por Leandro Oliveira
Antes de tudo, é necessário o contexto: a Orquestra Real do Concertgebouw de Amsterdã reviu há algumas semanas os termos de suas duas apresentações no Festival de Lucerna deste ano, após a ruptura do contrato de seu então diretor artístico, o italiano Danielle Gatti. O rompimento se deu há pouco mais de um mês, após virem a público acusações de assédio acontecidas tanto nos EUA há dez anos atrás, quanto no próprio seio da orquestra (escusado o trocadilho). Assim, sem seu chefe, a participação no Festival ficou condicionada à disponibilidade de agenda de convidados.
Por isso, para o concerto do dia 5 de setembro, tivemos o maestro austríaco Manfred Honeck, diretor da Orquestra Sinfônica da Pittsburgh. Ele, corajosamente, manteve o programa previsto por Gatti – tão interessante quanto desafiador, com obras de Wagner, Alban Berg e Bruckner.
A introspectiva e austera abertura do terceiro ato da ópera “Os Mestres Cantores” serviu de introdução ao universo expressionista das raras e fascinantes “Cinco canções orquestrais op. 4”, sobre textos de cartões postais escritos por Peter Altenberg. A primeira parte do concerto guardou assim a variedade de dois universos poéticos e a orquestra, fazendo-se de camaleão, pareceu muito bem na troca de figurino sem que perdesse suas características mais caras, a da flexibilidade no tratamento do tempo e da rica palheta de timbres que sabe cultivar.
A solista foi a soprano alemã Anett Frisch. Conhecida sobretudo por suas participações e gravações em óperas de Mozart, Frisch mostrou um grande domínio no estilo específico da segunda escola de Viena, não apenas pelo calor e projeção de sua extensa tessitura – com passagens seguras, agudos precisos e graves generosos -, mas também pela necessária expressividade do tratamento do texto (tão assombrosos…). As pequenas jóias de Berg foram, sem sombra de dúvidas, o ponto alto da noite.
Anton Bruckner dedicou sua poderosa “Terceira Sinfonia” ao seu grande ídolo, Richard Wagner, “o mundialmente famoso mestre, inacreditável e sublime, da poesia e da música”, nas palavras do compositor. O desafio da obra é a mesma conhecida pelas outras sinfonias do mestre austríaco – são as camadas de tensão crescente que, pelo acúmulo e contraste, devem construir a obra. Para além das dimensões sempre generosas (quase sempre ultrapassando 60 minutos), mais especificamente na “Terceira” vemos algumas pequenas assimetrias que criam embaraços, mesmo para o intérprete maduro.
O fato é que essa aparente simplicidade da lógica “arquitetônica” requer não apenas a inteligência de um maestro por um lado “estrategista” mas também com o rigor para a “operação”, alguém que realize o controle cauteloso da métrica e da dinâmica – rigor que não deixe perder, é claro, o efeito de performance orgânica, única a garantir toda a monumentalidade potencialmente prevista pela partitura.
Não consegui ver nem “estratégia” nem “operação” convincentes por parte do maestro Honeck. Um pouco à deriva, a orquestra parecia responder pelo instinto – que não é uma boa conselheira em muitas questões, sobretudo em Bruckner. Tudo resultou numa performance de interesse relativo, com momentos mais ou menos estimulantes, trechos mais ou menos “inspirados”, mas cujo todo não compuseram de fato uma narrativa com inicio-meio-fim. Apenas a título de ilustração: é somente nos últimos compassos (nos últimos três minutos) que, finalmente, o maestro pareceu preocupado em reter no crescendo a aceleração do pulso (um dos elementos fundamentais para a conexão da forma) e assim garantir – ao menos no finale – um clímax eloquente.
O público aplaudiu com entusiasmo, exigindo o retorno do maestro ao palco por três vezes. Mas para meu gosto, a orquestra ficou devendo uma performance bruckneriana à altura de sua qualidade, aquela de que este crítico não tem dúvidas.
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