Entrevista com o compositor Ronaldo Miranda

O compositor brasileiro Ronaldo Miranda fala a Leandro Oliveira para a série "Criadores Contemporâneos"
Foto: divulgação / Gerardo Vilaseca.

por Leandro Oliveira

Nascido em 1948 no Rio de Janeiro, Ronaldo Miranda começou sua carreira como crítico de música do antigo Jornal do Brasil e intensificou o seu trabalho como compositor a partir de 1977, quando obteve o 1º Prêmio no Concurso de Composição para a II Bienal de Música Brasileira Contemporânea da Sala Cecília Meireles, na categoria de música de câmera. 

Participou de importantes festivais internacionais como o World Music Days, em Aarhus, Dinamarca (1983); a X Bienal de Música de Berlim (1985); o World Music Days, em Budapeste, Hungria (1986); o Aspekte Festival, em Salzburgo, Áustria (1992); e a série Musiques del nostre Temps, em Palma de Mallorca, Espanha (1992), Sonidos de las Americas/Brasil, no Carnegie Hall de Nova York (2000). 

Em 1984, foi feito Chevalier dans l’Ordre des Arts et des Lettres e quatro anos depois foi contemplado com a Bolsa Vitae de Artes para compor a ópera “Dom Casmurro”, com libreto de Orlando Codá – obra que estreou no Teatro Municipal de São Paulo, em 1992.

Com uma intensa produção, às vésperas de seus setenta anos, Miranda segue recebendo encomendas de grandes artistas e instituições brasileiras e é professor de Composição do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

Em abril deste ano, veremos a oportunidade da comemoração de seus setenta anos e sua carreira agora conta com mais quarenta anos de atividades. Não há dúvidas de que o senhor é hoje um dos principais compositores do país. Qual seriam as recomendações nas suas “cartas a um jovem compositor”?

Ronaldo Miranda – Sim, no próximo dia 26 de abril completo 70 anos. Para um jovem compositor, eu aconselharia que fosse fiel a si mesmo e jamais escrevesse algo que não representasse a sua expressão pessoal. Que procurasse estudar muito, especialmente Harmonia, Contraponto e Análise, para obter uma base formal sólida e segura. Que conheça a música do seu tempo e das etapas anteriores. Que vá aos concertos, ouça gravações e veja o que está acontecendo no mundo. Que procure se cercar de bons intérpretes, pois estes são o principal segmento que proporcionará boas performances de suas peças. Que componha com assiduidade, pois só assim irá adquirir uma técnica de Composição. Que preste atenção – estando numa classe formal de um Curso de Composição – nas obras de seus colegas de turma, pois o estudo é também comparativo e as diversas abordagens de um mesmo tema ou uma mesma forma vão ajudá-lo a ter uma visão mais ampla da linguagem musical e a expandir seu universo sonoro.

Como foi o início da sua carreira? 

Ronaldo Miranda – Minha carreira profissional como compositor começou há pouco mais de 40 anos, em outubro de 1977, na II Bienal de Música Brasileira Contemporânea, da Funarte, na Sala Cecília Meireles. Fui o vencedor no Concurso de Composição que precedeu a Bienal, na categoria “música de câmara”, com a obra “Trajetória”, sobre texto de Orlando Codá, mais tarde meu libretista na ópera Dom Casmurro.

“Trajetória” foi apresentada na II Bienal com intérpretes de peso: Maria Lúcia Godoy (soprano), Norton Morozowicz (flauta), Paulo Sérgio Santos (clarineta), Miguel Proença (piano), Jacques Morelenbaum (violonceloo) e Joe Lizama (percussão). O regente foi John Neschling. A excelente interpretação da obra foi um fator fundamental para o início da minha carreira: os músicos começaram a tocar minhas obras e a me solicitar outras composições. Minhas peças começaram a ser gravadas e editadas.

Ganhei outros prêmios em concursos nacionais e internacionais de Composição, comecei a ser selecionado para festivais no exterior. O prêmio na Bienal foi realmente um divisor de águas, para o início profissional da minha carreira. Antes, nenhum músico tocava aquilo que eu compunha desde 1965. Há uma meia dúzia de obras, na virada dos anos 60 para a década de 1970 que permaneceram no repertório, especialmente na formação de voz e piano. A premiação na Bienal de 1977 foi realmente o impulso necessário para o “start” da minha carreira como compositor.

Você falou sobre sua parceria com Orlando Codá, e é oportuno entrar no assunto mais específico da sua obra. Comecemos pelo trabalho de adaptação para o libreto de “Dom Casmurro”, de 1992. Como foi?

Ronaldo Miranda – A ópera “Dom Casmurro” foi um projeto que começou no último ano do meu Curso de Composição (1976), na Escola de Música da UFRJ, onde fui aluno de Henrique Morelenbaum. Era preciso compor 20 a 30 minutos de música dramática e esbocei algumas cenas daquilo que mais tarde se tornaria o primeiro ato de “Dom Casmurro”. Quando a fundação Vitae começou a operar no Brasil, sediando-se em São Paulo, fiquei animado para concorrer ao seu primeiro edital para Bolsas de Criação Artística, em 1988.

Meu projeto para transformar em ópera o romance “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, foi aprovado por uma comissão julgadora eclética, que incluía nomes como Edino Krieger e José Miguel Wisnick. O trabalho deveria estar concluído em um ano, no máximo. A bolsa – em 12 parcelas – incluía a minha atuação como compositor, o libretista e a copista (figura fundamental numa época ainda longe do computador).

Como foi o processo de criação?

Ronaldo Miranda – Precisei de mais três anos para concluir a tarefa. Trabalhei na ópera em 1988, 1989, 1990 e 1991. A bolsa não incluía a encenação da ópera: apenas sua criação. Graças à empresária Gaby Leib, consegui que o Theatro Municipal de São Paulo encenasse Dom Casmurro em maio de 1992. A ópera ficou com  mais de duas horas de música, distribuída entre três atos, com cerca de 45 minutos cada um. Tal qual uma Tosca. A encenação – com cinco récitas – teve pontos positivos e negativos.

Os mais positivos foram a escolha de Paulo Fortes para o papel título e a de Celina Imbert, como Capitu. Os negativos foram algumas mudanças na orquestração, feitas à minha revelia, e algumas liberdades não autorizadas na encenação. É preciso frisar que houve idéias cênicas muito boas e cantores excelentes entre uma dezena de personagens. O saldo foi positivo, muito embora – aos 44 anos de idade, em 1992 – eu não tenha tido voz ativa na execução dessa produção. Foi uma experiência muito sofrida, bem diferente daquelas que eu tive mais tarde com as encenações de minhas duas outras óperas: “A Tempestade” (2006) e “O Menino e a Liberdade” (2013).

E a recepção?

Ronaldo Miranda – Em “Casmurro”, recebi uma crítica péssima da Folha de São Paulo e uma crítica mediana do Globo. O problema da compreensão do texto, no canto em português, foi um fator levantado por Luiz Paulo Horta, na ocasião. Não era costume fazer legendas para uma ópera em nosso idioma. Hoje, já se comprovou que isso é fundamental. Ainda assim, o problema da compreensão do texto desapareceu na esplêndida gravação que a Rádio Cultura FM de Sâo Paulo promoveu da primeira récita de Dom Casmurro. Ouvem-se bem todos os cantores.

Graças a esta gravação, ganhei uma crítica gloriosa de Zito Baptista Filho, no Globo, quando “Casmurro” foi transmitido pela Rádio MEC e, mais tarde, o próprio Luiz Paulo Horta rasgou elogios a esta ópera, em artigo sobre a criação operística no Brasil, escrito para a Revista Piracema, da Funarte. Dom Casmurro teve cinco récitas. Estreou numa terça-feira e tudo correu mais ou menos bem. As récitas prosseguiram quinta, sexta, sábado e domingo. Quinta – a segunda récita – era o dia reservado para a crítica musical. Misteriosamente, nada funcionou no palco do Municipal paulistano. Os elevadores do palco literalmente enguiçaram, sendo totalmente paralisados. Como eram parte fundamental da encenação, o espetáculo ficou chapado e sem graça.  Sexta, a encenação ganhou vida e força, num crescendo de qualidade para sábado e domingo. Houve sucesso total de público nas três récitas finais e a ópera terminou com lotação esgotada.

Transformei a adaptação para o palco do romance Dom Casmurro em minha Tese de Doutorado, na ECA/USP. Meu Doutoramento foi feito no Departamento de Artes Cênicas de lá, numa época em que não havia Doutorado em Música no Brasil, entre 1992 e 1997, sob a orientação de Eudinyr Fraga.

Você teve o privilégio de contar com grandes intérpretes ao longo da carreira. Mas com uma produção tão volumosa e requisitada, é de se supor que nem sempre a coisa siga a contento… você pode nos contar um pouco de uma experiência eventualmente ruim – e o porquê?

Ronaldo Miranda – Vou procurar falar de interpretações boas e ruins. Para nós, compositores, nossas obras são como filhos que colocamos no mundo. É impossível controlar sua trajetória. A gente procura se cercar de bons interpretes mas nem sempre isso acontece. Veja o YouTube, por exemplo. É um ótimo canal de divulgação, mas pode ser também um tiro pela culatra. Tenho tido surpresas maravilhosas com as inserções de obras minhas no YouTube, através de gravações no Brasil e no exterior, as quais eu não conhecia. Mas também levo sustos com execuções amadorísticas de minhas peças, algumas com erros contundentes. Isso é terrível, pois no repertório tradicional a maioria do público musical conhece as obras e sabe quando o intérprete está errando. Na música contemporânea, nem tudo se conhece e o primeiro impulso de quem ouve é achar que a obra é ruim. Isso também acontece ao vivo. Arnaldo Cohen dizia que “Música não tem segredo, tem que estudar muito”. É verdade. Pode ser o melhor intérprete do mundo: se não estudar, vai tocar mal.

Então, vou dar dois exemplos: um bom e um ruim.

Para o exemplo bom, vou citar de novo a Bienal da Funarte na Sala Cecília Meireles, agora no ano de 1987. Eu havia sido premiado no Concurso Internacional de Composição de Budapeste, em 1986, com a obra “Três Momentos para Violoncelo Solo” (Trois Moments pour Violoncelle Seul), que estreou em março de 1987 na capital húngara. No segundo semestre de 1987, a obra participou da Bienal na Sala Cecília Meireles: foi sua estréia no Brasil. O intérprete foi Jed Barahal, americano de São Francisco, e spalla dos cellos da OSESP na época de Eleazar. Ele estudou minuciosamente a partitura e a tocou com tal magnetismo que a plateia da Sala veio abaixo com os aplausos. Impressionante essa performance, que Jed repetiu no ano seguinte no MASP, durante o Festival Música Nova, com o mesmo apuro, o mesmo carisma e a mesma recepção calorosa. Literalmente, ele dominava o auditório.

Infelizmente, na década de 90, no mesmo Festival Música Nova, tive uma péssima execução do meu Tango, para piano a quatro mãos. Os pianistas escolhidos pela direção artística do Festival (não vou citar seus nomes) erraram a partitura do princípio ao fim, do ritmo à notação. Assisti a um ensaio, em São Paulo, constatei que não adiantava dizer nada e voltei deprimido para o Rio. Poupei-me de estar presente a uma estréia vexaminosa desta obra em São Paulo.

“Seis Poemas Galegos, de Federico Garcia Lorca” é uma encomenda da Osesp que terá estréia nos dias 19, 20 e 21 de abril. Você pode falar um pouco sobre a obra?

Ronaldo Miranda – O título passou a ser “Seis Cantos de Lorca”, uma vez que – segundo Arthur Nestrovski – minha adaptação dos poemas de Federico Garcia Lorca não são uma mera tradução e, sim, uma recriação desses textos.

Quando recebi da direção artística da OSESP a encomenda de uma peça dramático-musical para celebrar o meu 70º aniversário, a primeira tarefa foi a escolha do texto. Precisava de um autor em domínio público, identificado com a arte contemporânea. Lembrei-me então de outras abordagens sonoras do poeta espanhol por compositores brasileiros, da “Yerma” de Villa-Lobos ao “Canto Multiplicado”, de Marlos Nobre, que, na verdade se baseia num poema de Drummond “A Federico Garcia Lorca”.

E resolvi escolher Lorca. Impossível musicar seus Seis Poemas na língua galega original, ou numa tradução rigidamente fiel. O discurso por vezes se torna complexo e as palavras escolhidas pelo poeta não têm conexão com o português que se fala no Brasil. Como dizer que a procissão com a Virgem vai descendo, em ritmo de festa, pelas congostas ? Há que dizê-lo de outra forma, para que todos entendam que o autor está falando de ruas estreitas pelas encostas. Como reproduzir literalmente “Pol-a testa de Galicia xa ven salaiando a i-alba” ? É preciso interpretar o verso e dizer simplesmente : “No horizonte da Galícia, já se pode ver a aurora”…

Foi um trabalho difícil, que me consumiu alguns meses. A partir da livre adaptação do texto, rearrumei também a ordem interna dos seis poemas, simplificando e mudando seus títulos, pois alguns deles falam da morte. E era preciso celebrar a vida ! Afinal de contas, a obra comemora meu 70º aniversário.

Tal qual fez Lorca, comecei com A Chuva (Madrigal à la Cibdá de Santiago), doce e dolente relato de um dia chuvoso, na cidade de Santiago. Segue-se O Menino (Cantiga do Neno da Tenda), que focaliza os galegos que se instalaram na Rua Esmeralda, em Buenos Aires, próxima ao Rio da Prata. A paisagem portenha me sugeriu ritmos peculiares da América Latina e suas síncopes características.

Ouve-se a seguir  a Dança da  Lua (Danza da Lúa en Santiago), visão macabra da Praça dos Mortos, a quintana dos cemitérios galegos. O Noturno subsequente (Noiturnio do Adolescente Morto) foi musicado com delicadeza e é expresso exclusivamente pela voz solista, com instrumentação rarefeita e a presença da harpa, qual remoto alaúde.

Mudei o título do quinto poema de Acalanto para Alvorada. Na verdade o poema originalmente se chama Canzón de Cuna pra Rosalía Castro, Morta. E deixei para o final, como o sexto canto, a excêntrica Ruada (Romaxe de Nosa Señora da Barca), procissão que mistura religiosidade com paganismo. Trata-se de uma romaria em forma de vibrante festa popular, em que o povo canta, bebe e dança, levando pelas ruelas das encostas a imagem da Virgem num carro de bois.

Em linguagem neo-tonal, Seis Cantos de Lorca é uma cantata profana cheia de contrastes. Estamos no processo de revisão da partitura, eu e o Centro de Documentação Musical da OSESP. Foi escrita para soprano solista, coro misto e orquestra. Celebra a latinidade da Galícia em dimensão universal.

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