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No último dia 12 de novembro, o poeta Bruno Tolentino, falecido em 2007, teria completado 80 anos de idade. Em sua homenagem, o Estado da Arte reuniu depoimentos de Juliana P. Perez, Renato Moraes e Guilherme Malzoni Rabello, coeditores de suas obras e amigos com quem Tolentino conviveu intimamente em seus últimos anos de vida.
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Bruno Tolentino: recordações em chiaroscuro
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por Juliana P. Perez
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Bruno… como o conheci? Claro, já havia lido algum artigo seu na Bravo, que em meados dos anos 90 era cobiçada por estudantes de Letras. Mas, algo alheia à poesia brasileira contemporânea por estar imersa na leitura de autores alemães, deixei passar em branco todos os lançamentos de Tolentino daquela época: descobri apenas anos mais tarde As horas de Katharina, publicada pela primeira vez em 1994; Os deuses de hoje, de 1995; A balada do cárcere, de 1996. Estes e Anulação e outros reparos, publicado em 1998, chegaram às minhas mãos apenas em 2004. Embora no início dos anos 2000 Tolentino já circulasse entre amigos de um movimento católico do qual também participei por muitos anos, nem assim o conheci. E, quando O mundo como ideia foi lançado, em 2002, na PUC, eu estava na Alemanha, fazendo pesquisa de doutorado sobre Paul Celan (1920-1970). Não poderia imaginar uma poética mais distante da de Bruno: Celan, o que trazia a Shoah inscrita na alma e nos textos; o que desconfia da música e das cores da linguagem poética; o que subverte metáforas para lhes atribuir um sentido literal e terrível e sempre ligado ao extermínio dos judeus; o que lutava contra qualquer tipo de metafísica; o que ao longo dos anos reduz a linguagem da poesia a três ou quatro linhas quase indecifráveis. Tolentino, o que exalta a música na construção dos temas e dos versos; o que acreditava na força de sua poesia mais que em qualquer qualidade sua; o que não teme metáforas exuberantes e adora as cores da pintura medieval e renascentista; o “cosmopata”, como o definiu seu amigo dos tempos de Oxford, Chris Miller; o que contava versos para competir com Camões.
Quando nos conhecemos, em abril de 2004, e Tolentino soube que eu escrevia uma tese de doutorado sobre Celan, ele considerou algo natural que uma estudante de alemão se ocupasse do tema, ponderando, claro, que eu logo terminaria o trabalho para me ocupar de coisa melhor: a sua poesia. Eu achava divertida a autoconfiança de Bruno e procurava conciliar de alguma forma o contraste brutal entre os dois poetas que me ocupavam o pensamento. E há um ponto em comum, apesar de tudo que os distingue: um olhar apaixonado pelo efêmero. Em Celan, trata-se do efêmero como o mais próprio do “humano”, sempre sob ameaça de discursos ideológicos que justificam o seu extermínio; em Tolentino, a finitude é a marca da condição humana, a verdade dramática da qual procuramos nos esquivar com o escudo da “Ideia”. Bruno não se interessava por comparações com a poesia de língua alemã: era bastante apaixonado pela própria obra e se encantava com o interlocutor que a conhecesse. Eu a conheci no momento de maior imersão na obra de Celan: em 2003, ainda em Aachen, a saudade da língua portuguesa era tanta que eu pedi que minha mãe me enviasse alguns livros de poesia. Fiz uma seleção de obras que não conhecia e que não podia comprar na Alemanha, e lá estava O mundo como ideia. Difícil, meio estranho, sem unidade — eu o adorei desde as primeiras linhas! Ao voltar a São Paulo, em 2004, comprei os outros livros, soube que Bruno morava por perto e que era possível conhecê-lo pessoalmente. E assim foi. Não me recordo bem do que conversamos nessa primeira tarde — lembro-me que depois de algumas horas, sem parar de brincar com as contas um terço, Bruno se despediu dizendo: “Volte sempre, filhinha, eu estou aqui, tenho tempo, volte amanhã.”
Voltei inúmeras vezes e às horas da primeira conversa acrescentaram-se outras. Eu mais ouvia que falava, me divertia com os casos, as observações — sempre agudas, mas nem sempre caridosas — de Bruno sobre as pessoas, a cultura brasileira, a sociedade, a literatura. Tolentino alternava dias de grande humor e de grande ira, me encantava nos primeiros, me assustava um pouco nos outros. Ele ainda era para mim mais Tolentino que Bruno, era o escritor sem igual, uma autoridade: eu ia atrás das recomendações de leitura, refletia sobre o que dizia, aprendia o que pudesse. Eu e as várias pessoas que passavam por ali: jovens e nem tão jovens, uns bobos, outros curiosos, amigos sinceros, gente meio estranha, padres, jornalistas — todo tipo de gente, a quem Tolentino oferecia sua obra, suas observações, seu trabalho. Foi ali que também conheci Guilherme Malzoni Rabello, Martim Vasques da Cunha e Renato de Moraes (Jessé Primo conheceria mais tarde, em Salvador). Em 2007, recebemos a tarefa de cuidar do espólio e organizar as obras de Bruno.
Em pouco tempo, porém, a figura de Tolentino, escritor, dava lugar à pessoa de Bruno — não que um vivesse sem o outro, Bruno se compreendia fundamentalmente como criatura e como poeta, mais nada. Mas era a pessoa, e não o escritor, que estava perigosamente doente, como o denunciava a magreza excessiva do rosto em um dia muito belo. Compreendi que eu estaria a seu lado em seus últimos anos de vida, e que talvez tivesse uma função qualquer. Naquele momento, as tarefas eram bem simples: fazer pequenas compras, improvisar um lanche ou uma janta rápida, resolver alguma pendência. Por minha conta, levava umas flores para alegrar a casa paroquial, o que me rendeu o apelido de “minha florista”. Eu escrevia a tese, último ano do doutorado, mas conseguia vê-lo duas ou três vezes por semana. Era espantoso: um dos maiores poetas brasileiros estava, na verdade, semiabandonado, vivia de favor na casa paroquial, dependia de ajuda, de carona e da paciência de quem aguentava seu temperamento e sua inquietude. Era até compreensível que muita gente se afastasse e se cansasse de suas exigências.
A maior exigência de Bruno Tolentino era, afinal, ser reconhecido como um dos maiores poetas brasileiros e também como um intelectual católico; uma exigência ao mesmo tempo simples e complexa. Simples, por ser verdadeira — nem é preciso conhecer a obra inteira para chegar a essa conclusão. Bastariam, por exemplo, As horas de Katharina e O mundo como ideia. Complexa, porque não é possível obrigar ninguém a reconhecer coisa alguma. E porque, no Brasil, as palavras “intelectual” e “católico” não costumam andar juntas — aliás, são vistas como termos contraditórios. Tolentino reclamava, por exemplo, de não ser convidado a dar aulas em universidades, irritava-se e revivia a polêmica da famosa entrevista nas páginas amarelas da Veja. Queria apoio de círculos católicos diversos, o que nunca acontecia — e xingava também padres e bispos e quem estivesse passando por perto. De vez em quando oferecia cursos ou palestras, e então se via com que satisfação ele falava de literatura, contava suas histórias, falava e falava.
Eu não prestava atenção em mais nada disso: via o homem a definhar, cada vez mais magro, cada vez mais fraco. Que me importava a poesia, diante da vida daquela pessoa? Para Bruno, a lógica era outra: que lhe importava a vida, diante da sobrevivência da poesia? Aborrecia-se com minha preocupação e só fazia as pazes quando eu mostrava conhecer e apreciar este ou aquele poema; a doença lhe era indiferente. Num momento de risco maior de uma nova internação, porém, não se recusou a tomar, por várias semanas, um suplemento alimentar caríssimo, que lhe salvou a vida e que consegui providenciar com a ajuda generosa de Álvaro, outro amigo. Nesse período comecei a imaginar que Bruno deveria ser acolhido pela comunidade de leigos do mesmo movimento católico. Ainda não era o momento.
Tolentino recuperou-se um pouco, foi convidado a falar no Meeting de Rimini — ainda era o ano de 2004 —, retornou a São Paulo e decidiu morar em Salvador. Ele tinha vindo para São Paulo “fugido”, como ele mesmo dizia: não quis ver a morte por câncer de seu grande amigo, Padre Virgilio Resi, com quem Bruno convivera por algum tempo na Serra da Piedade, em Minas Gerais. Por que decidiu retornar a Salvador? Não soube. Estabeleceu-se no bairro de Ondina no final de 2004, e lá ficou até dezembro de 2005; morava num flat à beira-mar, via-se uma nesga de mar de uma das janelas. Quis o acaso que eu recebesse uma oferta de trabalho em Salvador, para onde me mudei em abril de 2005, e nos reencontramos — Bruno gracejava e dizia aos amigos que eu o estava perseguindo. Com a saúde levemente recuperada, voltou a reunir em torno de si gente interessada em poesia e cultura, dava aqui e ali umas palestras, procurava mais uma vez algum centro cultural católico onde pudesse trabalhar. De vez em quando desaparecia sem que ninguém soubesse de seu paradeiro. Não precisava mais de tanta ajuda cotidiana — bastavam as visitas dos diversos amigos, entre eles Jessé, que também resolviam algum pequeno problema. Eu o visitava quase sempre em companhia de Claudia, amiga que Bruno designava como “uma força da natureza”; da saúde cuidava outra amiga médica, muito bonita, que, segundo Bruno, “fazia todas as doenças valerem a pena”. Vez por outra também vi gente meio estranha saindo do prédio, Bruno não dizia quem era, “tanto faz, filhinha”. Até que, sem ter mais como sustentar o flat e a saúde, Bruno foi obrigado a voltar a São Paulo. Às nove da manhã do dia em que deveria entregar o apartamento, nada estava feito. Bruno lia, afundado no sofá, dizia não querer ir embora nem sair de sua casa: entre furiosa e aflita, pois Claudia passaria dali a duas horas para nos buscar, abri os armários e comecei a arrumar agressivamente malas e caixas, enquanto Bruno, pela primeira vez algo desconcertado, dizia: “Não mexa aí não, filhinha”. Eu atirava roupas nas malas sem dizer palavra. Claudia enfim chegou, ajudou com as últimas coisas e, com seu jeitinho baiano, controlou minha fúria e me fez gargalhar da situação absurda que Bruno criara mais uma vez. Era esse seu método: quando não suportava mais uma situação, Bruno a tornava impossível, absurda, até que se encerrasse. Nós rimos, Bruno, não. Antes de entrar no carro, demorou-se, sozinho, a olhar o mar. Poucas vezes o vi tão triste e vulnerável, vivendo a mesma consciência do fim que marca toda sua poesia. À noite, na casa de Claudia, num último encontro com os amigos, Bruno se levanta da mesa e se encolhe em posição fetal embaixo da árvore de Natal — quem é que sabia lidar com aquele homem, afinal?
Tolentino voltou a seu quarto na casa paroquial, a saúde piorava, recomeçaram as consultas e internações. Nesse meio tempo, tornei-me professora da UFRJ, e viajava a São Paulo de 15 em 15 dias para ver minha família e visitá-lo, até que passei a vir quase toda semana. Ainda houve tempo para seguir a fase final da publicação de A imitação do amanhecer e de acompanhá-lo ao lançamento em São Paulo. No início de 2007, após outra internação, uma amiga, Ana Lydia, conseguiu enfim fazer com que Bruno fosse acolhido na casa de uma comunidade leiga feminina, à Rua Angatuba. Bruno morava no andar de cima da edícula, de cuja janela via uma exuberante primavera vermelha da qual ele gostava especialmente. Recebia suas visitas e os cuidados necessários, parecia mais calmo — ou talvez lhe faltassem forças para seguir seu espírito rebelde. Se antes as conversas giravam em torno de sua obra, agora ele se perdia em recordações — e também ouvia mais. À mínima sobra de energia, aprontava das suas, achando que enganava muito as moradoras da casa. Enfim, Bruno estava triste, mas parecia vislumbrar alguma paz. A última pessoa a conversar com ele, na UTI do Emílio Ribas, foi Ana Lydia; na hora de sua morte havia apenas uma médica a seu lado. Pude visitá-lo uma semana antes, na mesma UTI: Bruno mal conseguia falar. Seguramo-nos as mãos e nos olhamos, sem dizer nada, por mais de uma hora. Bruno fechou levemente os olhos, eu cantava baixinho, ele acompanhava com um movimento levíssimo das sobrancelhas. Olhou-me para se despedir, quando uma enfermeira me descobriu ali muito depois do fim do horário de visitas.
Avisaram-me da sua morte no dia 27 de junho, cheguei a São Paulo na manhã do sepultamento. Ana, Guilherme, Martim, Renato e outros haviam cuidado de todas as questões do enterro. Revi a irmã de Bruno, que tinha visto rapidamente em Salvador — o único familiar de quem tive notícia nesses três anos de convivência. Conheci uma amiga da família, de quem Bruno sempre falava com carinho. Naquele dia, lágrima, “lâminas, golpes agudos”.
Em 2015, quando conhecemos o mítico Simon Pringle — um dos grandes amores de Bruno — não me assustei apenas com a semelhança entre os dois, mas com um comentário algo amargo de Simon sobre Bruno mentir desabridamente. Ao que retruquei, no meu inglês canhestro: foi uma das pessoas mais verdadeiras que conheci na vida. Simon arregalou os olhos. Disse o mesmo Chris Miller, e disse o mesmo a Chris Miller, dois anos depois. Só nesses dois encontros percebi a profundidade da conversão de Tolentino, pois ele parecia possuir o dom de compreender quase instantaneamente a pessoa que tinha diante de si: percebia sua verdade e sua máscara, a máscara da Ideia que a pessoa vestisse. A máscara, ele tratava de destruir com piadas e sem piedade, a fim de que se enxergasse um rosto mais verdadeiro. Quem se abriu à sua amizade, viu-se, naquela época ou anos mais tarde, grato ao amigo que revelava a pessoa a si mesma. Creio se tratar de uma capacidade dada a quem, em seu coração, esteve face a face com o Criador e teve revelado seu rosto de criatura. Simon e Chris não o conheceram assim. Mas esta é imagem de sua obra e de sua pessoa que brilha para mim no chiaroscuro da memória.
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Do rascunho ao êxtase: os 80 anos de Bruno Tolentino
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por Renato José de Moraes
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Conheci Bruno Tolentino em 1998. A partir de então, mantivemos um relacionamento estreito, salvo alguns períodos em que foi para a Bahia e não mandou notícias, e outro em que viajou para a Itália por algumas semanas. Desde a primeira vez em que falamos por telefone — ele me chamou, quando recebeu meu número com a informação de que eu havia me impressionado demais com a leitura de As horas de Katharina —, até os últimas dias da sua vida, ele sempre foi generoso e disponível para conversar e me ensinar sobre o que fosse. E aproveitei ao máximo a oportunidade imerecida e extraordinária.
Posso dizer que fui amigo de Bruno Tolentino? Acredito que sim. No sentido de que eu podia contar com ele sempre que precisasse, e de fato ele dificilmente negava algum pedido meu, fosse um encontro informal, uma palestra, uma aula, ou mesmo conhecer um amigo que eu lhe apresentasse. Da minha parte, eu também procurava fazer tudo o que ele solicitasse ou precisasse.
Em datas como Natal ou Ano Novo, ou mesmo em várias tardes de semanas comuns, eu ia visitá-lo. De um lado, via que devia fazer-lhe companhia. Pelas escolhas que ele fez, faltava-lhe às vezes alguém próximo, para compartilhar todos os momentos. De outro, era um prazer enorme desfrutar da companhia de Bruno. Sei que ele gostava de que eu estivesse com ele; por outro lado, o mais favorecido com certeza era eu. Escutar uma pessoa inteligentíssima, culta, engraçada, perspicaz, era uma dádiva.
A dúvida sobre a amizade vem de perceber que havia dimensões da vida de Bruno que me eram vedadas. Acho que não era só comigo. Ele sabia se apresentar conforme agradaria ao interlocutor, e às vezes escondia o que poderia decepcionar. Isso sucedia principalmente nos primeiros contatos com ele. Depois, ele era mais transparente, ainda que sem se mostrar inteiro. Até que ponto ele foi sincero comigo?
Assim como a todos, ele contava uma série de inverdades sobre si mesmo. Filhos, esposas, relações sociais, encontros, eventos… Custava discernir o que era verídico. Mais ainda porque algumas das histórias mais estrambóticas, como ter contrabandeado haxixe no Mediterrâneo e ter se envolvido com um cartel de drogas colombiano, comprovaram-se verdadeiras. Assim como sua convivência com Yves Bonnefoy, Saint John Perse e outros intelectuais europeus de renome. Enfim, o que ele contava poderia ser inventado ou não, e o critério da verossimilhança não ajudava muito para discernir.
Por outro lado, ele falava a verdade sobre o que pensava e no que acreditava. Discutíamos muito, no bom sentido, e ele não queria agradar nada. Sabia escutar, ponderava os argumentos e podia modificar sua opinião. Só o vi destratar quem queria mostrar conhecimento que não possuía, ou as pessoas inchadas porque sabiam umas tantas ideias desconjuntadas em voga. Para quem estivesse buscando a sério pensar e entender a realidade, Bruno era um companheiro maravilhoso. Um mestre, no sentido descrito por George Steiner.
O que não admitia dúvida era a inteligência e a cultura do Bruno. Tive chance de manusear vários livros que ele mantinha em seu quarto, e neles havia frequentemente anotações nas margens. O que ele escrevia ali, de maneira despretensiosa, era impressionante. Observações que iam no núcleo do trecho do livro, ou horizontes que se abriam a partir daquela leitura. Quando eu entregava um texto para o Bruno ler e comentar, em pouquíssimo tempo ele me vinha com considerações valiosas, que não eram fruto apenas de estudo ou trabalho, mas de uma mente muito privilegiada.
O cabedal de seus conhecimentos era espantoso. As exposições que ele fazia, no meio de um chá ou um café da manhã, sobre as vertentes da literatura italiana, ou o desenvolvimento da poesia espanhola no século XX, ou as comparações entre os românticos brasileiros e ingleses, ficaram marcadas na minha memória pela clareza e profundidade. Ele se interessava por música, matemática, ciência… Para a arte popular, ele dizia que não tinha tempo. Mas assistia cinema comercial, incluindo filmes de kung fu ou comédias com Julia Roberts.
Em uma ocasião, ele começou a recitar — em um espanhol perfeito — o poema “Llanto por Ignácio Sanchez Mejías”, de García Lorca. Na hora, pensei: “está errado! Ele está esquecendo uma palavra em vários versos!” Fui conferir depois e, claro, quem estava equivocado era eu. Escutei recitações de Baudelaire em francês, de Eliot em inglês, de Antônio Machado em castelhano, de Montale em italiano… Bruno possuía um ouvido admirável, ele refazia perfeitamente o ritmo e a entonação das diversas línguas.
Nos poemas recitados em português, dele ou de outros autores, era habitual que ele batesse com os nós dos dedos em uma mesa para marcar as sílabas. Li algumas vezes um ou outro crítico reclamar que o Bruno não era exato ao dividir as sílabas de um verso, fazendo com que alguns fossem mais longos ou mais curtos do que os outros. Mas isso era proposital. Bruno trabalhava com os sons, e acredito que este ponto, que vinha junto ao domínio das línguas, era onde seu gênio se mostrava com maior vivacidade.
Sua arte estava lastreada em um conhecimento literário vasto e profundo. Ouso dizer inigualável. Ele compreendia a literatura de dentro, e a explicava de maneira diversa de qualquer outra pessoa que conheci. Os mais próximos que ouvi tratar da literatura tão bem foram Carlos Nejar e Ferreira Gullar, mas Bruno tinha uma amplitude e densidade difícil de igualar. Sem demérito algum para os maravilhosos poetas que citei, nem de tantos outros estudiosos de primeira categoria que temos no país.
Tolentino tinha um propósito claro com sua obra, que é coerente e estruturada. Mesmo sendo muito diferentes uns dos outros, os livros se articulam em torno da noção do mundo em si mesmo contraposto ao mundo como ideia. A abertura para o real, e cantá-lo, eram as metas de Bruno. Por isso, ele tratou da religião, da união com Deus, revisitou sua infância e formação, apontou aspectos da nossa vida política, versou sobre a pintura renascentista e grandes literatos, escreveu sobre a morte e a fuga dela. Sua ambição artística foi enorme, e ele foi capaz de realizá-la. Não demorará muito para que seja reconhecido unanimemente como o poeta enorme que foi.
Proust escreveu, a respeito de uma sonata da personagem fictícia Vinteuil: “E esse tempo de que necessita um indivíduo — como me aconteceu a mim com essa sonata — para penetrar uma obra um tanto profundo é como um resumo e símbolo dos anos e às vezes dos séculos que têm de transcorrer até que o público possa amar uma obra-prima verdadeiramente nova. […] O motivo de que uma obra genial rara vez conquiste a admiração imediata é que o seu autor é extraordinário e poucas pessoas com ele se parecem” (Á sombra das raparigas em flor, Editora Globo, trad. Mário Quintana).
Esta é uma descrição que se encaixa perfeitamente à trajetória de Tolentino, se eu estiver certo. A crítica literária do Brasil não reconheceu devidamente o grande poeta, ainda que ele tenha recebido prêmios literários importantes. Não digo isso como um juízo negativo ou uma lamentação. Penso que seja algo normal quando surge um autor singular. A estranheza que Bruno causa a muita gente é explicável, especialmente naqueles que são competentes e familiarizados com a literatura da sua época. Porém, vejo a admiração por Tolentino crescer em novas gerações de literatos e estudiosos, e isso só vai aumentar.
É fácil imaginar que uma figura como ele, tão brilhante e carismática, atraísse bastante gente ao seu redor. Encontrei pessoas de talento enlevadas pelo Bruno. Incluo aí Marcelo Consentino, Érico Nogueira, Rodrigo Duarte Garcia, Guilherme Malzoni Rabello, Martim Vasques da Cunha, Jessé Primo, Juliana Perez… Esse era o núcleo mais constante, mas o grupo de admiradores do Bruno era significativo. A primeira referência que li ao Bruno foi em um artigo de Olavo de Carvalho, em 1997 ou 1998.
Havia os seus detratores, porque ele era muitas vezes ferino e mordaz, e não suportava a pose ou a ignorância metida. Daí muitas de suas inimizades, muitas delas surgidas por alguma impertinência da parte do Bruno. Contudo, acredito que as pessoas eram muitas vezes implacáveis com ele. Era fácil sentir-se diminuído ao seu lado, porque ele ofuscava qualquer um. Daí querer apontar seus defeitos e atacar suas supostas mentiras e seu histrionismo. Mas ele não era homem de guardar mágoas ou rancores; ao menos, conseguiu se libertar disso com o passar dos anos.
Bruno completaria 80 anos, se vivo fosse. Imagino que o que ele pediria mais que tudo seriam orações pela sua alma. Espero que ele possa encontrar Nossa Senhora, a quem tanto amava. No seu leito de morte, junto dos amigos que o acompanhavam, eu prometi a ele que cuidaríamos de sua obra, que sua vida tinha deixado um legado artístico que não se perderia. Deus o havia utilizado para algo enorme — dentro dos nossos parâmetros humanos, que nada são diante de uma boa morte ou da vida em graça —, e que era motivo para agradecer e ficar em paz. Agora, sua obra vale o que vale diante de Deus. Mas, exatamente por isso, devemos reconhecê-la para exaltar a beleza que há no mundo.
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A verdade e as mentiras de Bruno Tolentino
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por Guilherme Malzoni Rabello
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Julho de 2003, o auditório da Faculdade Santa Marcelina estava lotado quando, após sua palestra, Bruno Tolentino abriu o microfone para a plateia. Primeira pergunta: “Quais critérios o senhor usa para afirmar que a obra de autores como Mario de Andrade e outros brasilianistas não valem nada?” Bruno pensou por uns segundos e respondeu sério: “Meu filho, não tem critério nenhum. Aquilo é tão ruim, mas tão ruim que basta um mínimo de bom gosto pra perceber”. Assim teria terminado aquele encontro, com alguns indignados, outros curiosos, e a maioria dos alunos sem saber muito bem o que estava fazendo ali. Mas no final Tolentino disse que “quem quisesse continuar essa conversa” que aparecesse no dia seguinte às 19hs na livraria Cortês, em frente à PUC.
Eu havia perdido o famoso lançamento de O mundo como ideia — morava fora do Brasil — e não perderia por nada a chance de continuar a conversa. Naquele momento, verdade seja dita, eu tinha tentado ler O mundo como ideia, mas empacava sempre no início do prefácio; não era um leitor assíduo de poesia e não tinha nenhuma pretensão de escritor. Mas algo me dizia que havia ali alguma coisa muito importante, além da iconoclastia do autor — havia lido a famosa entrevista para Veja — que me era totalmente fascinante.
E foi assim que eu fui, junto com o Rodrigo Duarte Garcia e mais um ou dois amigos, naquele dia seguinte até a livraria Cortês. Chegamos lá às 19h e não havia sinal de mais ninguém. Mais meia hora, e nada. Até que o Rodrigo deu a ideia de batermos na porta de Bruno, que ele sabia morar ali ao lado na casa paroquial.
Bruno não estava em casa, mas o encontramos saindo da igreja, com um gorro velho na cabeça e uma Bíblia na mão. Falamos para ele que estávamos lá esperando, ele ficou meio desconcertado e disse “sim, sim claro. Vamos lá. Sabe como é, estou sem meus remédios esses dias e fico muito confuso”. Fomos à livraria e lá ficamos por algumas horas; contava-se nos dedos os presentes. Conversamos sobre Yeats, a tradução de Eliot e o desastre que era a poesia concreta. E no final ele disse para que voltássemos na semana seguinte.
Eu e o Rodrigo voltamos, chegamos à livraria e novamente não havia ninguém. Novamente fomos à casa paroquial, e após algum tempo Bruno apareceu na porta de pijama, todo desgrenhado e disse: “eu não estou em condições de sair, mas por que vocês não sobem?! Vamos conversar aqui”.
Pelas próximas seis horas o que se seguiu foi uma das conversas mais marcantes da minha vida. Não lembro quase nada do que foi conversado, mas lembro perfeitamente de como aquela situação era inclassificável, paradoxal. À importância de Machado de Assis se seguia o relato de como era traficar cocaína da América Latina aos EUA e como Pablo Escobar o conhecia como Juanito Bananas; da poesia de Auden ao relato de como ele havia conquistado a Miss World em Londres e como isso o levou a ser expulso da Polônia pelo então Cardeal Wojtyla; da teologia da história em São Boaventura ao caso com a mulher do roqueiro — tudo era ao mesmo tempo sério e brincadeira, tanto assim que simplesmente não fazia sentido perguntar quais das histórias eram verdadeiras ou não.
Essas conversas se repetiram mais uma ou duas vezes até que numa semana de agosto ele disse que não estaria lá na semana seguinte porque iria receber um prêmio na Academia Brasileira de Letras. Que voltássemos “no final do mês” para retomar as conversas. E assim ele sumiu.
Sem o poeta para conversar resolvi novamente tentar ler O mundo como ideia, e o prefácio que antes de conhecer o Bruno parecia um rococó indecifrável, agora era claro como a luz. Virou meu texto de estimação. Os poemas faziam sentido — primeiro individualmente, um aqui, outro ali, e então foram tomando conta do meu imaginário. O centro do que Tolentino tinha a dizer estava entendido e só então eu de fato comecei a entender a sua poesia. Cada poema e cada livro abordava sob um diferente ângulo os riscos que corremos e as tragédias que enfrentamos quando nos recusamos a reconhecer a nossa condição provisória — do indivíduo à História, da arte à política.
E tudo isso depois daquelas conversas malucas, porque conviver com o Bruno era assim: ele nunca se colocava acima de ninguém. Se rodeado de malandros, era mais malandro do que todos; se num convento de freiras, era o mais espiritual; se conversando com dois moleques ávidos por fofocas semi-literárias, semi-sexuais, dava-lhes Juanito Bananas e atrizes globais. Mas ao mesmo tempo, em cada piadinha tinha uma verdade profunda que muitas vezes passava despercebida, mas a lição estava dada.
A única coisa proibida era qualquer forma de pretensão. Se alguém tentava dizer o que não sabia, ou ser quem não era, o Bruno trucidava aquela pose numa única piada.
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Em janeiro de 2004 conheci o Martim Vasques da Cunha. Essa história são outras memórias, mas basicamente começamos a conversar por causa do Bruno e ficamos amigos. Até que, em meados daquele ano, o Martim ficou sabendo que o Bruno estava de volta a São Paulo. E lá fomos mais uma vez bater na porta do poeta (na verdade, na casa dos padres) sem ter sido convidados. Nesse dia, Bruno acabou vindo conosco para uma festa no bar O’Malleys, e obviamente a relutância original em sair (“mas, meu filho, eu sou um velho aidético”) mudou da água pro vinho e em pouco tempo Bruno era o centro das atenções da festa, de onde só saímos lá pelas 2h da manhã — momento no qual ele virou num gole o último pint de Guinnness.
Foi nessa época — e graças ao Martim — que começamos a discutir mais seriamente a obra do próprio Bruno. Foi nessa época que ele nos deu o manuscrito de A imitação do amanhecer, e lembro de uma tarde que passamos na sala de reunião da paróquia lendo o ciclo do Cervo da Lapônia com o Bruno explicando as referências, a origem e o significado da imitação do amanhecer…
E então ele mais uma vez sumiu. Desta vez foi para Itália porque, segundo ele, “o estavam chamando no Vaticano” — o papa Bento XVI teria lido O mundo como ideia e era muito importante que ele fosse. O natural seria pensar que, obviamente, era só mais uma mentira de um mentiroso contumaz. Mas nesse caso tem vídeo. Com saudades há mais ou menos um ano resolvi procurar e achei no YouTube. O vídeo está aqui. Trata-se do encerramento do Meeting de Rimini de 2004, o maior evento da juventude católica no mundo. Ele começa contando como conheceu Jean-Paul Sartre em Salvador e termina aplaudido de pé. Era como se o Brasil não merecesse Bruno Tolentino.
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“Sabe, meu filho, ter saúde me fazia um mal danado”. Depois da Itália Tolentino veio a São Paulo, onde ficou por pouco tempo e depois foi morar em Salvador por alguns meses. Voltou à capital paulistana entre 2005 e 2006, e então nossa convivência aumentou gradativamente.
Primeiro ainda na casa paroquial da PUC, onde ele terminou de editar A imitação do amanhecer — obsessivamente fazendo alterações até o último instante — e depois na edícula da casa da comunidade leiga no Pacaembu. Foi mais ou menos um ano e meio de convivência bastante frequente, a partir de algum momento já discutindo o que ele queria e o que não queria que fizéssemos com a obra dele.
Era claro que o fim não estava longe. De fato, a publicação de A imitação do amanhecer encerrou algo na vida dele, e uma das conversas mais marcantes que tive foi sobre isso. Ele ainda estava na casa paroquial e num determinado momento fez uma malcriação totalmente desnecessária com alguém que lá estava. Eu lhe chamei a atenção, como dizendo “Pra quê isso, Bruno?” Ele parou, ficou um tempo sem falar e me disse “sabe, meu filho, até os 40 anos eu vivi a vida de frozô — não levava nada a sério, fazia tudo errado; depois eu tinha uma obra para construir e era isso minha vida. Agora eu não sei mais o que fazer…”.
Mas os últimos meses de vida foram felizes. Ele era incrivelmente bem tratado na casa de uma comunidade católica onde morava com cerca de 10 mulheres — ele na edícula, elas na casa principal. Deu um curso sobre literatura Brasileira por um semestre que foi muito bem-sucedido, mas aí sua saúde piorou de vez. As últimas semanas foram difíceis e sofridas, mas enfim, quem fez uma obra inteira sobre a nossa dificuldade de encarar a finitude sabe que isso importa pouco.
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Faz treze anos que o Bruno morreu, nos ponteiros do relógio o tempo que passei com ele é quase insignificante, mas a saudade nunca foi embora. A vontade, quando tento resumir nossa convivência, é dizer que o Bruno foi a pessoa mais verdadeira que conheci.
Sim, ele foi também o maior mentiroso que já conheci. Mas isso era detalhe para animar a festa. No fundo eu nunca conheci alguém que tenha vivido pela verdade como o Bruno viveu. Ele era orgulhoso e vaidoso nos detalhes, mas profundamente honesto e humilde no que importava. Conviver com ele não era conviver com alguém que sabia mais do que eu — ele sabia melhor.
Mas chega de elegias, há um país etc e tal… e a responsabilidade agora é nossa. Essas memórias são só uma malfadada tentativa de homenagear um amigo. Para nossa sorte o que ele deixou é uma obra muito maior do que este aqui e agora de merda.
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Juliana P. Perez é professora do departamento de Letras Modernas da FFLCH/USP, onde coordena o Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Alemã.
Renato Moraes é professor de filosofia e direito na Universidade Católica de Petrópolis e autor do romance Claridade (Editora Record).
Guilherme Malzoni Rabello é um dos coordenadores da edição da obra de Bruno Tolentino.