por Leandro Oliveira
Bernard Haitink amadureceu por mais de cinquenta anos a sua leitura de Mahler. É com algumas de suas integrais que encontramos as mais consequentes atualizações da compreensão do texto do compositor – são Haitink e Abbado os responsáveis pelos termos com a qual a música do compositor é entendido atualmente, o que pode ser sintetizado como “menos um pós-romântico e mais um proto-modernista”.
O que isso quer dizer na prática: com eles aprendemos a ouvir Mahler em texturas menos densas, tempos ponderados e exploração de uma maior palheta de timbres. Sem dúvida, entre as gravações de Haitink, aquelas realizadas com a que foi a “sua” orquestra por algumas décadas, a Concertgebouw de Amsterdam, parecem as mais bem acabadas e convincentes. São pontos de referência da discografia mahleriana e hoje marcam a própria história da interpretação da partitura. Por isso, quando foi anunciado o cancelamento da participação de Daniele Gatti e a troca do segundo programa a ser apresentado pela orquestra do Concertgebouw no Festival de Lucerna, não pude senão vibrar.
Não que não houvesse riscos. Para o evento do dia 06 de setembro, a presença de Haitink, por mais segura que fosse em termos artísticos, permitia colocar sob escrutínio sua prodigiosa concentração. Haitink completa 89 anos em 2018, e obras de dimensões monumentais como as sinfonias de Mahler – a neste sentido, também aquelas de Bruckner – ganham em termos muito objetivos quando sob a batuta de diretores que sabem construir algo que Arturo Toscanini chamava por “grandes linhas”. Tratam-se dos elementos que estruturam a peça e permitem o percurso – por toda sua duração – em termos coerentes e inteligíveis. Por vezes, em obras maximalistas e de grande duração como a “Nona Sinfonia”, essas “grandes linhas” atingem enorme complexidade e sofisticação. A concentração é o que permite ao maestro, e através dele a orquestra, manter a forma e a expressividade num todo coeso.
E o que ouvimos, afinal, em Lucerna? Nunca uma “Nona Sinfonia” encontrou tempos tão adequados – um terceiro movimento em tempo giusto muito difícil de manter, absolutamente fascinante na sua tensão permanente, a desembocar no apelo aos aplausos de seus últimos compassos -, agógica tão equilibrada e textura tão refinada; jamais teve tão explícitos e envolventes seus motivos e temas principais, a riqueza de seu contraponto, a harmonia cuja tensão evidente não deve esconder sua lógica, tudo a estimular a narrativa esplêndida desta que é a última grande sinfonia de um tempo que não existe mais. A orquestra do Concertgebouw sob Haitink é senhora de uma produção de som única, uma palheta de timbres preciosa que permite entender ainda todo o caráter experimental desta última fase da produção de Gustav Mahler – que desembocaria em sinfonias como as de Shostakovich, por exemplo.
Foi uma “Nona Sinfonia” ideal, aquela que ouvimos apenas quando – imaginativos – lemos a partitura mas jamais conseguimos materializar em ato; Haitink arrebatou orquestra e público com movimentos firmes mas contidos – a expressão contagiante mesma de sua concentração psíquica e emocional – e por 80 minutos foi o dono do palco e do toda a história da música mahleriana.
Não à toa, pela primeira vez nesta semana de concertos intensos e de nível altíssimo, a plateia aplaudiu por vinte longos minutos. E aplaudiu de pé. A presença do maestro no palco foi exigida por seis vezes. Haitink respondeu aos apelos, lentamente, apoiado em uma bengala. A cada retorno, ela mais parecia um cetro, a acompanhar o que mostrou ser, naquela noite, o mais impressionante e maravilhoso decano da regência de nosso tempo.