por Leandro Oliveira
Rodrigo Cicchelli é compositor, flautista e professor de composição e matérias ligadas à música e tecnologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Cicchelli nasceu no Rio de Janeiro em 1966 e, formado em composição musical pelo Instituto Villa-Lobos da UNIRIO, foi também aluno de César Guerra-Peixe e Hans-Joachim Koellreutter.
Entre 1991 e 1997 realizou o doutorado em composição musical na University of East Anglia (Norwich, Inglaterra) sob a orientação de Denis Smalley, e participou do Cursus de composition et d’informatique musicale do IRCAM (Paris, França) como bolsista do governo francês, tendo freqüentado cursos com Tristan Murail, Jean-Claude Risset e Brian Ferneyhough, dentre outros.
Sua produção engloba música eletroacústica, música mista, com instrumentos, voz e meios eletrônicos e peças para orquestra. Suas obras vêm sendo executadas e difundidas ao redor do mundo e sua produção foi premiada em diversas ocasiões e eventos como o Concurso Villa-Lobos de Composição Musical (UFRJ, 1987), o Concorso Internazionale Luigi Russolo di Musica Elettroacustica (Fondazione Russolo-Pratella, 1993-94-95), a Tribune internationale de musique électroacoustique (IMC/UNESCO, 1994), os prêmios ALV’1999 e ALV’2001 (FUJB), dentre outros.
Recentemente, realiza um estimulante trabalho como produtor e apresentador do programa Eletroacústica na Rádio MEC FM.
Pesquisando sua obra percebe-se essa coisa interessante das recentes composições para orquestra e grupos de câmara. Entre “Esboço de Psyché” ou “Seis estudos de allures” e as mais recentes obras do ciclo “Música Noturna”, há alguma relação de unidade?
Rodrigo Cicchelli – Com certeza. Estas obras foram compostas após um prolongado hiato criativo – uma fase em que estive dedicado mais às minhas tarefas acadêmicas como docente na UFRJ e à retomada de minha atividade como flautista – e estão todas elas de certa forma interligadas.
“Esboço de Psyché” deu partida à composição de um ciclo orquestral centrado em figuras mitológicas femininas – além de “Psyché”, há também “Thétis” (que retoma uma obra eletroacústica antiga), “Eurídice” e “Éco”. E a ideia de compor um ciclo sobre figuras mitológicas tem se desdobrado em outros, como o ciclo sobre personagens do folclore brasileiro (Lendas Brasileiras, para flauta e piano), figuras mitológicas masculinas (cuja primeira peça até aqui é “Bacanais – cinco cenas da vida de Baco”, para tuba e piano) ou mesmo o ciclo coral “In Honorem Sanctorum”, em que homenageio santos da tradição cristã pelos quais tenho particular admiração.
“Seis estudos de allures”, por sua vez, é uma peça “memorialista”, que dialoga com o meu passado na eletroacústica (com os conceitos de percepção musical cunhados por Pierre Schaeffer) e em que faço alusão literal a uma passagem de uma obra mista antiga, “15º Harmônico”, para piano e eletrônica. Neste sentido, o ciclo “Música Noturna” compartilha esta concepção memorialista, só que nele o que surge são ecos de “outros passados” – Villa-Lobos, Rachmaninoff, Guerra-Peixe, Dawid Korenchendler, Canto Gregoriano etc. numa teia de associações surpreendente.
A costela que deu origem à primeira parte da Música Noturna, a peça intitulada “À noite um homem sozinho procura se recordar”, foi retirada de um quinteto de sopros ainda não estreado – “Invenções, Interlúdios e Ritornellos Imperfeitos”, composto nesta nova fase e que, por sua vez, dialoga com o meu passado neoclássico quando era aluno de Guerra-Peixe. As associações e inter-relações podem ser tanto de material musical (temático, harmônico ou textural, por exemplo) quanto de aspectos conceituais ou mesmo poético-programáticos.
Entre os mitos, as memórias e “allures”, sua obra expressa em muitos termos uma não pequena inquietação com presente.
Rodrigo Cicchelli – Acho que a pergunta que se impõe a partir destas constatações é o porquê disto se dar desta forma. Tenho estado mais aberto, após o tal hiato composicional, à livre pulsão criativa, deixando meu inconsciente guiar-me sem as preocupações típicas do vanguardismo. Minha geração foi profundamente marcada por uma concepção estética calcada na noção de oposições (e superações) dialéticas que seriam fruto de “necessidades” históricas inescapáveis, como se a História fosse uma velha senhora a quem deveríamos ser obedientes. Com minha experiência acumulada, esta visão se tornou insustentável. (A leitura de Fukuyama teve também influência neste repensar da História.) E não há saída para o artista fora de si mesmo – lição que aprendi com Machado de Assis, com o Pestana de “Um Homem Célebre”; e com Herman Hesse e o “deixar-se cair” do “Lobo da Estepe”.
Neste sentido, para mim como criador não há mais História, e, portanto, nem Passado e muito menos Futuro, apenas um eterno Presente em que moldo (o compositor é um “filtro”) todas as minhas experiências musicais, estéticas e pessoais. E quando se está menos orientado “de fora”, a partir de concepções dogmáticas, e mais sensível ao que vem de dentro, melhor se estabelecem estas “teias de associações” mencionadas anteriormente, que a mim me surpreendem e encantam. A unidade seria então uma espécie de coordenada complexa para onde confluem as pulsões e experiências, filtradas por um eu não-rígido, mas fluido e sensível.
Talvez isso se relacione com a pergunta anterior, talvez não, mas há um momento de sua formação que é inquietante. Como foi essa passagem dos seus estudos, quando você foi de Guerra-Peixe para Denis Smalley?
Rodrigo Cicchelli – Também esta passagem me inquieta, até hoje! Mas quando rememorei minha trajetória no Memorial apresentado na UFRJ como requisito à promoção a professor titular daquela instituição, claro ficou para mim o percurso. Há uma ponte (ou mais de uma) entre Guerra-Peixe e Denis Smalley: Hans-Joachim Koellreutter e Vania Dantas Leite. Além da “obediência” ao chamado de Reginaldo Carvalho: “É preciso conhecer a música do seu tempo para não ter que reconhecê-la, amanhã, como música do Passado”. Para alguém com a inquietude e o ímpeto dos vinte e poucos anos, que não queria estar fora da História e, crendo que o Futuro estaria na música eletrônica, este movimento foi “inevitável”. Como disse acima, hoje tenho uma concepção diferente, mas somos aquilo que vivemos e tudo o que vivi ajuda a moldar o que faço hoje – seja uma obra mista, uma peça de câmara ou orquestral. Portanto, o compositor eletroacústico está presente na criação de uma melodia, assim como o aluno de Guerra-Peixe sempre esteve presente, mesmo na obra mais experimental que tenha realizado.
Voltando um pouco, o que o professor Carvalho comenta é, claro, uma extraordinária petição de princípio ao trabalho de compreensão e desbravamento da arte contemporânea internacional. Guerra-Peixe e Koellreutter são figuras inescapáveis da história da música de concerto brasileira. Uma dicotomia curiosa: com tal panorama eclético, você acha possível falar de uma música de concerto brasileira? Você se considera um compositor “brasileiro”?
Rodrigo Cicchelli – Ultimamente, tenho tentado ser um compositor local – deveria dizer carioca? Citei Herman Hesse há pouco? Irei citá-lo novamente agora – uma passagem do Demian: “. . . cada homem não é apenas ele mesmo; é também um ponto único, singularíssimo, sempre importante e peculiar, no qual os fenômenos do mundo se cruzam uma só vez e nunca mais. Assim, a história de cada homem é essencial, eterna e divina, e cada homem, ao viver em alguma parte e cumprir os ditames da Natureza, é algo maravilhoso e digno de toda a atenção”.
E o que se deu em minha trajetória? Entre outras coisas, ter nascido no Rio de Janeiro e pertencer a uma determinada classe social (com todos os conflitos envolvidos nisso); ter estudado com os jesuítas; ter perdido os pais relativamente cedo; ter passado por Guerra-Peixe, por Koellreutter e pela Eletroacústica; ter vivido na Europa por seis longos anos, realizando um doutorado na Inglaterra e uma especialização no IRCAM parisiense; ter retornado ao meu lugar de origem; e possuir uma determinada sensibilidade, uma determinada inquietação, ou seja, aqueles atributos particulares que nos individualizam e, principalmente, estar consciente deles.
E hoje?
Rodrigo Cicchelli – Hoje, tento ser um compositor daqui, em diálogo com meus colegas, com meus amigos instrumentistas e com o público daqui, deixando fluir a minha voz. E não alguém inserido numa tradição (dogmática) formulada por outrem. Minha arte, para ser genuína e o testemunho de uma vida singular, precisa refletir tudo o que vivi, mesmo as contradições. Outra coisa que tenho dito a meus alunos e que procuro dizer a mim mesmo sempre: “conversem com quem quer conversar com vocês”. Quanto mais fincados estivermos onde vivemos, em comunhão com os nossos, mais sentido terá a arte que fazemos.
Nosso meio, porém, ainda se ressente de um provincianismo tolo – vejo colegas se esforçando para serem aceitos em Darmstadt, essa bobagem de ser aceito na Europa. Deixemos Darmstadt com os alemães! Nós somos da Lapa, da Zona Sul ou da Zona Norte. Herdeiros dos europeus, sim, mas nossas circunstâncias nos diferenciam deles. Não quero com isso advogar um nacionalismo populista simplista, ao contrário, devemos nos assumir na complexidade de nossa condição no mundo. Neste sentido, o ideal da formação de jovens músicos não pode ser o exílio – lamento um pouco quando vejo notícias enaltecendo jovens que deixam nosso país para fazer carreira na Europa – como se o ideal de nossas universidades fosse formar cantores, instrumentistas, regentes e compositores para o mercado europeu…
Em suma, voltando então a Reginaldo Carvalho – “conhecer a música de nosso tempo”, sim. E acrescentaria: assumindo a condição eclética – talvez até paradoxal – da música de concerto brasileira.
Para você, nestes termos, como se dá o ensino da composição?
Rodrigo Cicchelli – Já tive uma concepção de ensino da composição mais dogmática e gradualista (ou seriada) da que tenho hoje. Uma visão calcada em minha própria trajetória – do começo com manipulações motívicas e de células rítmico-melódicas (aquilo que Guerra-Peixe denominava Melos) para criar estruturas a serem encadeadas na formação de frases, períodos e grupos de frases; em seguida, a elaboração de seções contrastantes e a aplicação destas técnicas na confecção de formas mais estendidas, baseadas em esquemas do Passado (formas binárias, ternárias, tema e variações, forma sonata etc.). Tudo isso após – ou ao menos durante o estudo das fases mais avançadas – da Harmonia, do Contraponto e da Análise Musical. Só depois, a abordagem de novos materiais – pós-tonais e experimentais – até chegar à Eletroacústica.
Pois bem, hoje vejo que a eletroacústica não é a culminância ou o destino de nada – é apenas mais uma das ferramentas à disposição do compositor contemporâneo. A familiarização com estas ferramentas e com as técnicas que elas ensejam pode incidir a qualquer momento da formação de um jovem compositor. Além disso, aquele “roteiro” pressupõe de certa forma a repetição, em poucos anos, de alguns séculos de História da Música, como se para começar a criar o sujeito precisasse passar antes por um roteiro linear. Dependendo do tipo de aluno, este percurso pode ser fatal. Hoje tenho uma concepção mais espiralada do processo – estamos sempre voltando aos mesmos assuntos: os mistérios de uma melodia bem construída; as múltiplas funções do acompanhamento; o papel da harmonia; as questões de organização formal; as nuances do timbre e da orquestração para a construção do sentido musical etc.
Na prática, isso acontece como?
Rodrigo Cicchelli – Quando hoje falo de Melodia, por exemplo, abordo simultaneamente Canto Gregoriano, peças Barrocas, Clássico-Românticas e Contemporâneas. E ainda peço aos alunos que tragam melodias que admiram, de qualquer origem. A partir da discussão das razões pelas quais eles gostam desta ou daquela melodia – o que é também um processo de autoanálise – e da confrontação/comparação com melodias de diferentes tempos, peço aos alunos que apliquem o que observaram na construção de novos temas. Assim, eles vão se desenvolvendo tecnicamente e conhecendo melhor suas próprias inclinações.
Neste sentido, ecoo o que aprendi com o Pestana de Machado de Assis e costumo dizer a meus alunos: “o quanto antes puderem reconhecer – e principalmente aceitar – qual é a sua polca, melhor será para vocês como criadores”. E também o que aprendi com Paulo Freire: o aluno não é uma caixa vazia onde depositarei conteúdos que lhes faltam. Eles já trazem um cabedal de conhecimentos e inclinações (dos quais muitas vezes não estão conscientes) e que sem dúvida precisam lapidar, mas já sabem o que querem – e o que não querem – fazer. O que não quer dizer que todos aqueles elementos do roteiro acima deixem de ser abordados. Eles o são em função das necessidades de projetos específicos.
Pensando em questões mais específicas: como se dá o trabalho de criação de obras como, por exemplo, “Concertino Noturno, para flauta e orquestra de cordas”?
Rodrigo Cicchelli – O Concertino Noturno surgiu porque, em primeiro lugar, houve um concurso capitaneado pela Funarte para a preparação da XXII Bienal de Música Brasileira Contemporânea. O ano era 2016 e estava imerso no projeto da Música Noturna, centrado na orquestra de cordas. Achei que uma das obras do ciclo poderia ser uma peça concertante que retratasse o momento em que o herói da narrativa, após um exercício de introspecção, resolvesse flanar alegremente pela noite, intoxicando-se com os vapores noturnos, entregando-se a devaneios e lembranças e, ao final, a uma animada dança de sabor nacional, ainda que não saiba identificar com clareza a sua origem precisa.
Observei o edital da Funarte – muito estrito quanto à necessidade de ser uma peça que pudesse ser montada em quatro ensaios – e pus-me a compor a obra, que saiu rapidamente: num par de semanas havia completado a partitura. Ela se relaciona com a peça anterior do ciclo, À noite um homem sozinho procura se recordar, tanto programática quanto motivicamente, compartilhando com ela alguns materiais que são variados e desenvolvidos, bem como com as peças que se seguem: “Sonhos Vívidos”, para piano e cordas; e “A hora mais escura”, que junta os dois solistas – flauta e piano – às cordas. No momento, escrevo a última peça do ciclo, “A aurora de róseos dedos”, porque afinal esta noite precisa chegar ao fim!
No Concertino, o caráter é leve e remete voluntariamente à transparência de concertos barrocos ou clássicos, mas com um forte cunho “nacional”. Não estou querendo reinventar o nacionalismo. Como já falei, a motivação é memorialista, assim dialogo com a influência que sofri do legado da música nacionalista em minha formação. Neste sentido, a peça está dividida em três movimentos: Ponteado faz alusão a uma ideia, imprecisa, de levada musical tão explorada pelos compositores brasileiros no século XX. Já em De sterrennacht, transfiguro uma bossa-nova estilizada, fazendo alusão a uma obra muito conhecida de Vincent Van Gogh (A Noite Estrelada). Em Lembrando Guerra-Peixe, como o título sugere, procuro rememorar as lições que recebi do mestre, meu primeiro professor de composição, embebendo-me de alguns traços de sua escrita musical.
Mas sem querer ser muito insistente: quanto à criação mesmo, como você constrói suas obras? Pensa primeiro na estrutura, texturas, melodias…? Como foi a técnica de trabalho na composição?
Rodrigo Cicchelli – Parto de um impulso, de um gesto sonoro. Muitas vezes algo que cantarolo ou que toco na flauta. Daí, faço uso de notação musical e começo a desenvolver esta célula geradora. Tem sido assim com frequência. No caso dessas duas peças, com certeza. No desenvolvimento deste material é que começam a incidir preocupações com continuidade, contraste, equilíbrio formal etc. Sem planos pré-estabelecidos, pois estes me engessam. Uma ideia puxa a outra e assim vou construindo a composição. A peça vai de certa forma se impondo, apontando seus próprios caminhos. Cabe a mim revelá-los.
E agora, como você vê, se não o futuro, as perspectivas da música? Você tem um programa de rádio, não? Como as mídias de divulgação digitais operam, a seu ver, na atividade criativa?
Rodrigo Cicchelli – Tenho procurado sair da “Torre de Marfim”. A expressão é um velho clichê, eu sei, mas ainda é útil para designar um lugar que ao mesmo tempo protege o criador na busca muitas vezes ingrata de novos caminhos para a linguagem musical, mas que acaba segregando-o, distanciando-o dos outros, dos não especialistas, das pessoas que, afinal, amam Música. Porém, não tenho respostas “universais”. Para mim tem sido necessário, do ponto de vista criativo, entrar em diálogo com estas pessoas. E o paradoxo é que, para fazê-lo, tenho tido necessidade de me reconectar comigo mesmo, numa busca “para dentro”, como falei anteriormente.
O programa de rádio que produzo e apresento pela MEC FM desde outubro de 2010 entra no rol de minhas atividades acadêmicas – foi firmado um convênio entre a UFRJ e a EBC para a sua realização. Nele, difundo obras de música eletroacústica. Nos últimos anos, a música eletroacústica tem se tornado para mim mais um tema de pesquisa e menos uma inquietação criativa, pois meu foco composicional tem estado centrado na música instrumental e vocal, camerística ou sinfônica. O programa criou um nicho de interesse em um horário ingrato (vai ao ar toda quarta-feira à meia-noite) e ajudou a consolidar uma faixa voltada para as novidades estéticas. O mundo de hoje e as mídias digitais (o programa de rádio, aliás, pode ser ouvido online) oferecem muitas alternativas de exposição do que quer que se faça, facilitando o contato do artista com seu público – onde quer que esteja. Isso, claro, se o algoritmo de sua rede social ou de seu programa de buscas assim o permitir!
O que gostaria de ver mais, porém, é que as instituições culturais de nosso país – as orquestras, os teatros e companhias de ópera e balé, os festivais de música etc. – assumissem a difusão da música dos compositores brasileiros de forma mais enfática. Houve avanços nos últimos anos, sujeitos a recuos sazonais, mas meu sonho é o momento em que atingiremos realmente a “maioridade” institucional, deixando de ser uma periferia replicadora e passando a valorizar mais o que faz o criador local – o cara que afinal compartilha com o público e com os músicos daqui a vida que aqui experimentamos.