por Alexandre Hasegawa
“Dona fea, velha e sandia!” Talvez o mais conhecido refrão das cantigas de escárnio e maldizer seja um bom começo para tratar da poesia iâmbica, que não teve a mesma fortuna de outros gêneros, como a épica, a tragédia, a comédia, a lírica ou mesmo a elegia. Poesia de censura, de invectiva, em que o cômico está presente – outro aspecto que se encontra na cantiga “ai, dona fea, foste-vos queixar” (B 1485; V 1097) de João Garcia de Guilhade (séc. XIII d.C.) –, o gênero iâmbico se caracteriza pela elocução baixa, violenta, em que o calão se faz presente, vituperando os viciosos. O sexo e a comparação com animais são elementos essenciais para o rebaixamento do inimigo, do adversário, do canalha que será eternamente conhecido por seus atos condenáveis. Tomado pela raiva, o poeta, por vezes, deseja uma única coisa: eliminar o oponente. Maldições, imprecações, xingamentos, ridicularização abundam nos versos desses poetas. A descrição nua e crua dos atos sexuais e escatológicos traz, para alguns, repulsa; trouxe, para o gênero, censura! Não à toa, como dissemos em nosso primeiro texto desta série para o Estado da Arte – Estadão, uma interpretação medieval das obras de Horácio, que as relacionava a fases da vida, deixou propositadamente um livro de fora: os Epodos.
Como se não bastasse a mão do censor, a própria Fortuna não foi generosa com o iambo. Há fontes antigas que nos dão notícia de um segundo livro da Poética de Aristóteles, como é bem conhecido. Ao que parece só Umberto Eco conseguiu o manuscrito e escreveu o extraordinário O nome da Rosa, em que Jorge de Burgos envenena o livro que trataria do riso. Divulga-se, em geral, que esse segundo livro seria sobre a comédia, assunto aliás anunciado no primeiro livro da Poética, no início do sexto capítulo (1449b). No entanto, em um dos manuscritos do texto aristotélico sobrevivente, embora mutilado, lê-se ao final da obra: “a respeito dos iambos e da comédia […].” Aristóteles, portanto, teria tratado não só do gênero cômico, mas também do iâmbico, como fez, brevemente, no capítulo 5 da Poética, mostrando a relação entre esses primos pobres da poesia. “Que sorte teria o iambo na história se tivéssemos hoje esse segundo livro, meu caro Adso?”, poderia perguntar nosso Sherlock medieval, Guilherme de Baskerville.
Sejamos, porém, justos: embora censurado, desprezado ou ignorado por um bom tempo, o livro dos Epodos de Horácio foi preservado em manuscritos medievais e podemos lê-lo na íntegra, em latim ou em traduções nas mais diversas línguas, graças aos copistas da Idade Média. Publicada por volta de 30 a.C., quando Horácio já não é mais um poeta estreante, a obra iâmbica se insere, diferentemente das Sátiras, como vimos no último texto publicado aqui, em uma tradição grega bem estabelecida, que remonta, pelo menos, ao séc. VII a.C., com Arquíloco de Paros, considerado o inventor do gênero e declarado modelo do poeta latino em mais de uma passagem de seus versos (Epístolas 1.19.23-25; Epodos 6.13; Sátiras 2.3.12).
Mas antes dos Epodos horacianos, voltemos, primeiramente, às origens, ao inventor. O nascimento do iambo, segundo algumas fontes antigas, se deu pelo rompimento de um pacto estabelecido entre Arquíloco e Licambes (“passo do lobo”?), que prometera ao primeiro a filha Neobula (“novo desejo”) em casamento. Por razão desconhecida, Licambes desiste do compromisso, o que faz surgir a raiva no poeta, origem dos versos violentos e invectivos contra pai e filhas, que, envergonhados, terminam por se suicidar, enforcando-se. O poeta de Paros, desde então, passa a ser caracterizado como extremamente agressivo entre gregos e latinos: Cratino, em sua peça Arquílocos, o caracteriza como a “salmoura de Tasos” pela sua acerbidade (fr.6 K.-A.); Píndaro (ca. 522-443 a.C.) o descreve (Píticas 2.52-56) como “vituperador”, que se alegra “com ódios de palavras pesadas”; Horácio, na Arte Poética (v.79), afirma: “a raiva armou Arquíloco com o iambo que lhe é próprio” (Archilochum proprio rabies armauit iambo); Getúlico, epigramatista do séc. I d.C., diz (Antologia Palatina 7.71) que “a musa aguda” de Arquíloco está banhada em “fel viperino”; Ovídio, em seu Contra Íbis (vv.53-54), anuncia ao adversário que, se for necessário, lançará “dardos tingidos em sangue de Licambes”. Poderíamos arrolar outras fontes, mas deixemos a palavra com o próprio Arquíloco sobre sua atitude iâmbica (fr.126 West): “sei uma coisa grande: a quem me trata mal, responder com terríveis males” (?? ?? ????????? ????, /??? ????? <??> ??????? ??????? ???????????????????).
As personagens – inventadas ou não por Arquíloco –, com seus nomes significativos, como destacamos acima, figuram nos fragmentos supérstites do poeta de Paros, onde nasceu, e Tasos, onde viveu. A provável abertura dos epodos – dístico, em geral, formado por um verso maior seguido de um menor –, na hipotética edição helenística que Horácio leu, põe em cena o inimigo Licambes, anunciado alvo de ridicularização e ironicamente censurado pela caracterização inicial como “pai”, já que, se tivesse mantido a palavra dada, teria sido “pai” do poeta (fr.172 West):
Pai Licambes, que é isto que pensaste?
Quem perturbou teus pensamentos,
em que outrora te apoiavas? E agora pareces
ser motivo de muito riso aos cidadãos.
A ruptura do pacto seria mencionada na sequência, no fr.173 West, em que Arquíloco, diz: “violaste grande juramento, / o sal e a mesa”. A fábula, elemento importante nos versos do iambógrafo, que conta a história da raposa (Arquíloco) e da águia (Licambes), seria narrada em seguida (frr.174-181 West). De acordo com Esopo (ca. 620-564), que também transmite a fábula (1 P.), os animais fizeram um pacto, mas a águia o rompeu, quando comeu os filhotes da raposa. Até aqui “os terríveis males” prometidos pelo poeta não parecem tão violentos nem causam propriamente repugnância. No entanto, em uma das mais recentes descobertas, o chamado Epodo de Colônia (fr.196a West), publicado pela primeira vez em 1974 (“Ein Archilochos-Papyrus”, ZPE14, 97-112) por R. Merkelbach e M. L. West, há violento vitupério contra Neobula e descrição talvez de estupro supostamente contra a irmã menor da invectivada para se vingar da traição. O próprio editor do texto, Merkelbach, entendendo o poema como relato histórico, descreveu Arquíloco como ein schwer Psychopath (“um grave psicopata”). Porém, West, o outro editor, situa o relato nas convenções genéricas do iambo. Com mais humor, Peter Green intitulou, parodicamente, o poema como The Last Tango on Paros (Times Literary Supplement, 14 marzo 1975, p. 272). Para saciar a curiosidade, reproduzimos dois trechos do fragmento (vv.24-28; 42-53), na tradução de Paula da Cunha Corrêa, especialista na obra de Arquíloco (entre colchetes o que é suplemento):
[…]. Isto agora sabe: Neobula,
que outro homem a leve. 25
Aiai, ela está passada, tem o dobro [da tua idade,
a flor virginal murchou,
e] a graça que antes tinha.
[…]
Is]so eu dizia e a virgem, entre flor[es
viçosas tomando,
reclinei, e com o [meu man]to
macio cobrindo-a, o seu pescoço nos braços seguran[do, 45
…] … ela pa[r]asse e,
como uma corç[a…
sei]os, com as mãos, levemente toquei,
…] revelava (?) a jovem
pele, o advento da juventude 50
e todo] o belo corpo apalpando,
].. lancei a força [branca,
tocan[do] de leve [o pelo] dourado.
Não pretendemos aqui discutir o texto, que gerou, dado o estado muito fragmentário do papiro, inúmeras e contraditórias leituras. Interessa-nos apenas apontar a censura a Neobula, valendo-se de um topos frequente do vitupério (vv.26-7): “ela está passada” (???????), ou seja, há decadência física, que, em geral, coincide com os excessos eróticos (“a flor virginal murchou”); é um fruto muito maduro ou, em linguagem iâmbica, “é só bagaço”! Por fim, há o relato da relação sexual com uma virgem que se encerra com o gozo do poeta (“lancei a força [branca”). Se, por um lado, a linguagem mais baixa dos trímetros é evitada aqui, como aponta a crítica, por outro, já se afiguram “os terríveis males” anunciados no fragmento citado inicialmente.
Papiro de Colônia (séc. I-II d.C.), que contém o fr.196a West, um dos epodos de Arquíloco
No mesmo papiro de Colônia, encontram-se cinco versos de outro epodo (fr.188 W.) em que se lê nova invectiva contra uma mulher, caracterizada claramente como velha – para muitos, trata-se de Neobula. A velhice – talvez a precoce degeneração, segundo a interpretação de alguns críticos – é resultado da promiscuidade da viciosa personagem, cujas rugas, que se tornarão lugar-comum na poesia iâmbica, são a imagem da terra devastada. Citemos os dois primeiros versos, já transmitidos separadamente por gramáticos antigos:
Não mais floresces na tenra pele, pois já resseca
em rugas; de perniciosa velhice devasta
[…]
Sem fazer imitação servil, Horácio propõe como modelo para os Epodos o poeta de Paros, mencionado em Epístolas 1.19.23-25. A passagem é importante não só pela declaração da matéria não imitada de seu paradigma, mas, sobretudo, diríamos, por aludir à maneira como se faz a imitação de Arquíloco. Depois de censurar os maus imitadores, esse gado servil (v.19: seruum pecus), que reproduzem mais os vícios do modelo (Epístolas1.19.17: exemplar uitiis imitabile), que provocam ora a bile, ora o riso no poeta (vv.19-20: saepe/ bile, saepe iocum uestri mouere tumultus), Horácio, caminhando por estrada vazia, afirma ter sido o primeiro a apresentar aos romanos os iambos de Arquíloco (vv.23-25):
[…] Parios ego primus iambos
ostendi Latio, numeros animosque secutus
Archilochi, non res et agentia uerba Lycamben. 25
[…] Eu, por primeiro, os pários iambos
mostrei ao Lácio, seguindo os ritmos e os ânimos
de Arquíloco, não a matéria e as palavras que agridem Licambes. 25
A passagem coloca muitas questões importantes para a discussão dos Epodos de Horácio e, infelizmente, não podemos dar conta de tudo neste breve espaço. No entanto, para os propósitos deste texto, convém lembrar, primeiramente, que a reivindicação do primado (v.23: ego primus), embora tópica, um lugar-comum nos poetas augustanos, faz pensar em Catulo, que, certamente, antes de Horácio, imitou Arquíloco, por exemplo, no poema 40, em que, ao declarar fazer iambos (v.4: in meos iambos) contra o “miseravelzinho Ravido”, tem como modelo o fr.172 W do iambógrafo grego, citado acima. Porém, Catulo, nesse e em outros versos que declara fazer iambos (cf. 36.5; 54.6), jamais usa o dístico epódico do poeta de Paros, trímetro seguido por dímetro iâmbico, como faz sistematicamente Horácio nos Epodos(1-10); antes, usa sempre o hendecassílabo falécio. Se se trata ainda de discutir o primeiro a apresentar Arquíloco aos romanos, já o encontramos mencionado (fr.698 Marx) e imitado (fr.699 Marx) em Lucílio, que parece retomar, no último fragmento citado, o fr.128 West.
Na sequência do passo epistolar (vv.24-25), Horácio distingue o que é imitável no paradigma (“ritmos e ânimos”) e o que, por considerar vicioso, deixa de lado (“matéria e palavras que agridem Licambes”); não busca, assim, o sogro (Licambes) para cobrir com versos negros (venenosos), nem ata o laço ao pescoço da prometida (Neobula) com poema infamante (vv.30-31), como também não buscaram outros imitadores, Alceu e a “máscula Safo”, poetas da ilha de Lesbos (ca. 630-580 a.C.) e também modelos de Horácio. Nesta distinção que faz, percebe-se ainda, apontada por muitos críticos, outra imitação ou, como dissemos, percebe-se o modo como o poeta latino emulou o grego. Calímaco, também autor de iambos, imita não o inventor do gênero, Arquíloco, mas outro importante paradigma, Hipônax de Éfeso (séc. VI a.C.), que teria descoberto o coliambo ou iambo manco, metro de ritmo “vicioso” adequado para tratar de vícios. No início dos Iambos, Calímaco, poeta helenístico (ca. 310-240 a.C.), faz ressurgir Hipônax do mundo dos mortos (fr.191 Pfeiffer, vv.1-4):
Escutai Hipônax: pois chego
de onde se compra um boi por um óbolo
trazendo meu iambo que não canta a luta
contra Búpalo.
Ora, assim como Arquíloco, o poeta de Éfeso tem um inimigo contra o qual faz iambos, versos tão terríveis, que o levam ao suicídio. A história, transmitida por algumas fontes antigas, é muito semelhante à do poeta de Paros. Búpalo (“o falo do boi”) e seu irmão Atênis, ambos escultores, teriam esculpido, de forma zombeteira, a notória feiura de Hipônax, que, irado, começou a produzir violentos iambos contra os artífices. Calímaco, porém, traz do mundo dos mortos um Hipônax “que não canta a luta contra Búpalo”, parte essencial de seus versos invectivos, ou seja, parece haver nesta imitação uma mudança significativa, certa atenuação da violência, que se assemelha à maneira como Horácio propõe em Epístolas 1.19.23-25 imitar Arquíloco. Portanto, como boa parte da crítica já apontou, o poeta dos Epodos, ao imitar o inventor do gênero, o faz à maneira de Calímaco em seus Iambos. Em resumo: Arquíloco, Hipônax, Calímaco e Catulo serão constantemente emulados por Horácio em seus versos iâmbicos.
Ao ler os Epodos, encontramos os paradigmas arcaicos, Arquíloco e Hipônax, mencionados por perífrase no programático epodo 6 (vv.13-14), em que ameaça um vicioso, um covarde não nomeado, que ataca quem não pode se defender ou contra-atacar:
Cuida-te, cuida-te: que contra os maus, aspérrimo,
meus chifres ergo resolutos,
qual genro do infiel Licambes desprezado
ou imigo acerbo de Búpalo.
Se alguém com negro dente me atacar, inulto, 15
como menino, vou chorar?
Calímaco, o modelo helenístico, como vimos, está presente pelo modo como Horácio imita Arquíloco. No entanto, é também paradigma pela construção do livro, com poemas cuidadosamente dispostos, com evidente bipartição, em que a primeira parte é monométrica (Iambos 1-4; Epodos 1-10) e a segunda, polimétrica (Iambos 5-13; Epodos 11-17). É provável ainda que o número de Epodos, dezessete, se deva também a Calímaco, já que logo depois dos treze iambos, que formariam o livro, seguem-se, nos manuscritos, quatro poemas não separados por novo título. Assim, Horácio teria lido uma edição com dezessete poemas, número de mau agouro ainda hoje na Itália, como o nosso treze. Embora não tenhamos fontes antigas que nos digam ser o 17, entre os romanos da época de Horácio, um número de azar, escrevia-se, em número romano, XVII, que é anagrama de VIXI (“vivi”), ou seja, “morri”, “estou morto”, “não vivo mais”. Por isso, ao que parece, o número era escrito em lápides medievais. É possível, então, pensar no número 17 como adequada conclusão ou “morte” do livro epódico, em que o poeta se declara vencido pelas artes mágicas da arqui-inimiga, a feiticeira Canídia, que, ao fim, tem seu “êxito” (exitus), última palavra da obra.
Tomemos assim o caminho do fim e terminemos como começamos, com o topos da velha invectivada em “dona fea, velha e sandia”. No livro dos Epodos temos dois vitupérios contra uma velha: os epodos 8 e 12, certamente os dois poemas mais censurados do conjunto, julgados por Eduard Fraenkel como repulsivos, reconhecendo, porém, a construção polida (“Epodes VIII and XII, with all their polish, are repulsive”). Leiamos o primeiro, situado na primeira parte da obra, em que a velha é censurada em situação erótica malfadada:
Inda perguntas, pútrida de longo século,
o que enfraquece os meus colhões,
quando tens dente preto e uma velhice antiga
ara com rugas a tua cara
e se abre torpe fossa na mirrada bunda, 5
cu qual de vaca diarreica!
Mas teu peito e teus seios caídos me excitam,
tais como as tetas de uma égua,
e a flácida barriga, e a coxa, às panturrilhas
túmidas presa, magricela. 10
Sê tu feliz, e que as imagens triunfais
ao funeral, ao teu, precedam,
nem haja esposa que caminhe carregada
de perlas mais arredondadas.
Quê? Porque o livrinho estoico adora se deitar 15
nos coxinzinhos de cetim,
meus iletrados nervos menos se enregelam?
E menos broxa o caralhaz?
P’ra que o convoques das virilhas arrogantes,
deves co’a boca elaborar. 20
O poema está dividido claramente em duas partes, com exatos dez versos em cada uma: na primeira (vv.1-10), há a descrição física da invectivada, que se inicia na parte de cima (o rosto, vv.3-4) e termina na parte de baixo (pernas, vv.9-10). A comparação com animais (vaca e égua, vv. 6 e 8) para o rebaixamento da velha, em linguagem hiperbólica (v.1: “pútrida de longo século”) e com ironia (v.7: “teus seios caídos me excitam”), destaca partes sexuais na tentativa de justificar a impotência do poeta, que, com auto ironia, se caracteriza como fraco, mole (flaccus) desde o início do livro. As rugas no rosto (v.4), com a metáfora agrícola, lembram o fr.188 West de Arquíloco, citado acima. Na segunda parte (vv.11-20), caracteriza-a como rica (v.14: “perlas” por “pérolas”) e nobre (vv.11-12), pois no funeral carregam-se as imagens dos antepassados; por fim, há o ridículo de se mostrar culta, leitora de filosofia estoica (vv.15-17), absolutamente inadequada à situação. Nada é capaz de tornar ereto o membro viril. Conclui o poema com a solução tópica (vv.19-20): a felação, que, por elaboração poética, no original, parece já ocorrer, sugerida pelo som das palavras (ore allaborandum est tibi), quase todas unidas pela lei da elisão a formar um todo imenso, preenchendo a boca (or’allaborandu’st tibi); boca (ore) já em ação, contida no próprio ato de elaborar (allaborandum). É difícil dar conta aqui de todo trabalho poético deste breve epodo.
Estátua de uma velha: cópia romana (séc. I d.C.) de obra grega (séc. II a.C.)
Passemos à segunda invectiva contra a uetula, no epodo 12, citado, muito a propósito, no livro de Umberto Eco, Storia della bruttezza, no capítulo VI, dedicado à feiura na Antiguidade. No entanto, a censura, mesmo casual, parece perseguir os Epodos de Horácio. O poema é citado pela metade! Portanto, podemos completá-lo, já que a obra é aberta, transcrevendo aqui o epodo 12 inteiramente:
Que desejas, de escuras trombas a mais digna?
Por que me envias dons, por que a mim cartas,
sendo eu jovem não firme nem de nariz grosso?
Sim, farejo com bem mais agudeza
fétido bode ou pólipo em peluda axila 5
que um cão de fino faro, oculto o porco.
Que suor, que mau cheiro, nesse pelancudo
corpo, por toda parte aumenta, quando,
com meu pau mole, corre a saciar o indômito
furor! Úmida argila e cor das fezes 10
de crocodilo obtida já não dura, e ainda
no cio sacode o leito e a cobertura
ou quando incita a náusea com cruéis palavras:
“Co’Ináquia broxas menos que comigo;
Ináquia, três por noite; comigo és sempre 15
mole p’ra uma só. Morra Lésbia mal,
que a mim, buscando um touro, mostrou-te impotente,
quando Amintas de Cós estava à mão,
cujo membro em virilha indômita é mais duro
que árvore nova fixa nas colinas. 20
A quem velos de lã retingida com tíria
púrpura preparavam-se? A ti, claro,
porque não haja entre os convivas um igual
que sua mulher amasse mais que a ti.
Ah, não sou feliz; foges de mim como teme 25
cordeira ao feroz lobo e ao leão cabra.”
Temos, novamente, clara bipartição: na primeira parte (vv.1-13), fala o poeta que, caracterizado por dupla lítotes (v.3: “jovem não firme nem de nariz grosso), se mostra novamente fraco, impotente (v.9) para dar conta do desejo insaciável (vv.9-10) da velha fétida, que carrega um bode nas axilas (v.5)! Só um elefante poderia satisfazer a mulher (v.1), que tenta seduzi-lo com presentes (v.2). Na segunda parte (vv.14-26), diferentemente do epodo 8, temos a voz da invectivada, que passa a vituperar o poeta, que lembra sua impotência (v.16), embora seja potente com Ináquia. Ao lembrar de Lésbia (vv.16-17), personagem celebrada nos versos de Catulo, alude ao modelo latino, que vitupera (poema 69) o fétido Rufo, que tinha um bode nas axilas (vv.5-6)! Recorda, saudosa, da potência de Amintas de Cós (vv.18-20), dos presentes enviados ao poeta (vv.21-24) e termina, comicamente, na inversão de gêneros, comparando-se ao lobo e ao leão, dos quais fogem, respectivamente, a cordeira e a cabra, imagens do impotente e fraco poeta. Questão fundamental e única que destacaremos: a invectivada, a inimiga tem a última palavra, como a feiticeira Canídia na conclusão do livro (epodo 17). Assim, se os modelos arcaicos levavam seus inimigos à morte com seus versos, aqui, inversa e comicamente, são os inimigos que dominam o poeta, neste iambo calimaquianamente atenuado.
De certo, os epodos 8 e 12 estavam entre aqueles poemas de Horácio que já Quintiliano (séc. I d.C.) dizia não querer explicar (Formação do Orador 1.8.6). O rétor, porém, sempre reconheceu as virtudes poéticas, sem confundi-las com o vício da matéria (10.1.60). Assim, independentemente do “imperativo moral” que cada um possa ter, é necessário cautela ao julgar versos e poeta, pois podemos nos tornar aqueles famosos Aurélio e Fúrio, péssimos leitores dos poemas de Catulo, que, viciosos, mereceram esse engenhoso iambo (poema 16), que hoje lemos, como conclusão, na virtuosa tradução de João Angelo Oliva Neto:
Meu pau no cu, na boca, eu vou meter-vos,
Aurélio bicha e Fúrio chupador,
que por meus versos breves, delicados,
me julgastes não ter nenhum pudor.
A um poeta pio convém ser casto 5
ele mesmo, aos seus versos não há lei.
Estes só têm sabor e graça quando
são delicados, sem nenhum pudor,
e quando incitam o que excite não
digo os meninos, mas esses peludos 10
que jogo de cintura já não têm.
E vós, que muitos beijos (aos milhares!)
já lestes, me julgais não ser viril?
Meu pau no cu, na boca, vou meter-vos.
Para saber mais
Para estudo das fontes gregas e latinas e a discussão sobre o gênero, o estudo mais recente é de Andrea Rotstein.The Idea of Iambos, Oxford (2010), em que trata também da origem mítica do iambo, pela serva Iambe, que, para alegrar Deméter, triste pelo desaparecimento da filha Perséfone, fez zombarias e escárnios (cf. Hino homérico a Deméter, 192-205); com vários estudos sobre o iambo, Arquíloco,Calímaco,Catulo eHorácio, desde a Grécia arcaica até a Roma imperial, o livro editado por Alberto Cavarzere, Antonio Alonie Alessandro Barchiesi. Iambic Ideas. Essays on a Poetic Tradition from Archaic Greece to the Late Roman Empire, Lanham (2001); o clássico estudo de Martin Litchfield West. Studies in Greek Elegy and Iambus, Berlim; New York (1974); fundamental artigo de Gregory Nagy. “Iambos: Typologies of Invective and Praise”, Arethusa 9 (1976), pp. 191-205. Sobre Arquíloco, destacamos: excelente estudo entre nós sobre as fábulas e imagens de animais, aspectos importantes no inventor do gênero, de Paula da Cunha Corrêa. Um Bestiário Arcaico. Fábulas e imagens de animais na poesia de Arquíloco, Campinas (2010), com tradução dos epodos de Colônia; importante discussão sobre a persona poética nos iambos do poeta de Paros no capítulo de Bruno Gentili. “Archiloco e i livelli della realtà” in Poesia e pubblico nella Grecia antica. Da Omero al V secolo, Milano (2006), pp.267-291; minucioso estudo e comentário detalhado dos epodos de Colônia em Anika Nicolosi. Ipponatte, Epodi di Strasburgo, Archiloco, Epodi di Colonia (con un’appendice suP.Oxy LXIX 4708), Bologna (2007). Sobre Hipônax, além do último livro referido, citamos: o artigo de Ralph Rosen. “Hipponax, Boupalos, and the conventions of the psogos”, TAPhA118 (1988), pp.28-41, em que se explora o nome significativo do inimigo; o autor também tem importante livro sobre as relações entre comédia antiga e iambo: Old Comedy and the Iambographic Tradition, Atlanta, 1988; importante filólogo italiano, com estudos fundamentais sobre o iambo, é Enzo Degani, de quem indicamos Studi su Ipponatte, Bari (1984). Sobre os Iambosde Calímaco, dois estudos de referência: Benjamin Acosta-Hughes. Polyeideia: TheIambi of Callimachus and the Archaic Iambic Tradition, Berkeley; London (2002) e Arnd Kerkhecker. Callimachus’ Book ofIambi, Oxford (1999). Sobre Catulo, mencionamos a tradução completa de João Angelo Oliva Neto. O livro de Catulo, São Paulo (1996), edição esgotada, mas a segunda deve ser publicada em breve; estudo sobre o Catulo iâmbico, Stephen Heyworth. “Catullian Iambics, Cattulian Iambi” in Iambic Ideas, livro citado acima, pp.117-140 (2001). Da vastíssima bibliografia sobre os Epodos de Horácio selecionamos os mais referidos comentários: Alberto Cavarzere. Orazio. Il libro degli Epodi, Venezia (1992); David Mankin. Horace. Epodes, Cambridge (1995); Lindsay Watson. A Commentary on Horace’s Epodes, Oxford (2003); publicamos já alguns artigos sobre diversos aspectos que se encontram on-line, assim como a nossa tese “Dispositio e distinção de gêneros nos Epodos de Horácio: estudo acompanhado de tradução em verso”, defendida em 2010 na Universidade de São Paulo e disponível no banco de dados de teses e dissertações; três textos, por fim, merecem destaque: Stephen Harrison,em seu Generic Enrichment in Vergil & Horace, Oxford (2007), discute questões genéricas e a relação com Arquíloco em “On Not Being Archilochus: Horace’s Epodes”, pp.104-135; Andrea Cucchiarelli, em “Eros e giambo. Forme editoriali negli Epodidi Orazio”, MD 60 (2008), pp.69-104, estuda a forma editorial do livro; um dos artigos mais influentes sobre o epodo 17 é de Alessandro Barchiesi. “Ultime difficoltà nella carriera di un poeta giambico: l’Epodo XVII” in Atti del Convegno Oraziano. Vol. III. Venosa (1994), pp.205-220. Para o estudo da poesia iâmbica, em que o vocabulário sexual está muito presente, é fundamental James Adams. The Latin Sexual Vocabulary, London (1982).