Ver o visível: a importância da crítica para Marcel Proust

Se os críticos do tempo do classicismo desejavam conhecer tão de perto segredos de ateliê a ponto de dominarem as engrenagens da Beleza, a tentação dos hipercríticos contemporâneos é a de deixar-se encantar pelo jogo teórico e interno da própria crítica.
“Vista de Delft”, de Johanes Vermeer

por Rodrigo de Lemos

A morte do escritor Bergotte em uma exposição de arte, em A Prisioneira (quinto tomo de Em busca do tempo perdido), evoca um tema recorrente em Proust: o fascínio pela imortalidade literária e a consciência da sua fragilidade. Em surdina, o episódio chama a atenção para a importância desse consórcio amoroso entre a palavra e a imagem que deve ser a crítica de arte.

Longamente enfermo, Bergotte troca enfim o leito pelo museu, movido pelo artigo de um crítico que assinala, em Vista de Delft, tela de Vermeer, a existência de um “pequeno pedaço de parede amarela (da qual não se lembrava) tão bem pintado, que era, tomado em si, como uma preciosa obra de arte chinesa, de uma beleza que se bastava”. Frente ao quadro, que ele acreditava conhecer muito bem, Bergotte, “graças ao artigo do crítico, observou pela primeira vez os pequenos personagens de azul, que a areia era rosa, e por fim a preciosa matéria do pequeno pedaço de parede amarela”. A contemplação dessas novidades tantas vezes despercebidas é suspensa por um ataque derradeiro, que o deixa morto ao chão do museu. “Morto para sempre? Quem pode dizer? […] Enterraram-no, mas, durante o velório, nas estantes iluminadas, seus livros, dispostos três em três, velavam como anjos com as asas abertas e pareciam, para aquele que não existia mais, o símbolo da sua ressurreição.”

O episódio tem do que surpreender. Baseado nas figuras dos escritores célebres da juventude de Proust que foram Anatole France e Paul Bourget, o personagem de Bergotte é o tipo mesmo do literato francês da Terceira República. Habitam-no altas qualidades do espírito, e ele é mestre de um estilo refinado, de uma sensibilidade suscetível a todas as delicadezas da ideia e da sensação, de uma inteligência viva e sutil. É esse Bergotte que, ao fim de uma existência dedicada ao cultivo de si pelo cultivo da palavra e do olhar, não enxerga, em um quadro de há muito frequentado e amado, não apenas um detalhe como é, de fato, o “pequeno pedaço de parede amarela” (em realidade, um telhado), mas nem mesmo elementos da composição tão evidentes quanto os personagens de azul e as areias rosadas, ambos no primeiro plano.

Por certo, não é de se suspeitar em Bergotte pouco trato com as coisas da arte, nem alguma distração. É que o ver em arte tem seu tempo próprio. Não se trata aí, é claro, do ato quotidiano de ver, imbricado na ação que o submete a seus fins e que pode dele prescindir: uma vez automatizada a posição da tecla, não é mais necessário vê-la para projetar um acorde. O ver em arte só se dá quando o espectador faz da coisa vista algo de seu. Tão mais ele vê um quadro quanto mais ele o conhece, e tão mais ele o conhece quanto mais imediatamente o quadro está disponível à memória afetiva. Bergotte havia visto, no primeiro sentido, os personagens e as areias rosadas, mas foi “graças ao artigo do crítico” que ele os fez coisa sua; para que eles fossem coisa vista, o artigo os transformara em coisa dita.

Daí a importância da crítica. A palavra do crítico participa, juntamente com a imagem criada pelo artista, do ato de ver o visível, de conhecer os seres no que por vezes é neles mais impenetrável: aquilo que eles revelam de si, os meandros da sua aparência sensível.

Fica implícito ao episódio da morte de Bergotte um reconhecimento desse valor da crítica. A exaltação do artista criador a relegou muitas vezes a um papel quase vergonhoso: é o clichê do crítico como pintor frustrado. Tudo se passe como se a pintura se fizesse por si, fosse vista em si, chegasse por si mesma ao público. Essa crença oblitera a vivência artística como algo de inevitavelmente mediado. E a crítica, a instância mediadora por excelência, tem consequências não apenas na conservação, no julgamento e na difusão de uma obra, mas igualmente na sua fruição pelo público e, por que não?, no ato mesmo em sua origem.

Os períodos em que a crítica se encontra sob ataque correspondem àqueles em que ela falha nessa mediação, por excesso ou por ausência. A revolta romântica foi uma expressão desse sentimento. Havia uma ingerência percebida como excessiva dos críticos na criação artística. Em um texto polêmico de 1829, “Dos críticos em matéria de arte”, Delacroix denuncia o poder usurpado pelo crítico para legislar sobre o público e sobre o criador: “Esses dragões vigilantes estão lá para advertir, público, sobre como vocês devem fruir; vocês, músicos, pintores e poetas, para dirigi-los sobre o palco, por meio dos fios cujas pontas eles seguram, e para encorajar seus esforços, se for o caso. Não percam a coragem se, em meio ao mais doce acesso de vaidade e quando vocês se crerem certos do triunfo, sentirem-se bruscamente puxados pela coleira.”

É que os críticos do tempo de Delacroix haviam se tornado anacrônicos. Seus hábitos, suas inclinações, a crença no seu próprio papel, tudo neles era relíquia de uma época pretérita. A relativa homogeneidade da elite francesa para a qual fora produzida a grande arte dos séculos clássicos permitia também uma relativa homogeneidade dos gostos. Daí ser possível o estabelecimento de regras artísticas. Essas regras eram amplamente reconhecidas nesses meios, e todo artista era em alguma medida um crítico, todo espectador era em alguma medida um crítico, e o crítico ele mesmo pairava como o nomothétes do sistema. Tocqueville observa que a chegada da democracia expande o público de arte, diversifica os gostos e põe em xeque as normas anteriores, que não se apoiam doravante em grupo social algum – a não ser nos próprios críticos, que aferravam-se em faze-las valer sobre o novo público e sobre os novos artistas. São estes últimos os românticos que proclamarão precisamente a caducidade de toda norma. Crítica e arte viverão um divórcio que só será superado com o triunfo da crítica romântica, com a geração dos Baudelaire e dos Sainte-Beuve, os quais saberão distinguir na arte romântica suas tendências profundas.

Se a crítica padecia de intervencionismo à época do romantismo, hoje, ela pena a se fazer respeitar por uma tendência à omissão. É o caso em parte da crítica universitária. Nos estudos literários, por exemplo, o extravasamento das metodologias das ciências humanas para a crítica (a dita nouvelle critique) deu, por certo, belos frutos nas obras de um Roland Barthes ou de um Jean Starobinski. No cenário atual, por vezes, isso redunda em uma teorréia que acaba por obscurecer os textos primários e eludir sua leitura direta e escrupulosa. Explicam parcialmente essa situação as condições próprias à universidade numa sociedade em que a transmissão cultural deteriorou-se: já nos anos 80, José Guilherme Merquior observava o quanto a hipertrofia teórica serve a suprir as lacunas de erudição dos estudantes que chegavam ao ensino superior com uma parca cultura literária.

O mesmo, por certo, ocorre em parte nos departamentos de crítica de arte, e a teorréia na área ganhou no articulista conservador Roger Kimball um opositor com o livro The Rape of the Masters. Se os críticos do tempo do classicismo desejavam conhecer tão de perto segredos de ateliê a ponto de dominarem as engrenagens da Beleza, a tentação dos hipercríticos contemporâneos é a de deixar-se encantar pelo jogo teórico e interno da própria crítica, por vezes à revelia da obra, pouco revelando de suas fibras e de sua vida próprias. Não deveríamos esquecer que bastara uma observação sobre “um pequeno pedaço de parede amarela” em um artigo de jornal para que o velho Bergotte distinguisse, numa tela já há muito conhecida de Vermeer, deleites insuspeitados – e que missão mais alta poderia incumbir à crítica?

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