por Leandro Oliveira
Lamentamos quase todos a morte de Tom Wolfe. Ao menos, aqueles que sabem admirar a capacidade de observação que se traduz naquilo que a língua inglesa chama por wit, esse misto de inteligência arguta e bem humorada, eventualmente culta e sarcástica que poucos dominam. Tom Wolfe era, antes e sobretudo, um dos poucos e grandes mestres do wit. E os amantes de música clássica devem a ele um dos textos mais divertidos – e provocativos – da história de nossa crônica.
“Radical Chic”, que ocupou o número completo de junho de 1970 na New York Magazine, é histórico por atacar frontalmente a frivolidade política do compositor e maestro Leonard Bernstein (que neste ano de 2018 vê celebrado o centenário de seu nascimento em diversas salas de concerto de todo mundo). Naquele não tão longínquo ano de 1970, Bernstein convidava amigos para uma reunião em sua residência na Park Avenue, com o objetivo de arrecadar fundos para a representação legal de um caso que ficou conhecido como o julgamento do Panther 21 – quando vinte e um membros do grupo Pantera Negra foram presos e acusados ??de planejar ataques com bombas e rifles de longo alcance nas delegacias de Nova York.
O ensaio de Wolfe reverbera um termo que serviria desde então para caricaturar toda inclinação progressista na intelectualidade endinheirada de países ocidentais. “Radical Chic” começa e termina com a descrição surreal de um sonho imaginário, no qual Bernstein vê um homem negro erguer-se por sobre um piano Steinway de calda – a metáfora reforçada da bizarra e cômica justaposição promovida pelo maestro, a de militantes racialistas e a decoração eventualmente kitsch de uma cobertura de alto-padrão em Nova York.
Após a publicação, Bernstein escreveu vários esboços de auto-justificativas, mas o estrago foi grande. O relato da “festa” acabou por escancarar parte do conhecido – e até hoje reconhecido – paradoxo existencial de um certo intelectualismo de esquerda, vigoroso até os dias de hoje.
Em um universo em que política e arte convivem em termos cada vez menos inteligentes, o texto de Wolfe segue um primor de relevância. Concluindo com as palavras de Michael Bracewell:
‘Mmmmmmmmmmmmmmmm. Estes são bons.’ No que certamente deve ser uma das peças mais audaciosas do cenário na prosa moderna, o ensaio clássico de Tom Wolfe,”Radical Chic”, ganha velocidade não com uma palavra ou uma frase, mas com um som. Publicado pela primeira vez na revista New York em junho de 1970, este relato de uma festa de arrecadação de fundos realizada por Leonard e Felicia Bernstein para o grupo político extremista Black Panthers, no duplex de cobertura de Bernstein no Upper East Side de Manhattan, tomaria seu lugar como uma das mais implacáveis acusações de sofisma metropolitano e de autopromoção pública jamais escritas. Mmmmmmmmmmmmmmmm: 16 letras deslizando pela página impressa fazem o trabalho de um capítulo de abertura. Em seu ronronar onomatopéico de contentamento, é não apenas um exemplo decisivo do método de Wolfe como polemista literário, mas a essência de seu tratado sobre o Radical Chic. Pois seu tema é como as altas classes da cultura – os ricos, elegantes e íntimos da alta sociedade – procuraram se deleitar tanto no glamour vicário quanto no monopólio da virtude por meio da participação pública na política de rua: uma política, sobretudo, de minorias, tão distantes de sua esfera de experiência e tão absurdamente, diametralmente, oposta às ilhas de privilégio em que a aristocracia cultural mantém seu isolamento, que toda a base de seu relacionamento está descontroladamente fora de escopo desde o início. (…)
No final da década de 1960, quando Wolfe observou pela primeira vez o curioso flerte entre os jovens românticos radicais e a elite social, ele apelidou esse período de “a temporada do radical chique”. Ele concentrou sua análise da moda na festa realizada pelos Bernsteins para os Panteras Negras em seu “duplex amarelo chinês, em meio aos castiçais, tigelas de prata cheias de anêmonas brancas e lavanda, e servos uniformizados servindo bebidas e pedaços de queijo Roquefort enrolados em pedaços nozes”. São os pedaços de queijo Roquefort que estimulam o prazeroso “Mmmmmmmmmmmmmmmmmm”; o prazer dos canapés sofisticados se tornam sinônimo do prazer que é desfrutado pelo radical chic em participar de um “encontro” para levantamento de fundos para um grupo de militantes que foram acusados, entre outras coisas, de conspirar para explodir os Jardins Botânicos do Bronx. Nos 34 anos desde a publicação do ensaio de Wolfe, a frase não menos do que a prática do Radical Chic manteve seu lugar na arena discursiva entre privilégio e política. Como se previsse a intencionalidade evasiva de muito da cultura contemporânea, o próprio Wolfe decretou que pensar em Radical Chic em termos de sua sinceridade não faz sentido. Na verdade, seu double-tracking ideológico prova o compromisso às causas escolhidas tanto quanto ao papel dessas causas em “manter um estilo de vida apropriado na sociedade do East Side de Nova Iorque”. O tom da prosa de Wolfe contém uma ironia tão bem balanceada (com grande parte do ensaio escrito no estilo de tagarelice gentil e jovial) que o leitor não tem dúvidas de que o alvo de seu argumento é a estratosférica “consciência de status” de um certo tipo de culturati privilegiado, para quem a defesa de seu próprio senso de superioridade social – por qualquer meio possível, você poderia dizer – é sua ocupação principal. Em suma, Radical Chic é descrito como uma forma de decadência altamente desenvolvida; e seu maior medo é ser visto não como preconceituoso ou inconsciente, mas como classe média. (…)”