‘Elektra’ de Richard Strauss

Muito bem avaliada por vários de nossos mais prestigiosos jornais, a montagem levada atualmente pelo Theatro Municipal de São Paulo da ópera “Elektra" de Richard Strauss, dirigida por Livia Sabag, de fato merece muitos elogios.

por Leandro Oliveira

Muito bem avaliada por vários de nossos mais prestigiosos jornais, a montagem levada atualmente pelo Theatro Municipal de São Paulo da ópera “Elektra” de Richard Strauss, dirigida por Livia Sabag, de fato merece muitos elogios.

O primeiro, mais evidente, está na cura do cenário de Nicolas Boni, com uma planta seccionada de uma casa em quatro ambientes que seguramente permite heterogeneidade visual suficiente para prender atenção por toda a ópera. Desde o primeiro recurso, com projeção em vídeo, ao último, com o corte à banheira e à figura Egisto, fica evidente que talvez pudesse haver um pouco mais de tensão no modo como se explicitaria este belíssimo elemento da montagem. Mas como a opção, a nosso ver infelizmente, foi disponibilizar a visão do andar de cima, já em menos de dois minutos de cena corrida, o quadro em quatro faces arrisca talvez alguma monotonia. Isto desdobra talvez uma primeira crítica possível: embora preveja extraordinários espaços para os jogos cênicos, a montagem talvez pudesse utilizar melhor os ambientes ao longo da trama de uma hora e cinquenta minutos.

Cena de “Elektra” de Richard Strauss. (Divulgação)

O que nos leva evidentemente à direção de atores. Do ponto de vista da coreografia (entendida aqui como movimento no espaço, tanto dos personagens individualmente quanto dos cantores em conjunto) vimos alguns elementos de interesse. Um deles, a tensão entre as criadas ao redor da mesa, na primeira cena; outro, aquele dos movimentos de Camareira e Confidente circundando Clitemnestra sem que jamais se permita a desestruturação da hierarquia entre os atores. Mas quando entramos no elemento individual, a caracterização corporal, onde se expressa a encarnação mesma dos tipos psicológicos ou simbólicos de cada personagem, a sensação que fica nesta récita do dia 18, foi aquela de uma certa leniência. Não no sentido pejorativo do termo, e sim de um certo respeito compreensível e natural por parte da diretora no que tange as vontades físicas de cada solista. Mas como um todo, a montagem perdeu com isso alguma força, não deixando ao público  a caracterização inequívoca da ira insana de Elektra, a culpa histérica de Clitemnestra, o peso anti-hamletiano de Orestes, ou mesmo a doçura ingênua e – pois não – feminina de Crisótemis: deixados ao deus-dará, cada qual, na performance de terça, preenchia seu texto e suas agruras emocionais com gestos por vezes vazios, em muitos momentos pouco convincentes ou mesmo contraditórios à carga do drama. Momentos eloquentes, neste sentido: a reação de Elektra à notícia da morte de Orestes quando, parada de pernas abertas e olhar enfurecido, vê sua irmã caída de joelhos que puxa seus braços; todos seus números de dança; a resposta corporal de Orestes aos louvores de Elektra em que ele, qual num melodrama tolo, agita-se de um lado para outro sem qualquer sentido.

É necessário comentar que o figurino de Fábio Namatame pareceu talvez vitimado pelos poucos recursos da casa, pouco tendo colaborado à precisão dos elementos simbólicos ou realistas da montagem ou do título. O cuidado caprichoso na indumentária e adereços dos coadjuvantes – deslumbrantes – não se explicitou naqueles de cada protagonista. Às perguntas do porque da roupa de Elektra, de bota-tênis, nem explicitamente andrajosa ou seu contrário, ou da opção pelo vermelho escuro da ingênua Crisótemis seguem a mim, até o momento, sem resposta.

Fora tais pequenas singelezas, o fato é que a montagem tem mais pontos fortes que fracos. A luz de Caetano Vilela é, como sói acontecer, sofisticada. O jogo de sombras entre os ambientes, e dentro deles, permite tanto dar peso específico a cada face do cenário, mas também fortalece a presença dos personagens dentro dele. Com pequenas exceções – como o dueto entre Clitemnestra e Elektra, por exemplo – não houve qualquer dificuldade no detalhamento dos espaços, certamente dificultado pelos ambientes exíguos onde os atores se viram confinados a atuar. De qualquer modo, o efeito geral é bastante virtuosístico, numa produção onde, respeitando a tradição das montagens próprias do título, a luz foi ela também um elemento de apoio emocional ao conteúdo do texto.

O impacto musical é também bastante convincente. A orquestra e seu diretor Eduardo Strausser portaram-se de modo eficiente tanto no acompanhamento das vozes quanto na atuação concertante. Talvez tenha pecado ligeiramente na construção de alguns pontos culminantes, o mais notável deles na assombrosa frase “Wer sie immer schickt, ein jeder Dämon lasst von uns, sobald das rechte Blut geflossen ist” (“Não importa quem os envie, todo demônio nos deixa em paz tão logo corra o sangue certo”) onde foi difícil precisar se faltou tônus à Clitemnestra de Susanne Resmarck ou o devido apoio da orquestra na tensão rítmica e dinâmica por parte do maestro. Encontrar o ponto justo de tais pequenos pontos de inflexão musical numa peça onde o discurso musical é temporalmente dilatado, de fato é o grande desafio da partitura.

Vocalmente, todas as partes merecem elogios. O coro dirigido por Bruno Facio, claro, mas sobretudo Eva Johansson (Elektra), muito disciplinada (a dificuldade da parte nos permite relevar alguns equívocos de projeção na seção central da obra), Melanie Diener (Crisótemis), com agudos e médios extraordinários – ovacionada não sem razão ao final – além de um Orestes (Johmi Steinberg) de voz impactante e timbre solene. Susanne Resmark mostrou uma Clitemnestra digna e, a despeito de seu porte e voz austera, talvez não tenha soado tão poderosa quanto o desejável para a acústica especial do Theatro Municipal. Mas o conjunto de fato realizou uma récita excelente, e o público (dia 18/10), que lotava a casa, respondeu à altura deste grande momento do maior palco de ópera de São Paulo, com ovações a todos os integrantes da produção.

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