por Leandro Oliveira
Em 1944, o saudoso crítico Calderia Filho deste O Estado de S. Paulo comentou de uma apresentação que “constituiu um dos mais significativos êxitos da história da Sociedade de Cultura Artística”. No repertório: a Paixão segundo São João, de J. S. Bach, sob a direção e regência do maestro Furio Franceschini.
Ela retorna, mais setenta anos depois à programação da prestigiosa sociedade de concertos, como evento extra da temporada. O maestro Luís Felipe Coelho concedeu esta breve entrevista ao Estado da Arte.
Em 1944, a Sociedade Cultura Artística realizou uma produção história para a cidade da Paixão Segundo São João. São mais de setenta anos – e, desde então, entre as outras sociedades de concerto da cidade, suas apresentações talvez se contem em uma palma da mão. Você imagina um porquê?
Luís Felipe Coelho – Imagino, em primeiro lugar, que seja por uma falta de tradição luterana, coisa que não acontece nos países do norte da Europa, como a Holanda e a Alemanha, onde todos os anos fervilham de apresentações das paixões de Bach, em todos os níveis, tanto profissional como amador. São peças longas e sérias, que exigem uma aceitação a priori do público. É necessário um preparo para ouvi-las. Em segundo lugar, acho que o estilo barroco de Bach exige um preparo especializado da parte dos músicos. Apesar das Paixões possuírem uma beleza de caráter universal, sua execução exige uma correta noção de estilo. Se seguirmos um cânone romântico, do seculo XIX, o resultado pode se tornar até insuportável, coisa que não ocorre com uma interpretação historicamente orientada. Outra coisa é a instrumentação da obra, que em muitos momentos exige instrumentos exóticos que só existem no ambiente de uma orquestra barroca, como a viola da gamba, o oboé da caccia, o alaúde, e a viola d’amore.
Com quem poderemos contar entre os solistas dessa produção com o Cultura Artística? E, aliás, como tem sido a preparação e ensaios?
Luís Felipe Coelho – Temos solistas excelentes, todos especialistas no repertório barroco. No papel de evangelista teremos o tenor chileno Rodrigo del Pozo. Além dele, a soprano Marilia Vargas, o barítono Marcelo Coutinho, o tenor Jabez Lima e contratenor Pedro Couri Neto.
As Paixões de modo geral – e a Paixão segundo São João em particular – são obras definitivamente especiais no catálogo de J. S. Bach. Para além do toda sua beleza, você concorda em existir nelas algo de eventualmente operístico, ou teatral?
Luís Felipe Coelho – Certamente. As paixões, e todos os outros oratórios sacros do barroco emprestaram da ópera a sua forma. Recitativos, árias e coros são gêneros oriundos da ópera, portanto o que temos aqui seria como uma ópera com tema religioso, ou melhor, uma obra musical religiosa disfarçada de ópera. Para o compositor barroco, a fronteira entre o sacro e profano era muito tênue, de qualquer modo bem diferente do imaginamos hoje em dia.
Recentemente a Paixão Segundo São João foi foco de controvérsias quanto ao eventual antissemitismo das palavras de João, usadas quase literalmente por Bach. Como, num mundo politicamente correto, ser fiel ao texto de Bach?
Luís Felipe Coelho – Desculpa, mas acho isso completamente fora do contexto não somente da música de Bach, mas como de qualquer obra do barroco. Seria como colocar as palavras na boca do outro. Quando não se compreende a música de verdade, acabam tentando achar outras coisas que nem estão ali de fato. Bach era um homem universal, e acreditava na Humanidade.
Indo para algo íntimo: qual a seção ou ária preferida da música que será apresentada hoje a noite?
Luís Felipe Coelho – Amo o coro de abertura, que mostra de uma forma quase física o tormento e a seriedade do tema da Paixão, ao mesmo tempo trazendo através dessa experiência atávica, um contato com o sublime, a mais perfeita Beleza. Adoro também a cena do julgamento de Jesus, com a turba gritando “ crucifica-o”, com uma música completamente fora de si, sem um nexo e um senso de harmonia. Bach mostra bem o absurdo da situação.