Na semana em que a Orquestra Sinfônica de São Paulo (OSESP) recebe o pianista inglês Paul Lewis para a execução da integral dos concertos para piano do compositor alemão Ludwig Van Beethoven , o Grande Teatro do Mundo, plataforma de textos e áudios que integra o Estado da Arte, publica o testamento do gênio romântico, escrito 25 anos antes de sua morte.
por Ludwig Van Beethoven
De próprio punho, 25 anos antes de morrer. Heiligenstadt, 1802 d.C.
Aos meus irmãos Carl e [Johann] Beethoven.
Vocês, homens que pensam ou dizem que eu sou malevolente, teimoso ou misantropo, quanto vocês se enganam a meu respeito. Vocês não conhecem a causa secreta disto que creem ver. Desde a minha infância meu coração e minha mente estavam dispostos a sentimentos gentis e à boa vontade, e sempre quis realizar grandes façanhas. Mas considerem agora que por seis anos eu fui um caso sem esperança, agravado por médicos insensatos, trapaceado ano após ano na esperança de melhora, finalmente compelido a encarar a perspectiva de uma doença duradoura (cuja cura tomará anos ou, talvez, seja impossível). Nascido com um temperamento ardente e vivaz, suscetível até mesmo às diversões da sociedade, eu fui forçado precocemente a me isolar, a viver na solidão. Quando por vezes tentei esquecer tudo isso, ó, quão duramente eu fui repelido pela experiência duplamente triste de minha má audição, e ainda assim era impossível para mim dizer aos homens que falassem mais alto, gritassem, pois eu sou surdo. Ah, como eu poderia admitir uma tal enfermidade precisamente no sentido que deveria ser mais perfeito em mim do que nos outros, um sentido que um dia eu possui na sua mais alta perfeição, uma perfeição tal que seguramente poucos em minha profissão gozam ou gozaram. Ah, eu não posso suportar, assim perdoem-me se me virem recluso quando eu adoraria me misturar a vocês. Meu infortúnio é duplamente doloroso, porque há de me levar a ser mal compreendido.
Para mim não pode haver recreações na sociedade dos meus companheiros, conversa refinada, intercambio mútuo de pensamentos, somente naquele mínimo que as maiores necessidades exigem, embora por vezes eu vá na direção oposta, cedendo à minha inclinação para a sociedade. Mas quanta humilhação quando alguém ao meu lado escuta uma flauta distante e eu não ouço nada, ou alguém ouve um pastor cantando e de novo eu não ouço nada. Tais incidentes trouxeram-me à beira do desespero, só mais um pouquinho e eu teria posto um fim à minha vida. Somente a arte me segurou. Ah, parecia impossível deixar o mundo até que eu tivesse produzido tudo aquilo que me senti chamado a produzir, e assim eu suporto esta miserável existência – verdadeiramente miserável, um corpo excitável ao qual uma súbita alteração pode precipitar do melhor ao pior estado. Paciência.