por Leandro Oliveira
Kendrick Lamar acaba de ganhar o Pulitzer Prize, sem sombra de dúvidas o mais prestigioso prêmio artístico americano, historicamente conferido a músicos clássicos e de jazz. Enquanto isso, na Alemanha, o prêmio ECHO da indústria fonográfica foi para a dupla de rappers notoriamente anti-semitas, Farid Bang e Kollegah. Cada caso merece sua própria reflexão, pois seu impacto para o ambiente musical em geral não é pequeno. A elas.
1. Lamar é um gênio. E é reconhecido como tal desde seu último lançamento, To Pimp a Butterfly (2015), um disco experimental onde os limites da tradição musical afro-americana são explorados com tal sofisticação que a mistura de Acid jazz, Rhythm & Blues, Funk e, claro, a lógica implacável da verborragia hip-hop, de algum modo encontra seu paroxismo.
Leio que David Bowie ouvia este disco enquanto produzia seu último álbum Blackstar (2016). Faz sentido: nenhum outro artista recente da indústria americana se mostrou tão aberto à variedade expressiva e tão despreocupado com o efeito de nicho que o mercado privilegia e protege. Como Bowie, Lamar parece fazer o que quer. E ele não parece querer pouco.
O Pulitzer vem por Damn (2017), álbum de retorno ao ambiente puro do hip-hop. E que álbum! Mas não é necessário gostar ou entender do gênero para deslumbrar-se com o videoclipe – dirigido virtuosisticamente por Dave Meyers (o mesmo de “Firework” de Kate Perry) – desta que a meu ver é a música mais poderosa da história do hip-hop, “Humble”.
De fotografia e soluções técnicas exuberantes, ele serve de suporte para uma música incrivelmente inteligente e provocadora. Quanto ao texto, Lamar parece querer voltar à carga com todo aquele que é o radical “elemento esportivo” do Rap – algo tão fundamental ao estilo quanto nos Desafios e Emboladas da música de tradição oral do nordeste do Brasil – e que parece ter se perdido recentemente com a influência do gangsta rap, onde o foco na destreza verbal se transmuta na competição pela maior quantidade de aberrações apologéticas ao crime.
Em “Humble”, tal como Mohamad Ali, Lamar critica todo esse universo, o deslumbre com o sucesso, a cultura superficial onde muitos de seus parceiros de trabalho vivem e, sobretudo, desafia velada e abertamente alguns de seus oponentes. E como bom desafiador sugere ser, sim, ele mesmo, o maior – o que se dá não sem o nocaute virulento em crescendo dos quatro últimos versos
Eu falo com a alma, você com as drogas.
Se eu matar um crioulo não será embriagado.
Sou o crioulo mais real de todos afinal de contas:
otário, seja humilde. Sente-se e seja humilde.
“Humble” não chega a tais limites sem antes passar por momentos de humor sutil, naquele idioma especial que os rappers cultivam (adoraria provocar, sugerindo a comparação pouco original de seu distanciamento do inglês coloquial tal qual a poesia oral homérica distava do grego falado). Como o compasso quaternário é lento, o groove do piano em seu ostinato de três notas ganha força ao final. Lamar abstém-se do mero virtuosismo, demonstrado com pompa na aventura alucinante de “For Free? (Interlude)” de seu disco anterior. Como sempre, a escanção criteriosa das sílabas permite a Lamar o encaixe pouco ortodoxo dos versos sem jamais perder os tempos fortes e sua relação com as sílabas tônicas – mas a variação sempre estimulante de frases e rimas faz de “Humble” algo além. Uma aula.
2. Quis o destino que na mesma semana da premiação de Lamar, Farid Bang e Kollegah, rappers do outro lado do Atlântico, estivessem no meio de uma controvérsia. Embora do ponto de vista artístico a dupla alemã seja infinitamente menor, o fato é que politicamente sua premiação é talvez muito mais relevante.
Antes de tudo, um esclarecimento: o prêmio ECHO é atribuído aos artistas de maior sucesso e vendas. Se isso nos impressiona pelo apelo popular dos versos de mau-gosto e piadas antissemitas da dupla entre o público alemão, também nos impressiona pela ausência de culpa de um prêmio cultural qualificado pelo sempre impessoal “mercado”.
Mas a infelicidade da premiação de um grupo reconhecido no meio musical pelo chauvinismo, pelo discurso identitário bocó e excludente, exatamente no Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto, fez com que o evento se tornasse o centro de uma não pequena querela internacional.
Logo após o anúncio da premiação, os maestros Fabio Luisi (Itália), Mariss Jansons (Letônia), Christian Thielemann (Alemanha), Daniel Barenboim (Israel) e o violinista Renaud Capuçon (França), assim como a Orquestra do Gewandhaus de Leipzig, retornaram seus prêmios de anos anteriores. O anúncio de Luisi, o primeiro e mais sintético, é paradigmático:
Zurique, 18 de Abril de 2018
Em 2009, ao lado da Staatskapelle Dresden fui honrado com o ECHO Klassik pela gravação da Nona Sinfonia de Bruckner. Foi um grande privilégio para a orquestra e para mim. Hoje, por outro lado, como outros colegas, é minha obrigação declinar gentilmente deste prêmio. A comenda do ECHO aos rappers Kollegah e Farid Bang é completamente inaceitável a meu ver. Os dois músicos não apenas cruzaram a linha ou provocaram como é do escopo da liberdade artística, mas ativamente profanaram com seus versos a terrível experiência de milhões de pessoas durante o regime Nacional Socialista. É chocante ver que um prêmio cultural não reserve qualquer parâmetro ético, de tolerância ou mesmo distinga conteúdos racistas e de ignorância, à mercê da correção do número de vendas.
Por mais que me tenha sido cara a premiação a seu tempo como um tributo a meu trabalho e minhas conquistas artísticas, eu não quero ter hoje tal referência.
Fabio Luisi, diretor geral para música da Ópera de Zurique.
Inacreditavelmente, com a grita de artistas, o abandono de patrocinadores, e outras formas de desaprovação, a organização do ECHO anunciou ontem pela manhã uma não solução: o fim da premiação. Foi o modo pusilânime encontrado pela indústria fonográfica alemã de se abster de uma posição pública quanto às mais óbvias e delicadas questões envolvidas em toda a celeuma: afinal, quais os limites para a liberdade de expressão? Qual a justificativa para um reconhecimento meramente econométrico de produtos culturais?
Pode parecer pouco, mas são as duas questões que seguem cada vez mais importantes no debate cultural de todo o mundo, inclusive no Brasil. A música de Farid Bang e Kollegah será esquecida em menos de uma geração; a mixórdia cultivada por gestores de cultura que se eximem, em suas políticas, do julgamento de valores intrínsecos ao produto artístico a que financiam, esta seguirá produzindo chagas por muito tempo.