Jan Lisiecki pelo Cultura Artística

O sucesso absoluto do concerto de abertura aponta a temporada gloriosa que nos promete a centenária sociedade de concertos paulistana para 2018. 

por Leandro Oliveira

A Sociedade Cultura Artística iniciou nesta terça-feira sua Temporada 2018 com a apresentação do pianista canadense Jan Lisiecki. Foi um programa ambicioso e pianisticamente – como as obras de Sergei Rachmaninoff e Maurice Ravel no centro demonstram – nada fácil.

Mas a Sociedade acertou na mosca! Lisiecki é um pianista que vem causando um certo furor internacional e seus 22 anos, talvez injustificadamente, antecedem praticamente toda menção pública a seu nome. Digo “injustificadamente” pois é fato que tanto sua carreira quanto repertório não devem nada a qualquer profissional mais velho. E, também, porque a história recente do piano nos rendeu figuras solares como Friedrich Gulda e Daniel Barenboim, Martha Argerich ou Kristian Zimermann já senhores de um pianismo absolutamente maduro naquela idade. Definitivamente, em música clássica, a precocidade não é uma novidade. E entre estes grandes nomes, o belo e esguio canadense não tem nada a dever.

Para mim, o programa começou antes da primeira nota, na leitura das saborosas notas de programação redigidas por João Vidal. Arrisco dizer que o musicólogo tem nos dado os melhores textos de concerto das últimas temporadas. Dele já pudemos aprender tanto nos recitais de Andras Schiff ano passado, quanto naqueles de Pierre-Laurent Aimard, em 2015. Se houvesse um prêmio anual específico para este tipo de publicação, deveria ser dado ao Cultura Artística pela edição das notas destes três eventos – cultos e acessíveis. Pois foi através destas bem articuladas referências que o público pôde entender a lógica da composição do repertório, pensado sob o tema da “música noturna”, num grande arco de compositores ativos entre os século XIX e XX. (O tema noturno, curiosamente, perpassa também o material da Sinfonia n. 7 de Mahler que abriu, cinco dias antes, a Temporada da Osesp, na mesma Sala São Paulo).

De qualquer modo, Lisiecki se mostrou muito diferente do inquieto pianista que há dois anos apresentou-se com a nossa Osesp, como solista do segundo concerto para piano de Chopin. Seu domínio do op. 55 do compositor polonês, os dois noturnos que abriram o programa, mostrou-se profissional. Ligeiramente perturbadora, no entanto, a opção de Lisiecki por uma dicção em agitato do segundo noturno – efeito provocado pela mão esquerda em crescendi e diminuendi vigorosos (nas edições em voga, e no manuscrito, Chopin escreve apenas “Lento Sostenuto”). O fato é que tal agitação jamais se deixou confundir por drama interior e o resultado foi o de uma convulsão superficial. Talvez essa tenha sido a marca mais incomoda da leitura chopiniana do jovem pianista, algo que maculou também a sua leitura do Scherzo que fechou o programa.

Já com Schumann, Lisiecki mostrou-se não um outro pianista, mas talvez alguém que tenha se adequado melhor ao modo de interpretação do texto. Com uma métrica estrita, com pouca variação agógica, o pianista privilegiou contrastes abruptos de tempo que, se não construíram um Schumann verdadeiramente romântico, certamente jogaram luz a aspectos notáveis do texto do mestre alemão. As tão conhecidas agruras de temperamento de Schumann talvez (um grande talvez) pudessem se traduzir nesta relação de choque, por vezes brutal, entre dinâmicas e pulsações diferentes. De qualquer modo, o domínio absolutamente fabuloso do timbre do piano, assim como do jogo de texturas das seções – texturas por vezes aparentemente impossíveis de realizar no texto schumanniano – fizeram com que a performance fosse sim muito convincente, proporcionando uma audição verdadeiramente nova do pequeno ciclo de Schumann.

O controle sofisticado de timbres e texturas talvez permitissem um “Gaspard de la Nuit” de Maurice Ravel irretocável. E de fato, nestes quesitos, a partitura olimpicamente virtuosística foi executada como que por um mestre. Sobretudo o movimento central, “Le Gibet”, cujo controle de tempo e vozes arrebatou a plateia da Sala São Paulo – onde não podíamos ouvir sequer suspiros. Mas, verdade seja dita, o modo “objetivo” de tempos estritos com que Lisiecki concebeu a sua interpretação, causou certo embaraço. Em “Ondine”, fez da ninfa um elemental sem eros; “Scarbot” um gnomo reluzente e ágil, mas não apavorante (o uso do pedal não ajudou a demonstrar os termos verdadeiramente diabólicos de muitas passagens do texto de Ravel). Plena de energia e ausente de vertigem, foi na leitura desta partitura mais do que em qualquer outra que as vantagens e desvantagens da juventude de Lisiecki se mostraram mais patentes.

Mas além de Schumann e “Le Gibet”, Lisiecki mostrou-se um pianista enorme também na abertura da segunda parte do programa. As “Morceaux de fantasie op.3” foram compostas por um jovem estudante de composição e pianista russo, ainda mais jovem que o nosso solista, quando Rachmaninoff tinha apenas 19 anos. Na versão de Lisiecki, se não fosse por mais nada, ouvimos na impecabilidade do controle do equilíbrio dinâmico entre as vozes do Prelúdio ou na organização sofisticada das frases da Elegia uma performance extraordinária. Seria possível, é claro, apontar senões de gosto quanto à construção de um ou outro clímax ou à exposição por demais rigorosa das frases e estruturas (rigor ausente na interpretação do próprio Rachmaninoff), mas a concepção de Lisiecki é bem acabada e bela, e isso à ocasião pareceu bastar. Mesmo que eu, pessoalmente, não concordasse.

O público que lotou a Sala São Paulo ovacionou o belo pianista para um bis, “Träumerei” movimento das “Cenas Infantis op.15” de Robert Schumann. E após a atmosfera de sonho, apenas aparentemente ingênuo do compositor alemão, Lisiecki ainda foi chamado mais uma vez ao palco. Ao final, o sucesso absoluto do concerto aponta a temporada gloriosa que nos promete a centenária sociedade de concertos paulistana para 2018.

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