por Leandro Oliveira
Comentei na última crítica sobre a paixão e inteligência com que a Filarmônica de Munique e seu maestro Valery Gergiev realizaram o concerto do dia 3 de setembro, em Lucerna. Como a formação alemã, a Filarmônica de São Petersburgo também apresentou-se com um programa dedicado a compositores russos – blockbusters como o “Segundo Concerto op.18” para piano de Sergei Rachmaninoff, e uma seleção do balé “Quebra-Nozes” de Tchaikovsky. Mas, se tivesse que arriscar um elemento de síntese para a apresentação de Yuri Temirkanov, eu diria não “inteligência”, mas “intuição”.
Ao menos é como arrisco definir a natureza de algumas ideias musicais, sobretudo no que dizem respeito a escolha de fraseado e tempo. Havia por todo programa uma sensibilidade atípica para ajustar de modo aparentemente orgânico a relação entre as estruturas musicais, tanto aquelas que soam independentes quanto as que convivem com outras, em contraponto.
Mas naturalidade, obviamente, não deve ser entendido como previsibilidade. O tempo do primeiro tema do “Concerto para piano”, por exemplo, foi ligeiramente heterodoxo, soando talvez lento e dando o efeito notável de uma densidade (emocional, espiritual?) única; o rubato da orquestra resultou em um jogo sofisticadíssimo com o piano – um momento que, por ser mais fácil de imaginar que descrever, só consigo qualificar como mágico.
Disse “aparentemente orgânico” pois havia muito artesanato naquela “intuição”. Parte da mágica era compreensível, e estava na posição dos naipes da orquestra (com contrabaixos e violoncelos atrás dos primeiros violinos; e, instrumentos de metais à altura das cordas, reunidos em coro atrás das violas, à direita) mas também pelo pouco usual equilíbrio numérico entre os cordas: 16 primeiro violinos, 14 segundo violinos, 12 violas, 12 violoncelos e 10 contrabaixos.
O fato notável é que a Filarmônica de São Petersburgo estabilizava-se com uma sonoridade rica em harmônicos devido em parte à concentração peculiar de instrumentos de tessitura grave. Consegue com isso uma extraordinária pujança tímbrica, o que é um ativo importante numa orquestra que não sobressai-se pelo virtuosismo de seus talentos individuais. Os metais, por sua vez, concertam com uma variedade assombrosa de articulações, uma dicção impressionante com muitos tipos de ataque e qualidades atípicas de conjunto na sustentação em vibrato.
Se esta análise, eventualmente aborrecida, qualifica os termos da orquestra, certamente não explica a emoção arrebatadora que suscitou. O fato é que, desde os primeiros acordes da obra de abertura, a rara e luminosa “Os três Milagres, da ópera Os contos do Tsar Saltan Op. 57”, sabíamos que o programa não seria ordinário. A ela seguiu a leitura comovente do “Concerto para piano”, com um maduro Sergei Redkin como solista – leitura que só não foi perfeita por conta do equilíbrio tênue entre pianista e orquestra; embora certamente prejudicado pela quantidade de musicistas no palco, Redkin não pareceu ter uma grande projeção de som. Mas o sucesso da performance exigiu do jovem pianista um bis, uma execução fantástica de um dos “Etude-Tableaux” do mesmo Rachmaninoff.
A suíte do “Quebra Nozes” que ocupou a segunda parte do programa contou com swing e coloridos irreprimíveis, e ao final não podia senão ser ovacionada reiteradamente pela platéia que lotava a sala de concertos.