? natureza da narrativa: seu tom filoso?fico e? ora austero, ora brincalha?o, nem mesmo chegando a constituir uma filosofia propriamente dita, uma descric?a?o, alia?s, acurada em relac?a?o ao todo do romance. Essa mesma considerac?a?o aparece na adverte?ncia “Ao leitor”, assinada pelo pro?prio Bra?s Cubas: “a gente grave achara? no livro umas apare?ncias de puro romance, ao passo que a gente fri?vola na?o achara? nele o seu romance usual”. As duas descric?o?es do romance na?o esta?o meramente sobrepostas. Na?o e? mero detalhe, com efeito, que Machado tenha insistido nesse aspecto particular, que da? a to?nica do andamento do romance, entre o grave e o risonho, como qualquer leitor pode observar. E? como se Machado tivesse sentido a necessidade de esclarecer um ponto ou outro de seu procedimento, que era altamente diferenciado para o padra?o da e?poca.

A adverte?ncia, contudo, na?o fornece apenas essa pista de leitura: e? nela que Machado (via Bra?s Cubas, o “autor-suposto”) indicava claramente algo que na?o estava no corpo do romance quando de sua primeira versa?o: a “fami?lia litera?ria” a que o romance pertencia e os procedimentos formais nele empregados. De fato, e? ali que a “forma livre de um Sterne ou de Xavier de Maistre” e? citada para explicar o funcionamento da narrativa, estranho ao leitor brasileiro de enta?o. A explicac?a?o na?o e? menos acurada do que aquela quanto a? “filosofia” do romance: do capricho do narrador aos capi?tulos pontilhados, efetivamente a forma do romance vem desses autores, que Machado leu com atenc?a?o e gosto. Ocorre que o Autor, ao incluir a refere?ncia atrave?s da adverte?ncia de Bra?s ao seu leitor, na?o parece ter ficado nisso: era preciso esclarecer o que havia de especi?fico, e que e? definido mediante a famosa expressa?o “rabugens de pessimismo” — que, insisto, na?o e? menos precisa na descric?a?o do tom do romance do que as outras informac?o?es fornecidas por Bra?s/Machado. Assim, como que orientando o leitor, Machado falava da mistura singular do livro: Bra?s o havia escrito com a “pena da galhofa e a tinta da melancolia”.

Importa destacar, contra a tese de Roberto Schwarz, que essas descric?o?es e refere?ncias sa?o precisas quando se considera o conjunto do livro e que na?o ha? “despistamento” algum nesse procedimento: o romance funciona efetivamente desse modo (disso nem Schwarz discorda). Ainda assim, compreende-se que isso na?o tenha sido suficiente para esclarecer nem mesmo o pu?blico mais sofisticado da e?poca, acostumado a leituras bem menos desestabilizadoras. Na?o por acaso, quando da quarta edic?a?o das Memo?rias, Machado acrescentou-lhe um pro?logo, que passou a figurar em todas as edic?o?es, em que insiste no fato de que a obra “era romance para uns e na?o o era para outros”, como ja? havia dito Bra?s na adverte?ncia e no capi?tulo IV. Era preciso insistir no fato de que a “forma livre” vinha de Sterne e de Xavier de Maistre, mas com o detalhe especi?fico — as “rabugens de pessimismo”. Ora, semelhanc?as e diferenc?as estavam trac?adas, sem que o Autor tivesse de ser dida?tico; cedendo, contudo, a? necessidade de indicar o mi?nimo, dada a desproporc?a?o da obra diante de seus pares (compare-se com outra publicac?a?o do mesmo ano, O mulato, de Alui?sio Azevedo). Alia?s, Machado esclarece ainda mais a especificidade de sua obra, quer dizer, a natureza de seu pessimismo: “Ha? na alma deste livro, por mais risonho que parec?a, um sentimento amargo e a?spero, que esta? longe de vir dos seus modelos. E? tac?a que pode ter lavores de igual escola, mas leva outro vinho”.

De fato, para que a tese de Roberto Schwarz esteja correta, e? preciso interpretar a frase de Machado sobre o que tornava seu Bra?s Cubas um autor particular em sentido bastante diverso, fazendo com que o pessimismo fosse especificamente relacionado a uma “desilusa?o ideolo?gica”. Assim, o u?nico modo de compatibilizar a tese de Schwarz com aquilo que e? dito expressamente por Machado de Assis e? interpretar o “sentimento amargo e a?spero” que o Autor atribui ao livro a? questa?o social: para o cri?tico marxista, Machado tinha se tornado pessimista, amargo e a?spero (literariamente, ao menos) porque tinha desvendado os processos da “opressa?o de classe” do pai?s.

A leitura de Schwarz contraria todas as evide?ncias: Machado jamais revelou qualquer compreensa?o dos processos sociais nos termos que a ana?lise de Schwarz requer; pelo contra?rio, parecia mais horrorizado com a ascensa?o social de uma classe de gente “sem modos e sem sintaxe” do que com o comportamento da elite, como demonstra Raymundo Faoro. Na?o deixa sequer uma sugesta?o quanto a essa possibilidade de interpretac?a?o; e, mais interessante ainda, segundo testemunhos registrados por Lu?cia Miguel-Pereira, o autor confessava aos amigos que o motivo da “viravolta” era que “perdera completamente as iluso?es com os homens”, o que nem de longe tem conotac?a?o sociolo?gica. Mais uma vez, para ficar com Schwarz, temos que abrir ma?o de Machado.

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2.3.3 Um outro caminho sociolo?gico

Na?o e? preciso, contudo, recorrer a uma leitura claramente universalista e centrada em interesses distintos, como a de Rouanet, para comprovar a falha na tese de Schwarz. O socio?logo Raymundo Faoro, em seu brilhante A pira?mide e o trape?zio, ao falar sobre o processo de centralizac?a?o poli?tica do Brasil imperial, afirma o seguinte:

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“A centralizac?a?o, de outro lado, obra do Partido Conservador, com a consequente sistematizac?a?o, no plano eleitoral, do pai?s oficial oposto ao pai?s real, serviria a interesses urbanos, ou com sede nas cidades. Seria conexa — o termo e? cauteloso para evitar a enfa?tica e na?o verifica?vel causalidade [grifos meus] — seria conexa aos interesses dos financiadores da exportac?a?o e da importac?a?o” (p. 177)

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Eis uma lic?a?o das aulas de sociologia que Roberto Schwarz na?o parece ter aprendido. E? precisamente esse procedimento cauteloso quanto a?s conexo?es causais inverifica?veis que o cri?tico marxista na?o toma, extrapolando a conclusa?o, que em vez de enxergar (e comprovar) a presenc?a do elemento social especi?fico na obra machadiana, vai ale?m e faz dele a causa da originalidade e da forc?a do romance, o princi?pio ordenador da obra. Evidentemente, Schwarz na?o poderia aceitar jamais um vi?nculo mais fraco, na?o poderia admitir que na?o ha? uma causa, mas sim diversos fatores operando, uma vez que tudo esta? determinado pelas condic?o?es materiais, ou seja, econo?micas, em u?ltima insta?ncia. Como diz Jorge Luis Borges na epi?grafe deste ensaio, Schwarz transforma tudo em um “so?rdido conflito econo?mico”.

Ha?, com efeito, uma boa evide?ncia de que a mate?ria histo?rica e social, quando transformada em mate?ria litera?ria — e ningue?m aqui esta? negando que de fato o seja — na?o e? das melhores pistas a se seguir quando se quer decifrar os mecanismos da histo?ria e da sociedade.

Ao analisar as relac?o?es entre cidade e campo e os processos econo?micos no Brasil oitocentista, Raymundo Faoro faz uma importante observac?a?o sobre um dos capi?tulos iniciais das Memo?rias Po?stumas. De fato, no capi?tulo III do romance, Bra?s Cubas esta? comentando a genealogia familiar e, ao falar de Damia?o Cubas, descreve como ele “teria morrido na penumbra e na obscuridade, se somente exercesse a tanoaria. Mas na?o; fez-se lavrador, plantou, colheu, permutou o seu produto por boas e honradas patacas, ate? que morreu, deixando grosso cabedal a um filho, o licenciado Bra?s Cubas”. Analisando essa passagem, Faoro conclui que “A prosperidade de Damia?o Cubas deve-se ao cafe? num tempo em que na?o havia cafe?” (p. 218)

Com isso, Faoro chama atenc?a?o para o fato de que “o confronto entre a visa?o de Machado de Assis e a realidade, ou mais corretamente, a realidade tal como a percebe o historiador, indica muitas discrepa?ncias de detalhe” (p. 180). Evidentemente, na?o estamos falando apenas de alguns detalhes que na?o se coadunam nesse contraste obra litera?ria situac?a?o histo?rica: o que Faoro vinha sublinhando era um trac?o pro?prio a? criac?a?o arti?stica em suas relac?o?es com o plano social. Como prossegue o autor,

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“os trac?os isolados [pelo escritor], as indicac?o?es particulares, as observac?o?es de intimidade e profundidade sa?o de rara autenticidade. Decorrem, todavia, de um centro de filtragem e de selec?a?o valorativa que acentua e destaca o feno?meno singular em prejui?zo da organizac?a?o social, da estrutura poli?tica e das coordenadas supra-individuais” (p. 181)

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Vemos, assim, como o simples fato de na?o estar preso a um modelo reducionista, como e? o caso dos marxistas em geral e de Schwarz em particular, permite a Faoro compreender que as relac?o?es entre a criac?a?o litera?ria e a realidade so?cio-histo?rica na?o se reduzem a um “captar” de formas.

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2.3.4 Uma si?ntese recente

As palavras de Faoro na?o poderiam ser mais atuais. Alia?s, em livro recente, Represa?lias Selvagens, Peter Gay, historiador da cultura e psicanalista, vai exatamente nessa direc?a?o. Assim como Rouanet e Faoro, Gay escreve com sutileza e comedimento sobre o tema das relac?o?es entre obra de arte e histo?ria, evitando qualquer doutrina reducionista. Assim, ao falar sobre a criac?a?o arti?stica, escreve:

“Ha? (para usar uma forma esquema?tica) tre?s fontes principais de motivac?a?o: a sociedade, a arte e a psicologia individual. Na?o sa?o compartimentos estanques; ao contra?rio, fluem um para dentro do outro, tornando o ato de criac?a?o litera?ria um processo intrincado. E? apenas em conjunto, em proporc?o?es u?nicas, na?o de todo previsi?veis, que eles produzem um retrato, uma esta?tua, uma trage?dia — um romance. Apenas uma obra de terceira ou quarta categoria pode ser em grande parte explicada por uma u?nica categoria” (p. 25).

Note-se a cautela, atitude ilustrada e civilizada, com que o autor assume que mesmo falando em “tre?s fontes principais”, ainda assim trata-se de uma “forma esquema?tica” — o que garante que outros elementos na?o esta?o exclui?dos. Do mesmo modo, ao sublinhar as relac?o?es entre essas fontes, o historiador evita a conclusa?o dogma?tica de que ha? um, ou sobretudo um fator que explique a obra de arte. O mesmo poderia ser dito da cri?tica litera?ria, alia?s.

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2.4 Uma conclusa?o: a falta moral

Amamos, sofremos, temos nossas angu?stias, perdemos pessoas queridas, morremos, na He?lade de So?focles como no Brasil de Machado, e? certo; o romancista trata de tudo isso, claro esta?; mas, para Roberto Schwarz, o que realmente importa e? a nota de classe que especifica tudo — apenas ela revela o sentido da obra de arte, o “essencial”. O extravagante da posic?a?o sociolo?gica de Schwarz e? tamanho que o cri?tico chega a atribuir conteu?do de classe ao “nada”:

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“o nada pelo qual concluem as Memo?rias e? complexo, expressando a pressa?o ao mesmo tempo real e ino?cua do molde da civilizac?a?o contempora?nea sobre as prerrogativas de que se beneficia a classe dominante brasileira” (p. 210-11).

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Faltou algue?m informa?-lo que “o nada” na?o tem propriedade. O “nada”, no Brasil dos oitocentos, na?o e? diferente do “nada” de qualquer outra e?poca ou lugar. Ler Descartes na?o lhe teria feito mal.

O que fundamenta esse disparate todo, contudo, e? algo que ja? po?de ser pressentido pela ana?lise acima: Schwarz na?o pode aceitar que Machado estivesse interessado na condic?a?o humana, desmarcada de interesses de classe social, porque para ele, como para todo marxista, simplesmente na?o ha? condic?a?o humana. O problema na?o se esgota nessa atitude risi?vel diante da hipo?tese de uma natureza humana. Trata-se de uma questa?o moral de muito maior alcance. O que a atitude de Roberto Schwarz revela e? uma falha na educac?a?o sentimental. Segundo Aristo?teles, faz parte de uma boa educac?a?o moral nos preparar para sentirmos adequadamente, ou seja, para termos, diante das mais variadas situac?o?es da vida, as emoc?o?es certas, na medida certa e para com as coisas certas, sendo esse o estado de um cara?ter virtuoso. A arte e? um caso excelente de avaliac?a?o dessa “educac?a?o sentimental”.

Considere-se, por exemplo, a tremenda passagem de Bra?s Cubas em que este relata a partida de Virgi?lia:

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“Eles la? iam, mar em fora no espac?o e no tempo, e eu ficava-me ali numa ponta de mesa, com os meus quarenta e tantos anos, ta?o vadios e ta?o vazios; ficava-me para os na?o ver nunca mais, porque ela poderia tornar e tornou, mas o eflu?vio da manha? quem e? que o pediu ao crepu?sculo da tarde?” (grifos meus)

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O que pensar de quem, diante de um fato da experie?ncia humana como esse, que sintetiza o riso e a melancolia do livro sobre o qual o pro?prio Machado falara, apenas se interroga pelo “conteu?do de classe”? O que pensar de quem, diante das mais belas pa?ginas da literatura mundial, esta? interessado sempre e principalmente na “dominac?a?o de classe”?

Termino este ensaio estarrecido. E na?o me sai da cabec?a uma de minhas passagens favoritas da literatura universal, aquela em que, no u?ltimo canto da Ili?ada, o rei de “grande corac?a?o”, Pri?amo, parte em direc?a?o ao acampamento dos Aqueus, contrariando os conselhos de sua esposa, insultando seus filhos palacianos pela covardia, e seguindo desesperado ate? a tenda de Aquiles para reaver o corpo de seu filho dileto, do grande hero?i, Heitor, que o filho de Te?tis mantinha consigo. Fico pensando na forc?a sobre-humana desse pai que se ajoelha diante de Aquiles, o grande guerreiro heleno, e diz, entre la?grimas:

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“Suportei aquilo de que ningue?m sobre a terra jamais foi capaz Trouxe aos meus la?bios as ma?os do homem que matou meu filho”.

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Fico pensando em Pri?amo, rei de Tro?ia, implorando pelo corpo de seu filho, e me reponho a pergunta: o que pensar de algue?m que, diante de tal cena, esteja preocupado com a “nota de classe”? O que pensar, leitor?

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Machado de Assis, 1904

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Nota do autor: Este ensaio deve imensamente ao dia?logo fraterno e estimulante que mantive ao longo de mais de dez anos com o amigo, professor, escritor e tradutor Pedro Gonzaga.

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