por Leandro Oliveira
Talvez A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin, seja o texto mais presente em muitas das discussões das humanidades brasileiras sobre a arte no século XX. A sua referência mais consagrada (não necessariamente a mais pertinente) encontra-se na passagem que segue:
“Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra. (…) O aqui e agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela se enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo. A esfera da autenticidade, como um todo, escapa a reprodutibilidade técnica, e naturalmente não apenas à técnica.”
Não é escopo do presente artigo debater um tema em muito consagrado, e eventualmente refutado em algumas searas. Mas considero-o objetivamente pertinente para iniciar a discussão sobre A Ilha dos mortos, o opus 29 de Sergei Rachmaninov (1873 – 1943): o compositor viu pela primeira vez a pintura homônima de Arnold Böcklin (1827 – 1901) em uma reprodução em preto e branco em Paris, em 1907. Ele ficou tão assombrado com sua imagem misteriosa, o barco solitário próximo a uma ilha assombrada, que parece lançar-se imediatamente à composição, muitos antes de ver o original. Dois anos depois, já em Leipzig, encontra uma das versões que Böcklin pintou de A Ilha dos Mortos. Rachmaniff comenta, no entanto, que nada poderia corresponder à sua primeira impressão – e chega a sugerir que nunca poderia ter composto seu poema sinfônico se tivesse visto apenas a imagem “autêntica”.
A história do quadro – na verdade, de cinco quadros com mesmo nome – tem início em 1880. É quando Marie Berna, viúva americana de um diplomata alemão, visita Böcklin em Florença, e vê uma primeira versão inacabada da pintura (a que agora está no Kunstmuseum Basel). Provavelmente é ela a encomendar o trabalho, desejando uma imagem para sonhar – “ein Bild zum Träumen”. A pintura que Böcklin envia a ela, naquele mesmo ano, se torna um ícone definidor do romantismo tardio.
Como variações musicais sobre o mesmo tema, Böcklin produz não um, mas a seqüência de cinco quadros, entre 1880 e 1886. Eles se tornariam entre as mais queridas imagens da Alemanha, amplamente difundidas através de reproduções e gravuras. Todas as quatro variações mostram a mesma pequena ilha mediterrânea com túmulos e ciprestes; ligeiramente à esquerda, um barco a remo conduz um féretro, escudado por uma figura ereta, vestida de branco. Mas se na primeira versão da imagem é clara e arejada, com uma ilha capturada por um intenso sol poente, à medida que a série avança, às variações de luz e os contornos da entrada vão dando espaço a elementos sombrios, num jogo de intensidade que, na versão final, nos permite ver as rochas mais altas e mais escuras, o cais aparente contrastando com a absoluta escuridão interior da ilha, as nuvens de tempestade mais próximas, a figura alva em pé agora curvada em uma atitude sugestiva de pesar ou cansaço.
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A qualidade de mistério e a atmosfera de quietude, que Böcklin evoca, são deliberados – embora a imagem do barco funerário estivesse ausente do original (ao que parece, foi um pedido da viúva, senhora Berna), e o título “Ilha dos Mortos” tenha sido a sugestão posterior de um dos agentes do pintor. E, de qualquer modo, é fascinante o feitiço que os cinco quadros lançam nas gerações subsequentes de artistas, músicos, escritores e cineastas.
No mundo da música, a primeira referência relevante é deixada pelo compositor sueco Johan Andreas Hallén (1846 – 1925), numa obra de 1898. O alemão Heinrich Schülz-Beuthen (1838 – 1915) produz seu poema sinfônico inspirado na pintura meses antes daquele de Rachmaninoff, no ano de 1909. Apenas quatro anos depois de Schülz-Beuthen e Rachmaninoff, Max Reger compôs sua versão orquestral da mesma coleção de imagens, como parte de um ciclo de poemas sinfônicos sobre quadros do compositor.
Rachmaninoff começa sua obra com o movimento irregular dos remos na água (como a Sétima Sinfonia de Mahler, concluída em 1905). A abertura é grave e misteriosa. Por muito tempo, avançamos com pouco senso de direção. Fragmentos melódicos aparecem de tempos em tempos, como vislumbres através da névoa. Finalmente, a ilha aparece, a música parece reunir força – e finalmente ouvimos o Dies irae, o canto gregoriano da Missa pelos Mortos, que a tudo turva com suas sombras. O final é estático, e somos deixados onde começamos, com o som do remo incessante.
Rachmaninoff conduziu sua novíssima Ilha dos Mortos, op. 29 com a Orquestra Sinfônica de Chicago, em dezembro de 1909. “Sergei Rachmaninoff recebeu uma recepção entusiasmada ontem à tarde”, relatou o jornal Chicago Tribune. Após o intervalo, Rachmaninoff retornou como solista ao piano para realizar seu Segundo Concerto para Piano (sob a regência com o diretor musical da orquestra, Frederick Stock).
O que o compositor nunca conseguiu explicar adequadamente foi sua comoção com a imagem em uma reprodução mal-acabada, em preto-e-braco. Tampouco deixa a chave para entendermos como transcriou tão espontaneamente o quadro em música: “Quando surgiu, como começou – como posso dizer? Brotou dentro de mim, eu anotei”.
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A Ilha dos mortos, op. 29 de Sergei Rachmaninoff será apresentada pela Osesp esta semana na Sala São Paulo – quinta, sexta às 20h30, sábado às 16h30. Uma hora antes, no Falando de Música, estarei comentando estes e outros aspectos da obra.