Descobrindo Beethoven

O pianista inglês Paul Lewis chega a São Paulo esta semana para apresentar, em três dias, com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, sob regência de Marin Alsop, sua integral dos concertos para piano do gênio de Bonn.

por Leandro Oliveira

O pianista inglês Paul Lewis chega a São Paulo esta semana para apresentar, em três dias, com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, sob regência de Marin Alsop, sua integral dos concertos para piano do gênio de Bonn. Lewis é reconhecido atualmente como o maior representante de sua geração de uma grande linhagem interpretativa que de algum modo atualiza. A interpretação da obra de Beethoven conta, é claro, com toda uma grande tradição de leitura, tradição que remonta grosso modo ao próprio compositor: afinal, lidamos com um repertório que talvez jamais tenha saído da vista dos grandes intérpretes e do coração do público – exceção feita aos dois primeiros concertos que foram executados senão ocasionalmente ao longo do século XIX.

Paul Lewis é o responsável pela integral dos Concertos para piano de Ludwig van Beethoven, na Sala São Paulo com a Osesp (foto: divulgação).

Assim, embora a crítica atualizada precise lidar com toda a força narrativa do movimento de reconstituição histórica das práticas interpretativas (em alemão, Historische Aufführungspraxis) a situação para um musicólogo dedicado à história da interpretação é evidentemente muito complexa. Os documentos fonográficos não nos permitem deixar de levar em consideração as primeiras gravações, com figuras como as do pianista britânico nascido na Rússia, Mark Hambourg (1879 – 1960). Mark foi aluno de Theodor Leschetitzky em Viena, e Leschtitzky por sua vez foi aluno de Carl Czerny, aluno de Beethoven e responsável pela estréia do concerto “Imperador”. Através deles poderíamos, é claro, imaginar a passagem autorizada de uma certa tradição. Mas, em sendo assim, como julgar sua desconcertante versão do Terceiro Concerto para piano, o op.37 de Beethoven?

Tomemos por exemplo a primeira intervenção do solista. Mais que a liberdade quanto à construção da frase, é a nada sutil mudança do caráter do segundo grupo temático – onde, para além do timbre e da dinâmica, Hambourg altera sua qualidade expressiva mesma. Nada no texto lhe permitiria tal novidade. Versão autorizada pela transmissão oral? Um imbróglio para qualquer crítico.

O musicólogo italiano Piero Ratalino sugere uma tese: de Eugen D’Albert (nascido em 1864) a Wilhelm Backhaus (1884) e deste a Alfred Brendel (1931), passando por Rudolf Serkin (1903), o que há na leitura dos concertos para piano de Beethoven é uma progressiva perda do caráter teatral do gênero, que passa – ele fala especificamente da tradição de leitura alemã – por uma crescente circunspecção. ??Ratalino arrisca os termos daquilo que entende por “caráter teatral”: diversidade macroscópica do tempo nos vários grupos temáticos, gama dinâmica ampla, construção de frases e períodos musicais com acentuação fortemente plástica. Ou seja, de modo geral, a tendência a explicitar de modo didático, e não sem algum exagero, os elementos expressivos contrastantes, segundo ele, algo “típico do teatro, local de reunião de um público não selecionado ou, como dizia Carl Czerny (aluno de Beethoven), ‘um misto de tantos e variados humores’.”

Um crítico, é evidente, deve ter como referências muitas outras gravações que estão além desta “linhagem” alemã. A integral de Emil Gilels (feita com diversas orquestras), e Zimermann (com Leonard Bernstein), o “Imperador” de Horowitz (com seu sogro Toscanini em 1932 e Fritz Reiner em 1951) e Michelangeli (a “clássica” gravação ao lado de Carlo Maria Giulini), Sviatoslav Richter nos concertos 1 e 3, Friedrich Gulda (a versão com Karl Böhm, da década de 50), além de Martha Argerich e Mitsuko Uchida – todos provam que as leituras são variadas e a “história da interpretação” do ciclo, vertiginosa. Muitas destas gravações estão disponíveis, senão no Spotify, certamente no YouTube, e aconselho ao leitor o trabalho de elencar algumas delas numa playlist em ordem cronológica, e ouví-las de modo atento, repetidamente. Será uma tarefa não pequena, a tomar algum tempo, mas será um modo bastante instrutivo para entender os caminhos do gosto de nossa época.

De qualquer modo, os três pilares de nossa moderna concepção de Beethoven estão na tradição germânica – entendida em sentido lato: não apenas em Backhaus (alemão, nascido e educado em Leizpig) mas também em Edwin Fischer (suíço alemão, educado em Berlim) e, sobretudo, Arthur Schnabel (judeu polonês, educado em Viena) – este último tido como “o homem que inventou Beethoven”, pelo crítico norte-americano Harold Schoenberg. São eles os criadores da interpretação moderna de Beethoven, aquela onde se fazem contidos os humores mais ou menos idiossincráticos que poderiam ser encontrados ou privilegiados no texto beethoveniano, aquela que privilegia uma certa proporção entre as seções de uma peça, onde são levados a cabo o fetiche do texto como mensageiro auto-suficiente e a reavaliação do intérprete como transmissor idealmente neutro.

Paul Lewis construiu sua carreira à luz de seu professor, Alfred Brendel (que, a propósito, nada tem de alemão: é tcheco naturalizado inglês, estudou em Zagreb, atual Croácia, e Graz, na Áustria) e leva assim adiante alguns elementos da leitura sofisticada mas – importante notar – não necessariamente incontroversa do mestre. Brendel, que é citado como uma espécie de ponto culminante desta visão anti-teatralizada do gênero concertante, gravou ao menos quatro grandes ciclos – o primeiro no início dos anos sessenta com vários maestros e orquestras, outra em 1977 com Bernard Haitink e a London Philharmonic, uma terceira com James Levine e a Chicago Symphony, ao vivo em 1983, para finalmente a última com a Wiener Philharmoniker e Simon Rattle, em 1998. Afora, é claro, versões mais recentes não comprometidas com uma visão integral do ciclo.

O caso é que se comparadas, as versões pouco acrescentam umas às outras – vemos um Brendel maduro talvez mais à vontade com suas concepções interpretativas, mas jamais distante delas. Para fins didáticos, tomemos como item de avaliação o mesmo ponto do terceiro Concerto já citado anteriormente. É fato que Beethoven deixa ao intérprete um problema não desprezível, o de conceber o tempo do primeiro movimento. Marcado “Allegro con brio”, Beethoven sugere um compasso 2/2, o dito “tempo tagliato”. O caso é que já a frase do primeiro grupo temático permite uma métrica natural onde a subdivisão dos quatro tempos do compasso pode prevalecer – ou seja, uma métrica a partir não da indicação de compasso do compositor, mas da natureza do próprio texto musical. Por isso, Hambourg toca o primeiro movimento por vezes em quatro, por vezes em dois tempos: ou seja, varia provavelmente de modo intuitivo a construção de cada frase, e mesmo dentro delas, de cada grupo temático, à luz de uma sensibilidade rítmica e métrica absolutamente idiossincrática mas, assumo dizer, não menos que genial. E é genial pois o movimento não se torna uma colcha de retalhos ou uma grande rapsódia, ao contrário, segue revitalizado a cada nova intervenção do solista.

Qual a solução de Brendel? Aquela intermediária, certamente não de fácil construção, mas que permite tempo e formas coerentes do início ao fim do movimento: explicitamente assume o “compasso ordinário”, em quatro tempos, mas sem acentos veementes nos tempos pares. A solução, longe de verdadeira ou falsa, é moderna: resultado de um certo cuidado filológico com o texto musical coadunado ao rigor objetivo com o modo de explicitar suas dubiedades latentes. Mas, no caso de Brendel, o excesso de rigor pode servir como esconderijo à falta de imaginação – e por toda carreira, Brendel sempre foi visto como um excelente pianista mas, como se diz em italiano,”un po fredino”, um pouco frio, por demais analítico.

Paul Lewis já demonstrou em gravações premiadíssimas sua perspectivas sobre o assunto, e a matriz brendeliana é inequívoca. Notável no entanto é sua presença no palco, algo distinto do mentor: Lewis parece ser em alguns termos um homem de teatro, elegante e discreto como os atores ingleses, mas sim, um sujeito que cresce no palco diante de uma platéia viva, para além dos microfones das salas de gravação. A oportunidade de assisti-lo ao vivo em uma integral é eventualmente a de estar não apenas diante de um artista que hoje encarna paradigmaticamente uma certa matriz de leitura do texto de Beethoven, mas que assume os riscos do live performance – momento quando o pathos e a retórica servem ao público, onde a adrenalina do ambiente, por mais que aproxime o concerto do ambiente de “tourada”, transforma pensamento em ato, ideia em vida.

A não perder.

COMPARTILHE: