por Leandro Oliveira
É mais que estimulante, mesmo comovente, ouvir Olga Praguer Coelho. Ainda mais pelo injusto desconhecimento geral desta que está entre as maiores artistas da música brasileira, alguém cuja discografia atinge duas centenas de títulos, gravados no Brasil, Argentina, Estados Unidos e Europa.
Nascida em 1909, Olga foi desde os 22 anos uma das responsáveis pela internacionalização do repertório folclórico brasileiro no universo erudito da comunidade internacional. Parte de sua história foi descrita, em 2001, por Luís Antonio Giron em uma elegante matéria para o Jornal Gazeta Mercantil. Uma das minhas partes favoritas segue abaixo:
O casal [Olga e o marido] embarca no Graff Zeppelin rumo a Berlim, na última viagem que o dirigível faz na América. Após cinco dias no balão, chega à capital alemã a tempo de participar do encerramento das Olimpíadas. “Fui convidada ao camarote brasileiro, que ficava do lado esquerdo do de Hitler. Conheci o sujeito, que me pareceu impertinente. Recusei-me a dizer heil, Hitler.” A conselho de Villa-Lobos exige que as rádios alemãs transmitam os recitais em ondas longas para que o público local possa conhecer o folclore brasileiro. Viaja pelo continente com a exigência das ondas longas. No teatro Nacional de Budapeste, sente alívio. “Estava longe de casa. Se fosse vaiada, ninguém saberia. Aí me avisaram que Bartók estava na primeira fila. Gelei, mas depois ele foi ao camarim me elogiar. Gostou do folclore brasileiro, especialmente por causa do ritmo.”
Esta última história ouvi pessoalmente, várias vezes. Ela comentava que, não sabendo a fisionomia de Bartok, passou o concerto olhando para um sujeito que imaginou ser o compositor – e não era.
Convivi com Olga por quase seis anos, período em que eu estudava piano, ainda no Rio de Janeiro. Ela não se apresentava mais. Ouvi-la hoje é deparar-se com voz e agilidade que não eram previsíveis naquela “aristocrata hippie” (definição de Nelson Freire) de olhos vibrantes mas de corpo nitidamente cansados com quem pude conviver.
Com uma inteligência musical única, o virtuosismo de seus arranjos para voz e violão a fazem a antecessora objetiva de – e comparável apenas a – João Bosco; ou talvez, mais recentemente, Badi Assad.
* * *
“A mosca na Moça” é uma dessas cantigas do nosso rico cancioneiro folclórico que talvez seja mais conhecido hoje, injustamente, pelas crianças em idade pré-escolar.
Trata-se de uma saborosíssima cantiga cujo verso constrói-se no típico método aditivo da tradição oral – “a mosca na moça, a barata na mosca na moça, o rato na barata na mosca na moça etc” – que cria evidentes embaraços de dicção e respiração para o cantor.
Com fraseado e rubatos impressionantes, Olga é inacreditável no modo como organiza texto e linha melódica. Leiam o texto e ouçam como, magnânima, em tempo onde a edição era praticamente inviável (a gravação é de 1929), a artista resolve essa música fantástica.
Estava a moça em seu lugar
E veio a mosca a lhe atentar
E a mosca na moça
E a mosca namora
Só eu não posso namorar
Estava a mosca em seu lugar
E veio a barata a lhe atentar
E a barata na mosca, e a mosca na moça
E a moça namora
Só eu não posso namorar
Estava a barata em seu lugar
E veio o rato a lhe atentar
O rato na barata, a barata na mosca, a mosca na moça
E a moça namora
Só eu não posso namorar
Estava o rato em seu lugar
E veio o gato a lhe atentar
O gato no rato, o rato na barata
A barata na mosca, a mosca na moça
E a moça namora
Só eu não posso namorar
Estava o gato em seu lugar
E veio o cachorro a lhe atentar
O cachorro no gato, o gato no rato
O rato na barata, a barata na mosca, a mosca na moça
E a moça namora
Só eu não posso namorar
Estava o cachorro em seu lugar
E veio o menino a lhe atentar
O menino no cachorro, o cachorro no gato,
O gato no rato, o rato na barata
A barata na mosca, a mosca na moça
E a moça namora
Só eu não posso namorar
Estava o menino em seu lugar
E veio a mulher a lhe atentar
A mulher no menino, o menino no cachorro,
O cachorro no gato, o gato no rato,
O rato na barata, a barata na mosca, a mosca na moça
E a moça namora
Só eu não posso namorar
Estava a mulher em seu lugar
E veio o homem a lhe atentar
O homem na mulher, a mulher no menino,
O menino no cachorro, o cachorro no gato,
O gato no rato, o rato na barata
A barata na mosca, a mosca na moça
E a moça namora
Só eu não posso namorar
Estava o homem em seu lugar
E veio o padre a lhe atentar
E o padre no homem, o homem na mulher,
A mulher no menino, o menino no cachorro,
O cachorro no gato, o gato no rato,
O rato na barata, a barata na mosca, a mosca na moça
E a moça namora
Só eu não posso namorar
Estava o padre em seu lugar
E veio o diabo a lhe atentar
O diabo no padre, o padre no homem
O homem na mulher, a mulher no menino
O menino no cachorro, o cachorro no gato
O gato no rato, o rato na barata
A barata na mosca, a mosca na moça
E a moça namora
Só eu não posso namorar
Estava o diabo em seu lugar
E veio a sogra a lhe atentar
E a sogra no diabo, o diabo no padre,
O padre no homem, o homem na mulher
A mulher no menino, o menino no cachorro
O cachorro no gato, o gato no rato, o rato na barata,
A barata na mosca, a mosca na moça
E a mosca namora
Só eu não posso namorar!
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A GuitarCorp – uma plataforma de negócios em música clássica com modelos não tradicionais – acaba de lançar em seu selo “Historical Recordings” a coletânea “The Art of Olga Praguer Coelho”, com vinte duas faixas em gravações de qualidade extraordinária. Entre as canções, pérolas como “Azulão” de Jaime Ovalle, “Meu Limão, meu limoeiro” de José Carlos Burle e a monumental “Xangô” (que parece tanto ter impressionado Bártok).
Fabio Zanon mesmo apresenta a produção que pode (deve!) ser adquirida aqui.