por Astier Basílio
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I.
Igreja de São Nicolau em Kuznetsk Sloboda. Moscou. Janeiro de 1982. Embora fosse um ateu confesso, o escritor Varlam Chalamov foi velado conforme os rituais e a tradição da Igreja Ortodoxa Russa. A decisão de permitir o ofício do sacramento fúnebre partiu de Elena Zakharova, jovem médica que vinha acompanhando o escritor nos últimos meses. Ela sabia que Chalamov era filho de um sacerdote e que havia sido batizado e, portanto, deveria se despedir do mundo conforme os rituais cristãos.
Os representantes da União dos Escritores da URSS, que embora tivessem enviado uma coroa de flores, optaram por não entrar no templo. A comitiva seguiu junto com uma pequena multidão ao cemitério Kuntsevo, localizado a 13 quilômetros dali. Não se esperava a vinda de tanta gente. De última hora, providenciaram um pequeno ônibus para o translado de todos. Houve, todavia, um momento de grande constrangimento. No para-brisa do veículo, estava afixado um retrato de Iossif Stálin, em cujo regime de terror o escritor Varlam Chalamov amargou 20 anos de prisão em campos de trabalhos forçados. Após veementes protestos dos passageiros, o motorista retirou de lá a fotografia.
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No Brasil, salvo pequenas menções feitas por meio de artigos traduzidos de agências internacionais, a primeira grande referência na imprensa nacional foi o obituário do escritor. O texto, lido com a distância de quatro décadas de sua escrita, se configura como um retrato da batalha ideológica que se descortinou nos anos da Guerra Fria. O autor do artigo foi Nicolas Milititch que em 1981, portanto no ano anterior à morte de Chalamov, havia sido expulso da Rússia. Documentarista e correspondente da agência France Press, Milititch foi deportado por conta de suas ligações com os dissidentes do regime ou, a crer nas justificativas oficiais, por trabalhar para organizações não-soviéticas.
A matéria no qual se relatava a morte de Chalamov foi publicada em 11 de março de 1982, no Diário de Pernambuco, portanto, dois meses após a morte do escritor. O título foi: “Varlam Chalamov, testemunha do horror do Gulag”. Além de uma série de distorções, foram veiculadas informações incorretas. Para não se estender em demasia, fiquemos apenas com o segundo parágrafo: “Enquanto o Ocidente reconhece Chalamov como um dos pioneiros da literatura dissidente, a maioria dos seus compatriotas ignora até seu nome. Na União Soviética, a publicação de suas obras continua sendo até agora proibida”.
A alegada “dissidência” de Chalamov foi algo que se construiu no Ocidente à revelia do próprio escritor. Tão logo foi extinta sua pena no campo de trabalhos forçados em Kolimá, em 1951, Varlam Chalamov protocolou junto ao governo soviético um pedido de reabilitação, obtido em 1956, o que lhe possibilitou, no ano seguinte, integrar-se à redação da revista Moskva, onde passou a trabalhar como repórter e onde foram publicados alguns dos seus poemas.
Antes de ser um “dissidente”, algo que Chalamov nunca declarou ser, o autor se considerava um “escritor” e “cidadão soviético”. Além das edições de seus contos saírem sem qualquer autorização de Chalamov, às vezes até com a grafia errada do nome do autor, o escritor jamais recebeu um único centavo pela venda dos exemplares de sua obra no exterior. Conforme relata Valeri Iessipov, biógrafo de Chalamov, quando estava no asilo e lhe chegou às mãos a edição inglesa de seus Contos de Kolimá, o escritor reagiu com indiferença e disse: “Eu entendo que editem lá. Mas afinal deveria haver dinheiro”.
Quanto ao desconhecimento do nome do escritor à época de sua morte, conforme enfatiza Nicolas Milititch, pode se dizer que é uma declaração um tanto controversa. Por sua própria natureza, Chalamov sempre foi um alguém reservado que prezava a solidão como imperativo para criação literária. Além do mais, os problemas de saúde, que o fizeram receber uma pensão por invalidez, foram reduzindo suas poucas aparições públicas. Chalamov foi diagnosticado com a doença de Ménière, o que fazia muitas vezes cair desacordado na rua.
Não custa nada lembrar que em 1962 Chalamov foi convidado para ler seus poemas em um programa de televisão, “Novyye knigi”. Algo inconcebível para alguém que fosse, realmente, proscrito pelo regime que, por fim, o aceitou oficialmente, ao chancelar sua admissão como membro da União dos Escritores em 1972. Outro fato notável, evidentemente não aludido no necrológio, foi que “Stalinik”, um dos contos que integram o volume dos Contos de Kolimá, chegou a ser publicado em plena imprensa soviética, em 1965, no número 3 da revista Sel’skaya molodezh’.
Todavia, o mais incorreto de tudo o que Nicolas Milititch escreveu, certamente, foi a afirmação de que havia uma “proibição” para se publicar as obras de Chalamov na União Soviética. Quando Chalamov estava vivo chegaram a ser lançados cinco livros, todos de poesia: Ognivo (1961), Shelest list’yev (1964), Doroga i sud’ba (1967), Moskovskiye oblaka (1973) e Tochka kipeniya (1977). Não houve proibição, é fato, mas houve censura. Ao ponto do próprio poeta, ironicamente, chamar seus livros de “inválidos”.
Aquilo que o regime permitia ser lançado não dava conta da força e da grandeza da poesia de Chalamov. Toda a obra poética de Chalamov, que se distribuiu por dois tomos, foi lançada apenas em 2020, pela editora Nova Vita, de São Petersburgo. Outra ressalva a se fazer é que as tiragens dos livros de Chalamov eram bem modestas para a época, em torno de 2 mil exemplares, cinco vezes menos do que costumava sair pela imprensa oficial.
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Só em 1993, quando não havia mais União Soviética e nem Guerra Fria, o público brasileiro pôde tomar conhecimento da obra de Varlam Chalamov de forma mais equilibrada e ampla. E isso se deu graças ao maior divulgador da literatura russa no Brasil e patriarca dos estudos de tradução, o escritor Boris Schnaiderman. No artigo “Entre ficção e a história” é traçado, em poucas linhas, um perfil biográfico de Chalamov. “Nascido em 1907, este foi preso pela primeira vez em 1929, passando então três anos em campos de trabalho. Depois de solto, dedicou-se inteiramente à literatura, em prosa e verso, sendo novamente preso em 1937, o que resultou em mais de 17 anos entre trabalhos forçados e degredo na Sibéria. Durante muitos anos, era conhecido na União Soviética pelos seus versos neoclássicos, de acentuado tom filosófico. Mas o poeta aparentemente tranquilo guardava uma carga realmente explosiva: uma série de relatos e diários sobre as condições de vida dos presos políticos. E diante do que ele narra, o Dostoiévski de Recordações da casa dos mortos ‘parece um escritor bucólico’, segundo escreveu I. Sidorov”.
No artigo também é traçado um paralelo com o trabalho de Soljenitsin, porém, são expostas as diferenças fundamentais entre a obra dos dois escritores. Com argúcia, Schnaiderman observa que a maior preocupação de Chalamov “é narrar os fatos, sobre um mundo em que homens são capazes de devorar um cão ou de arrebatar um leitão congelado e comer metade num acesso de loucura. Nada de doutrinação, de argumentação ideologizante, como se encontra tanto em Soljenitsin”.
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Ao contrário do que se deixa a entender pela fala de Soljenítsin (“em Chalamov reconheci um irmão”), mencionada por Milititch no obituário publicado no Diário de Pernambuco, os dois escritores não mantinham qualquer vínculo de amizade entre si e, quando o autor de Contos de Kolimá morreu, havia dez anos que não se dirigiam a palavra um ao outro.
O primeiro contato entre ambos se deu na redação da revista “Novyy mir”. Foi lá onde publicaram a novela Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, de Soljenítsin. Apesar de elogiar a qualidade da obra, “Por duas noites eu não dormi, lendo e relendo a novela, lembrando-a”, Chalamov fez observações críticas, na primeira carta que enviou a Soljenitsin, em 1962. “Um gato próximo da unidade médica é inverídico para um verdadeiro campo de trabalho forçado, teriam comido o gato há muito tempo”. Mais: “Deixar o pão no acampamento! Comer com colheres? Onde fica este campo maravilhoso? Pudera eu ficar lá ao menos um tempinho…”.
O rompimento mesmo viria ocorrer em 1964, quando Aleksandr Soljenítsin propôs a Chalamov que participasse da escrita do livro Arquipélago Gulag, o que foi recusado. “Eu quero ter a garantia de para quem eu estou escrevendo”, disse o autor de Chalamov. A pergunta se destinava a deixar claro para qual público o projeto se orientava: se ao Ocidente ou ao público soviético. Chalamov não queria ser usado como instrumento para objetivos políticos, conforme opina o seu biógrafo, Valeri Iessipov.
A contenda entre os dois escritores teria ainda outros capítulos mais ásperos. Em 1972, quando foi publicada a carta de Chalamov para o jornal “Literaturnaya Gazeta”, no qual de modo enfático o autor negava qualquer vínculo com as editores notadamente anti-soviéticas que haviam publicado seus contos no exterior, Soljenítsin reagiu dizendo: “Chalamov morreu”. Uma resposta chegou a ser escrita em forma de carta, mas Chalamov nunca a enviou. O material acabou se incorporando aos diários do escritor. “Com prazer eu recebo sua fúnebre piada sobre minha morte […] Eu sei por certo que Pasternak foi uma vítima da guerra fria e o senhor é uma arma dela”.
Parte das reflexões sobre Chalamov escritas no Jornal do Brasil por Boris Schnaiderman foram, posteriormente, incorporadas ao livro Os escombros e o mito, uma pequena enciclopédia da cultura russa do século XX, lançado em 1997. Pode-se dizer que foi uma espécie de apresentação de Chalamov ao público leitor brasileiro, sobretudo porque Schnaiderman traduziu trechos do diário do escritor, que davam uma ideia da força criativa. Eis um trecho:
“Por que escrevo contos? Eu não acredito na literatura. Não acredito na sua capacidade de corrigir o homem. A experiência da literatura humanista russa resultou, diante dos meus olhos, nas sangrentas execuções do século 20. Eu não acredito na possibilidade de evitar algo, de anular a sua repetição. A história se repete. E qualquer fuzilamento de 1937 pode ser repetido. Por que então escrevo? Escrevo para que alguém, apoiando-se na minha prosa alheia a qualquer mentira, possa contar a sua própria vida, num outro plano. Afinal, um homem tem que fazer algo…”
A partir de 2015, a editora 34 lançou, em seis volumes, todas as narrativas dispostas no Contos de Kolimá, um hercúleo trabalho que envolveu a participação dos tradutores: Nivaldo dos Santos, Francisco de Araújo, Daniela Mountian, Moissei Mountian, Marina Tenório, Cecília Rosas, Lucas Simone, Denise Sales e Elena Vasilevich.
Com relação à poesia de Varlam Chalamov, muito pouco foi traduzido para o português. Na revista eletrônica “modo de usar & co. revista de poesia e outras textualidades conscientes”, Ricardo Domeneck publica a tradução de dois textos do autor. Outro poema de Chalamov, “Lilás polar escuridão”, recebeu seis traduções diferentes. Um artigo sobre o processo foi publicado nos Cadernos de Literatura em Tradução, da UFRGS. A tarefa foi levada adiante por Denise Sales, que já havia traduzido a prosa de Chalamov. Integram o projeto ainda Leonardo Antunes, Thiago Koslowsky da Rosa, Bruno Palavro, Douglas Rosa e Daniel Saeger.
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II.
Antes de tudo, Chalamov considerava-se um poeta. Em termos quantitativos, não paira dúvida a respeito de qual gênero mereceu maior dedicação. Foram 1 200 poemas frente aos seus 150 contos. “A verdade da poesia é mais elevada que a verdade da prosa”, chegou a dizer. Citando Pushkin e Lermontov como exemplos, avaliou que “o poeta, escritor de prosa, enriquece sua prosa e sua poesia”.
Aprendeu a ler, com cubos de letrinhas, aos três anos de idade. Desde cedo escrevia poemas, mas não os mostrava a ninguém. O ídolo de sua juventude foi o poeta Igor Severyanin (1887-1941). Dentre outros, afeiçoou-se por Sergei Iêssenin (1895-1925), mas apaixonou-se a valer pela poesia de Aleksandr Blok (1880-1921). No começo dos anos 1920, Chalamov deixou sua cidade natal Vologda e mudou-se para uma efervescente Moscou. Aproximou-se do Futurismo, vindo a admirar seus expoentes como Khlebnikov e Maiakovski, cujas apresentações chegou a assistir, e Boris Pasternak, inicialmente filiado ao movimento, que iria exercer um importante papel na vida de Chalamov posteriormente.
Em 1927, Chalamov atendeu ao chamado da revista “Novyy LEF” que conclamava poetas a enviarem rimas “novas e originais”. Foi a primeira vez que Chalamov recebeu uma carta de um escritor. Quem a escreveu foi Nicolai Asseiev (1889 -1964), que elogiou o ouvido apurado do jovem, bem como escreveu que se aquele fosse o primeiro poema , então, era o caso de se “merecer atenção”. Dois anos depois, Chalamov foi preso em uma gráfica na qual estava sendo rodado o “Testamento de Lênin”, carta na qual o líder bolchevique recomenda o afastamento de Stalin do comando do Partido.
Embora viesse a ser taxado como “trotskista”, Chalamov, e o grupo político ao qual ele pertencia, se denominava “oposição leninista”. Sobre este assunto, o escritor escreveu: “a relação da maioria dos oposicionistas com Trotski era sem grandes simpatias”. Em 1929, foi preso e enviado ao campo de concentração (era esta a denominação oficial naquele período) localizado em Vishera, na região dos Urais, onde cumpriu pena de três anos.
De volta a Moscou, casou-se com Galina Ignatyeva, com quem teve uma filha. Publicou, em uma revista, a novela “As três mortes do doutor Austino”. Planejava para 1938 a publicação de um livro de contos e, na sequência, um outro, de poemas, mas foi preso um ano antes, no auge do período conhecido como “Grande Terror Stalinista”. Três cadernos nos quais estavam toda a produção de Chalamov, figurando em torno de 100 poemas, foram queimados por sua esposa , que temia por represálias caso o material fosse descoberto.
Ao todo, Chalamov cumpriu 15 anos de reclusão e trabalhos forçados em Kolimá, cuja experiência foi matéria prima para escrita de sua prosa, mas também de sua poesia. Só em 1949, quando trabalhava como paramédico em um dos hospitais do campo é que Chalamov, aos poucos, teve sua humanidade devolvida, passou a organizar saraus secretos e voltou a escrever poemas. Uma cópia, escrita à mão, do seu “Cadernos de Kolimá”, foi entregue ao maior poeta russo daquela época, Boris Pasternak (1890-1960).
Em uma das cartas, das muitas que trocaram, Pasternak, que havia passado o manuscrito de Chalamov a vários amigos seus, anunciou que iria ficar com a obra para si. “Eu nunca mais devolverei ao senhor o caderno azul. São poemas verdadeiros e fortes de um poeta original”. Em uma das visitas que fez a Pasternak, Chalamov recitou o poema “Irão me fuzilar bem na fronteira…”, que nós o traduzidos em primeira mão, para o português.
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III.
Três poemas de Varlam Chalamov, do livro Cadernos de Kolimá, na tradução de Astier Basílio.
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Irão me fuzilar bem na fronteira…
Irão me fuzilar bem na fronteira,
Bem na fronteira da consciência minha
Meu sangue jorrará folhas inteiras,
Algo que meus amigos angustia
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Quando uma estrada não dá mais pra achar
No meio das montanhas que se espinham
Amigos se despedem por demais,
Vão proferindo uma sentença mínima
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Quando há incerteza e ânsia e não há ânimo
Eu para a zona de terror irei,
Obedientes eles vão mirando
Enquanto eu fico sob a visão deles.
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Entretanto há guaritas de observação
Que estão a serviço de seus próprios sonhos
Eles vão através de seculares
Frivolidades, acidentes, dores,
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Quando eu penetro numa zona assim,
Já nem é minha mais: país estranho,
Eles se portam pelas leis dali,
As leis que existem neste nosso lado.
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Para que se encurtasse esta aflição,
Para morrer, que é por demais possível,
Fui dado pelas minhas próprias mãos
Como nas mãos do atirador de elite.
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Subitamente, congelou-se a mão…
Subitamente, congelou-se a mão
Do rosto o sangue some num momento,
A amargura mortal está jorrando
Com a angústia pesada por inteiro.
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Vou parar de falar. Eu juro e assim
Sem som sigo mexendo os lábios meus,
Por qual razão foi que voltei ainda aqui
Eu voltei ainda aqui foi por vocês
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Sobre a canção
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3 ..
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Eu muitos anos pedras esmaguei
Com verso irado não, picaretadas.
A vergonha de um crime eu carreguei
E o triunfo perpétuo da verdade
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Que não fique a alma em estimada lira
Correrei com meu corpo em cinzas feito
Por minha casa que não é aquecida,
Por sobre a neve cujo toque queima
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Lá por cima onde meu corpo é imortal,
Aquilo que nas mãos carregou o inverno,
Girou a nevasca de vestido branco,
Já perdendo a cabeça por completo
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Como aldeã que grita sem ter calma,
Para quem tudo soa ignorado,
Que enterram antes por aqui a alma,
Plantando o corpo sob um cadeado.
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Uma velha amiga já de longas datas,
Como um finado, ela não honra a mim.
Ela vai cantando e baila — esta nevasca,
Canta e baila sem nunca ter um fim...
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