Tradição e Mito em ‘O Gigante Enterrado’, de Kazuo Ishiguro (II)

O romance de Kazuo Ishiguro é povoado de uma constelação de mitos que formaram o imaginário e a literatura britânicos.

por Fabrício Tavares de Moraes

Na primeira parte deste ensaio, falamos sobre a continuidade e a descontinuidade da tradição literária inglesa na obra de Kazuo Ishiguro, escritor agraciado este ano com o prêmio Nobel. Mais especificamente, debruçamo-nos sobre a forja mitológica de seu romance mais recente, O Gigante Enterrado.

Ora, o crítico brasileiro Alfredo Bosi comenta numa de suas obras que, no império tecnocrático da modernidade, o sonho, a infância, o mito e a poesia são talvez as únicas instâncias de refúgio para o homem ainda não inteiramente destituído de sua sensibilidade. Se hoje há de fato, como já escrevera Morris Berman, um reencantamento do mundo – termo que, tendo se tornado lugar-comum, compreende desde as crendices ordinárias até ímpetos mais vigorosos ao transcendente –, os apelos contemporâneos ao mito constituem-se como fenômeno ao menos digno de atenção por parte dos mais desencantados (no sentido weberiano) entre nós.

E, de fato, como dissemos anteriormente, Ishiguro empenha-se na criação de uma mitologia literária mais do que numa literatura mitológica, embora um esforço em direção a esta última também se faça presente. Dizemos isto porque toda mitologia contemporânea é sempre uma tentativa deliberada, talvez mecânica, de reordenação de um mundo que se dilacera –  é a construção consciente de um polo ou origem que conceda unidade e sentido a tudo o mais. É por isso que Yeats, no poema “Segunda Vinda”, percebendo que “tudo se desmorona”, anuncia a figura mítica de uma esfinge colossal, um anticristo quimérico, marchando ameaçadoramente após despertar de seu sono pétreo.

O romance de Kazuo Ishiguro, todavia, é povoado de uma constelação de mitos que formaram o imaginário e a literatura britânicos. Citamos Blake no ensaio anterior, porém o romancista também se lança em mitos nacionais ainda mais remotos, trazendo para seu projeto o mundo feroz e brutal de Beowulf, o épico do século X. É curioso que outro autor também agraciado com o prêmio Nobel, o irlandês Seamus Heaney, não só retomou alguns elementos do mundo de Beowulf e da poesia anglo-saxã (principalmente a aliteração) mas também brindou-nos, antes de sua morte, com uma nova e primorosa tradução da obra.

Em O Gigante Enterrado, o guerreiro Wistan, um saxão criado e treinado por bretões, recebeu a missão de eliminar a dragoa Querig, para que seu rei prosseguisse com uma guerra final e absoluta contra os bretões, que traíram um pacto solene no passado. O casal Axl e Beatrice conhece Wistan numa pequena aldeia bretã, momentos após sua caçada contra ogros que haviam raptado uma criança:

“A parte visível do seu rosto estava coberta do que Axl reconheceu como minúsculos pingos de sangue, como se ele tivesse acabado de atravessar uma névoa fina desse líquido… Axel percebeu também que o guerreiro estava segurando algum objeto na dobra do braço… Só então foi que ele se deu conta de que o que eles estavam vendo não era uma cabeça de forma alguma, mas sim uma parte do ombro e do braço de alguma criatura semelhante a um ser humano, mas muito maior do que uma pessoa normal. O guerreiro, na verdade, estava segurando o seu troféu pelo coto, perto dos bíceps, com a ponta do ombro para cima, e naquele momento Axl viu que o que ele tinha confundido com mechas de cabeço eram tendões pendendo do corte que separara aquele segmento do resto do corpo.”

 O excerto, ao que parece, ecoa os viscerais e célebres versos de Beowulf:

…E o monstro, que só
Vivia da maldade e rancor pela raça
humana – o inimigo de Deus –, percebeu que
suas forças lhe falhavam. O destemido
descendente de Hygelac tinha-o tenazmente
preso pela mão; e cada um odiava o hálito
do outro!
Uma brecha abriu-se então no ombro
de Grendel; os músculos pularam para fora
e as juntas, estalando, partiram-se. A
Beowulf a vitória foi dada, e Grendel partiu
para seu covil nos pântanos sombrios e
pauis: seus dias estavam contados![1]

Os ombros de ambos os monstros são arrancados de forma truculenta, e a própria camada fônica das duas passagens acima contribuem para a atmosfera de atrocidades que permeia ambos os universos. De fato, no romance, a pretensa paz – possibilitada pelo esquecimento resultante do miasma expirado pela dragoa – é ocasionalmente irrompida por essas eclosões de violência. O próprio sir Gawain, sobrinho e cavaleiro do lendário do Rei Artur, vagando como um Dom Quixote pelos bosques bretões, é aterrorizado por imagens do passado que envolvem a matança de crianças e idosos.

A bem da verdade, o relacionamento de Axl e Beatrice é um campo no qual a violência havia sido neutralizada tanto pelo amortecimento da velhice quanto (novamente) pelo esquecimento. O final ambíguo é talvez uma confissão de que a verdade histórica, isto é, a exumação das coisas tal como elas efetivamente sucederam não necessariamente traz consigo a reconciliação ou a serenidade.

Ademais, como alguns críticos apontaram, há nesse romance um ensaio de um novo gênero; afinal, trata-se de uma narrativa maravilhosa (geralmente associada ao universo juvenil) da senilidade. E aqui há também a retomada da obra de um outro grande autor de literatura de fantasia, mais especificamente o conto A chave dourada, de George McDonald, em que um casal de crianças, que munidas da chave dourada encontrada ao fim de um arco-íris, caminham (e enquanto isso envelhecem) rumo ao lugar de onde as sombras caem.

Porém, se para McDonald, em sua visão cristã, esse destino do casal é provavelmente a morada celestial, para Kazuo Ishiguro, porém, Axl e Beatrice dirigem-se para “uma ilha cheia de bosques e riachos aprazíveis, mas que também era um lugar de estranhas características… muitos já fizeram a travessia até lá, mas, para cada uma das pessoas que lá habita, é como se ela vagasse sozinha pela ilha, sem ver nem ouvir os vizinhos”.

Em resumo, no conto de fantasia do escocês, que posteriormente influenciou toda uma geração de escritores do gênero (Carroll, Lewis, Chesterton e Tolkien), um casal de crianças, que se separam em determinado momento da narrativa, amadurece e reúne-se novamente em seu glorioso destino comum. Já em Ishiguro, um casal de idosos, que permaneceram firmemente apegados a cada passo de sua caminhada, ao que tudo indica separa-se ao final da narrativa e expõe certa puerilidade oculta de seus sentimentos. A questão obviamente não se resume ao fato de uma literatura sobre a infância em contraposição a uma literatura sobre a maturidade, respectivamente.

Mais do que isso, o mundo de O Gigante Enterrado, a despeito de seu lirismo, é povoado de vileza e decadência. Nele, não somente as lembranças dos homens, mas o próprio mundo desvanece. À vista disso, Ishiguro encarrega-se de um projeto no qual toma para si os vários mitos, fábulas e fantasias de uma tradição literária para servirem de escoras a uma memória, individual e coletiva, em colapso.

[1] Beowulf. Tradução Ary Gonzalez Galvão. São Paulo: Hucitec, 1992. p. 61.

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