A morte de José Antonio Abreu

por Leandro Oliveira

A semana clássica sofre a perda, por muitos sentida, do maestro venezuelano José Antonio Abreu – criador e figura central do mais conhecido e prestigiado método internacional de inclusão social através da música. Responsável por aulas gratuitas a crianças dos mais miseráveis recantos venezuelanos, “El Sistema” é certamente o mais emulado projeto de ensino para jovens orquestras em todo o mundo, e um agente incontestavelmente poderoso para o acesso de classes desfavorecidas à grande conversação internacional do universo clássico musical.

Sua morte foi anunciada pela Fundação Musical Simón Bolívar, atualmente responsável pelo programa. Aos 78 anos, o maestro vivia adoentado há muito tempo.

José Antonio Abreu nasceu em Valera, Venezuela, em 7 de maio de 1939, e começou a estudar piano aos 9 anos; mais tarde, estudou composição, órgão, cravo e regência. Inicialmente, fez sua carreira como economista, diplomado pela Universidade Católica Andrés Bello em Caracas, trabalhando como professor ou junto ao governo pelo ministério da cultura.

Com a fundação do “El Sistema”, em 1975, tornou-se um prosélito da missão social da arte. À ocasião, poucos poderiam prever que Abreu se tornaria um dos principais atores da música clássica internacional mas, no ambiente pós guerra fria, e apoiado por estrelas como Claudio Abbado, o projeto acabou por reunir em torno de si muitos entre os militantes engajados do mundo da música em torno da missão auto-declarada da justiça social pela arte.

Desde então, as contradições em torno de Abreu e seu “Sistema” são muitas. Deixando de lado os recentes questionamentos tanto quanto ao curriculum pessoal do fundador, ao personalismo de sua gestão ou à qualidade artística e a efetividade estatística da dita inclusão, o maestro reunião em torno de si muitas contradições. As mais prementes parecem girar em torno da relação orgânica do projeto com os governantes de turno, relação ainda mais simbiótica com o regime chavista e a ditadura militar instalada nos anos noventa.

A relação explícita e confusa entre formação pessoal e formação política está descrita por ato falho na declaração oficial de Gustavo Dudamel, o membro mais vistoso e inequivocamente bem-sucedido a sair das fileiras do projeto:

O mestre José Antonio Abreu, como ninguém nos nossos tempos, ensinou-nos que a arte é um direito universal e que a inspiração e a beleza transformam irreversivelmente a alma de uma criança, transformando-a num ser humano mais pleno, saudável e completo, mais feliz e, portanto, em um cidadão melhor.

Um cidadão melhor… e chavista, é claro. Escapa a Dudamel que, historicamente, quando a arte submeteu-se às idiossincrasias do governo de turno, ela também enquadrou-se, com maior ou menor convicção, a ser um meio de propaganda extra-oficial. E assim foi, como sabemos hoje, com “El Sistema” de José Antonio Abreu.

É ponto pacífico que a música clássica deve sair da proteção das quatro paredes das salas de concerto – e a seu modo, seja pelas novas mídias, seja pelos esforços das vanguardas pós-modernas contra a hierarquização, ela já saiu. Mas acreditar que o ensino de música clássica cria homens melhores é, claro, uma bobagem.

O professor Abreu foi um homem de seu tempo: engajado, ativo e, até onde podemos saber, honesto. Suas convicções acabaram por dar frutos incontestáveis, educando jovens carentes para um universo expressivo que lhes seria, de outra sorte, possivelmente inviável. Não formou pessoas melhores – embora Dudamel tenha se mostrado um cidadão exemplar, nos seus próprios termos. Por aquilo, e não por isso, sua ausência deve ser lamentada por todos nós.

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