por Thiago Blumenthal
Em seu texto de agradecimento pelo Nobel de literatura recebido há dois anos, Bob Dylan faz um levantamento de suas grandes referências. Há entre elas Moby Dick e uma sugestão sobre a maneira correta de ler o romance, acompanhando as aventuras em alto-mar em busca da gigantesca besta-fera. Dylan nos conta de um livro fascinante, repleto de drama e de diálogos dramáticos, com um protagonista egomaníaco perseguindo sua nêmesis; um objetivo abstrato, sem nenhuma concretude ou algo definido. Para o capitão Ahab, Moby é a imperatriz dos mares, o mal personificado. Basta ler um terço do livro para saber de antemão o que vai acontecer.
Quando Dylan nos fala de Moby Dick, temos um paralelo com o narrador que apenas diz seu nome mas não diz de onde vem, “it’s not down on any map”, relata misteriosamente. Locais verdadeiros não se encontram nos mapas. De onde veio Bob Dylan? Do sul, dos Estados Unidos profundo, de Nova York, de Los Angeles, onde reside e frequenta a sinagoga já ao fim da vida, e onde realizou o bar-mitsvá de seu filho Jacob. De onde veio Bob Dylan? Sabemos e não sabemos. True places are not down on any map, ever.
A arte é uma adaptação especificamente humana, que biologicamente regulamenta a nossa espécie. Por isso é plausível investigar através de uma leitura neurolinguística como as histórias se originam na mente de seus autores e quais os seus propósitos ao contá-las. Se a evolução pode explicar as bases do comportamento humano, do sexo ao assassinato, pode explicar também sua cultura e sua liberdade, por meio de uma abordagem linguística.
Desde a arte representada nas cavernas de Chauvet, quaisquer tipos de manifestações artísticas parecem estar destinadas a cativar o olhar dos artistas, de seus pares e de seus espectadores. Porque um conjunto de cavalos desenhados numa parede de uma caverna move o espírito daqueles que os observam, a começar pela sensação de algum tipo de força invisível que se manifesta através deles. A escrita, apesar de ser muito mais jovem que a pintura, possui os mesmos elementos da narrativa, da arte de contar uma história, de registrar um acontecimento, um dado sobre o nosso universo e seus mistérios. Vem de uma demanda cognitiva de surpreender nossa própria mente e a dos outros; do prazer de uma descoberta que pode ser compartilhada. A arte gera uma confiança de que somos capazes de transformar o mundo a nosso bel-prazer, de que não precisamos aceitar uma dada realidade, mas podemos, sim, transfigurá-la, recombinando nossa criatividade cumulativa ao longo do processo evolutivo.
No caso de Dylan, a grande pergunta é como a pseudo-informação da ficção é preferível à informação verdadeira? Por que aceitamos esse pacto que o artista nos propõe, como uma metamorfose presa num quarto que nos causa horror, e não desconfiamos de sua verossimilhança. Em The times they are a-changin, Dylan se dirige a determinadas castas sociais em cada uma das estrofes e tenta profetizar, como um Ezequiel bíblico, que “the chance won’t come again” [a oportunidade não virá de novo]. É de fato uma questão de protesto, como muitos de seus críticos categorizam, mas é muito mais do que isso. Trata-se de um jogo linguístico proposto ao ouvinte que aponta para a aparente fraqueza da memória.
Para explicar a ficção de Dylan integralmente, não podemos nos reter apenas ao seu aspecto narrativo. Porque a narrativa de Dylan depende de uma compreensão de determinados eventos, históricos, naturalmente, mas também internos ao relato. Ela nos introduz a um sequenciamento antes mesmo de aplicarmos o filtro do que é ficcional e do que não é. Há um processo de meta-representação: precisamos entender não apenas o que está sendo representado ali, mas também entendê-lo como representação de um mundo que é completamente mental. Nesse processo o “apetite pela verdade” se transforma, tal como acontece já nos primeiros estágios da infância.
Um primeiro elemento é o de estratégias para despertar a atenção. Em The times, Dylan o faz com vocativos bem explícitos a quem procura se dirigir: escritores, críticos, senadores, congressistas, pais e mães. Mas mais do que isso, é a uma audiência geral que vai se reunir ao seu redor para ouvir as boas (ou más) novas: “Come gather round people wherever you roam” [juntem-se ao meu redor de onde quer que vocês vaguem]. À moda bíblica, ele convoca as pessoas para que ouçam o que ele tem a dizer. Eis aí a primeira estratégia de atenção.
Contar uma história, profetizar sobre um futuro, pode comandar a atenção de outras pessoas ao reproduzir uma informação social de alta voltagem. Enquanto os gregos canonizaram formas épicas, com conteúdo épico, com suas histórias de deuses, heróis, mortais, com Homero tendo sobrevivido aos tempos – já diria Aristóteles que somente os versos de Homero mereciam sobreviver –, outros tempos e outros povos criaram suas maneiras de canonizar suas histórias. É na relação entre tradição e inovação que Dylan, ao tomar para si o verso profético do Antigo Testamento, obteve destaque.
A competição por atenção, que sempre foi um aspecto da vida consciente, força o autor a expor seu selo de autoridade, mesmo a partir de uma história que é familiar ao homem por milênios a fio. Quando Dylan profetiza um grande dilúvio que deixará a cada um “drenched to the bone” [encharcado até o osso], ele une uma história tradicional, do grande dilúvio bíblico, a uma maneira inovadora de relatá-lo, modelado aos tempos modernos. É bom que você saiba nadar.
Dylan expõe, de maneira muito consciente, a vaidade das palavras na segunda estrofe, quando se dirige especificamente aos que têm por ofício escrever. Tudo o que for talhado em pedra ou impresso em um jornal será subvertido por uma nova ordem. Vale-se de seu próprio gênero (a profecia) para desmenti-la. Eis a peculiaridade do relato de Dylan: enquanto se dirige a quem profetiza, ele também profetiza. Como acreditar em Dylan? Ele decerto diria para não o fazermos, mas a inovação em sua forma de profetizar já foi compactuada pelo ouvinte. Não importa o que ele tenha a dizer, se ele está se desmentindo em suas próprias palavras, já estamos intimamente ligados àquele relato. Ao criar um personagem-profeta que sai disparando a notícia de que não haverá nenhum outro momento para que se salvem, Dylan reatualiza a linguagem épica de um Gilgamesh, de um Beowulf e coloca seu espectador contemporâneo, unido em um grupo de pessoas que se juntou para ouvi-lo em um patamar especial, que o destaca dos demais que estão fora do grupo e portanto não podem ouvir nem compartilhar daquele mesmo sentimento.
Nossa predisposição pela ficção parece, a princípio, contraproducente em termos biológicos, diferentemente de nossa capacidade de uma narração verdadeira. A ficção, como toda arte em geral, pode ser explicada em termos de jogo cognitivo com um padrão – nesse caso, com padrões de informação social – e em termos da singular importância da atenção compartilhada do ser humano. Uma abordagem biocultural da ficção foca especialmente na compreensão compartilhada que nos torna aptos e “ávidos” por contar e ouvir histórias. É o que acontece com Bob Dylan, que opera sob diferentes premissas para atrair a atenção de seu ouvinte/leitor.
Apesar da virada linguística do fim do século XX, a narrativa não depende de linguagem. Ela pode ser expressa por mímica, dança, livros com figuras (sem palavras, como quer a Alice de Lewis Carroll) ou filmes. E ainda que tais narrativas sejam elaboradas pela linguagem, elas não precisam sê-lo.
Adultos sem linguagem no México – surdos, sem nenhuma compreensão da linguagem de sinais, vivendo juntos à margem da sociedade – usam mímicas narrativas um com o outro. Eles assim o fazem, e sobrevivem, somente porque mesmo sem linguagem o homem compartilha uma habilidade para entender e representar eventos de variadas e complexas maneiras.[1]
A compreensão de acontecimentos constrói uma hierarquia de processos cognitivos em forma de informação que satisfaz um padrão de convergência neural, e esses padrões, nesse nível, atingem uma informação de alta potencialidade, em regiões de convergência.
As mentes existem para prever o que vai acontecer em seguida. Elas minam o presente atrás de pistas que podem refinar com a ajuda do passado – o passado evolutivo das espécies, ou o passado cultural de determinada população, e também o passado de experiências de um indivíduo – a fim de antecipar o futuro imediato e então orientar a ação a ser executada. Para entender os acontecimentos assim que eles acontecem, em um tempo limitado, com conhecimento limitado, as mentes evoluíram a ponto de registrar as regularidades pertinentes a espécies em particular e a fazer inferências de acordo com uma determinada heurística.
Compartilhamos com outros animais um rudimentar sentido de espaço, construído em nosso senso de equilíbrio, que monitora nossas posições e nossos movimentos. Nossa compreensão se torna mais fina conforme encontramos não apenas um espaço, mas objetos dentro desse espaço. É como Dylan canta em “don’t speak too soon, for the wheel’s still in spin and there’s no telling who that it’s naming” [não fale cedo demais, pois a roda ainda está girando e não há como dizer quem ela nomeará].
Em outras palavras, quanto mais flexível for uma espécie, no caso a espécie humana, mais os indivíduos precisam descriminar, conhecer a posição dos outros em relação a si mesmos ou ainda a terceiros. Reconhecemos um outro e guardamos a feição desse outro por muitos anos, mas a emoção satura o reconhecimento. Como uma parte automática de um processo sensorial, a amídala, o roteador emocional do cérebro, nos anexa um peso afetivo a feições e a vozes importantes o bastante para que nos lembremos delas posteriormente.
“There’s a battle outside and it’s raging” [há uma batalha lá fora e está enfurecida], canta Dylan, ao mesmo tempo em que enumera uma lista enorme de elementos cognitivos que serão subvertidos sob uma suposta nova ordem, depois de um terrível dilúvio, tema esse que é muito caro ao cantor americano. Como em geral adquirimos uma “teoria da mente” naturalmente, sem nenhum esforço, deixamos de notar qualquer coisa que possa ser dominada. Assumimos simplesmente que as situações são tais quais se apresentam, e é aí que reside o grande erro humano.
[1] Brian Boyd.