Misérias cariocas

por Leandro Oliveira

Uma semana passada desde o anúncio da exoneração do compositor João Guilherme Ripper da Presidência do Theatro Municipal do Rio de Janeiro para a acomodação do ator Milton Gonçalves dentro da estrutura de uma Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro montada com a substituição de Eva Doris Rosenthal pelo Deputado Estadual André Lazaroni, cabe comentar a questão com a calma que o calor do momento não permite.

A notícia da substituição, dada pela coluna de Ancelmo Góis no Globo a 22 de fevereiro e não por qualquer meio oficial de comunicação, e dando conta de que “a ideia, com ele [Gonçalves], é popularizar mais o símbolo da cultura carioca”, foi seguida de um sóbria despedida de Ripper em sua página do Facebook. Ali, o compositor citava suas realizações no breve tempo de gestão, enquanto lamentava o que chamou por “ventos populistas” que sopravam desde o governo Pezão. Na mesma página, acompanhamos então a classe musical prestar sua solidariedade a Ripper – mesmo apoio encontrado, diga-se de passagem, nos corpos artístico e técnico do Municipal e materializado na standing ovation dada a Ripper e sua equipe em sua última reunião geral com funcionários da casa.

No mesmo dia 22, O Estado de S. Paulo veiculou a informação, prestada por Ripper, de que o Secretário Lazaroni havia solicitado o cargo no Theatro “para atender a demandas políticas”. No dia seguinte, O Globo repercute a mesma declaração e reproduz a primeira e mais surpreendente linha de defesa da nova gestão, dada horas antes por matéria da revista ISTOÉ: aparentemente na falta de uma proposta artística consistente e mesmo de qualquer justificativa plausível para a exoneração de Ripper, Lazaroni e o próprio Gonçalves justificam-se no fato de que ele será “o primeiro presidente negro do Municipal”.

No dia seguinte, 24 de fevereiro, uma desastrada tentativa de amenização do conflito em coluna do Jornal do Brasil avançava, para vantagem de Gonçalves, argumentos pouco sólidos como “os cargos públicos não são vitalícios”, ou “quem é escolhido para uma função de confiança deve saber que na mudança de cada governo, quem chega tem total liberdade para escolher sua nova equipe”, “toda mudança é salutar, representa o novo”, ou ainda “da mesma forma que o Theatro Municipal teve uma diretora vinda do teatro e do cinema, depois foi a hora da música clássica com a gestão que ora se acaba. E retornando ao teatro . . . um ator . . . que inclusive já externou sua familiaridade com a música clássica” (!), e, finalmente, “nunca se pode falar que não vai dar certo” .

Tais colocações, se não merecem comentário por seu conteúdo, não devem ser ignoradas como sintoma de algo maior, a saber da irracionalidade que por vezes domina o debate em torno da cultura no país. Evidentemente não se trata de agourar Milton Gonçalves, ao criticar a decisão do novo Secretário de Cultura do Estado do Rio. Trata-se de simplesmente apontar que sujeitar a administração pública da cultura do país à mais mesquinha das políticas, que não hesita em retirar do Theatro Municipal um gestor e uma equipe amplamente apoiadas pela comunidade artística nacional e cujos resultados, alcançados em pouco tempo à frente da instituição, não podem ser questionados em sã consciência, não pode ser coisa boa para o Brasil.

A “cartada racial”, jogada logo após as primeiras manifestações de estranhamento do meio musical erudito, teve um propósito claro: sepultar qualquer discussão sob o tabu do politicamente correto. Como poderia alguém se opor ao “primeiro gestor negro do Theatro Municipal” sem expor-se à pecha de racista, de intolerante? Tal manobra, incabível a esta altura do desenvolvimento do debate em torno de políticas públicas para a cultura, deve ser denunciada como infantil e populista, para dizer o mínimo. Em um meio que se pretende profissional, pouco importa se o Presidente da Fundação Theatro Municipal é branco, negro, mulher, transsexual, japonês, baiano ou de qualquer outra tonalidade, preferência ou procedência. O que importa a todos é que tenha disponibilidade para exercer as atribuições inerentes ao cargo com a necessária eficiência e conhecimento de causa.

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De modo muito menos ruidoso, um outro e quiçá ainda mais importante anúncio surpreendeu a semana do meio musical brasileiro. Refiro-me ao resultado doprocesso de seleção para o cargo de Diretor do Museu Villa-Lobos. Publicado no site do Instituto Brasileiro de Museus na segunda-feira da semana passada (20), a notícia chega sem alvíssaras. É sabido que o Museu Villa-Lobos conheceu com a gestão de Wagner Tiso, que perdurou de 2011 até sua exoneração em julho de  2016 pelo então Ministro Marcelo Calero, um período de notável desvirtuamento de sua missão autodeclarada – qual seja, a preservação da memória e da obra do maior compositor brasileiro.

O tradicional Festival, por exemplo, promovido anualmente pelo Museu e historicamente dedicado à divulgação da vasta obra musical do Villa-Lobos, voltou-se gradual e a meu ver inexplicavelmente à música popular, substituindo concertos por shows com nomes como Hamilton de Holanda, Stefano Bolla, André Mehmari, Guinga, Hermeto Pascoal, Francis Hime, membros das famílias Caymmi e Gismonti, entre tantos outros. Evidentemente não se questiona a qualidade do trabalho de cada um desses artistas, mas sim o fato do Festival Villa-Lobos deixar de ter como objeto nosso compositor central, que passou ao longo da gestão de Tiso a figurar apenas como seu “patrono” (uma honra que Villa-Lobos teria facilmente dispensado).

O maestro e compositor Heitor Villa-Lobos, cujos 130 anos de nascimento serão comemorados no domingo, 5 de março

De todo modo, rei morto, rei posto: o nome selecionado para dirigir o que deveria ser o mais importante centro de pesquisa musical brasileiro é aquele de Cláudia Nunes Castro. O Estado da Arte, movido pela curiosidade natural de quem se depara com um nome novo, praticamente desconhecido do meio musical e acadêmico, buscou saber mais sobre a trajetória profissional da senhora Nunes Castro. Afinal, o que a professora do sistema de Educação Básica do Distrito Federal desde agosto de 2014, teria a apresentar em termos de familiaridade e conhecimento da obra de Villa-Lobos ou da música clássica brasileira em geral?

Na área relativa à formação acadêmica, verificamos em seu Currículo Lattes (cuja atualização é de 29 de outubro de 2016), um mestrado em performance musical, associado a uma dissertação intitulada An analysis and performance practices of Jacques Ibert’s Flute Concerto: Second movement. Infelizmente, a relevância particular do segundo movimento do concerto de flauta de Jacques Ibert para uma compreensão da obra e do compositor em geral, não nos foi permitida acessar: aparentemente não se encontra em nenhuma das bases de busca de teses de dissertações norte-americanas conhecidas, nem mesmo naquelas da própria instituição em que teria sido completada em 2000, a Universidade de Nova Iorque.

Já a busca por outra dissertação de mestrado sua, relativa a um mestrado em Administração das Artes obtido na Universidade de Boston, revelou-se igualmente frustrada. O título informado, Project STEP, String Training and Education Program for Students of Color, ao que tudo indica refere-se a um longevo projeto social associado à Orquestra Sinfônica de Boston. Em ambos casos, restamos no escuro quanto ao conteúdo ou existência das dissertações. Completam a produção de Cláudia Nunes Castro dois pequenos artigos: um sobre a instituição do mecenato, outro sobre a prática dos seresteiros da cidade de Conservatória, além de um capítulo no livro Economia de Museus organizado por José do Nascimento Junior – o que tecnicamente não justificaria sua referência na base Lattes como coautora.

Outra surpresa é o vínculo declarado com o Ministério da Cultura: atividades de direção e administração, como “Coordenadora-Geral de Promoção e Difusão”, são declaradas para o período “06/2013 – Atual”. A consulta ao Diário Oficial da União indica que Nunes Castro não ocupa o cargo há quatro anos, mas sim que o ocupou por cinco meses. Foi exonerada da função em novembro de 2013 e sucedida no mesmo por Mariana Soares Ribeiro.

Esta breve apreciação da efetiva produção e trajetória da candidata aprovada em primeiro lugar para o cargo de Diretora do Museu Villa-Lobos deveria trazer uma considerável dose de intranquilidade a todos do meio musical brasileiro. Talvez ela tenha qualidades como gestora que ainda não conhecemos – mas não considero que seria o Museu Villa-Lobos em espaço para acumular experiências, e sim para aplicá-las. Então, fica a pergunta: não há um executivo ou pesquisador com capacidade de gestão do meio cultural efetivamente comprometido com a música clássica brasileira, ou mais especificamente com a obra de nosso Heitor Villa-Lobos?

A impressão é que Villa, cujos 130 anos de nascimento serão comemorados em 2017, e mais precisamente no próximo domingo dia 5 de março, merecia algo mais.

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É de se perguntar se há algo em comum entre Gonçalves e Nunes de Castro. Em primeiro lugar, e isso não seria pouco, talvez a inexperiência para a relevância dos cargos para os quais foram conduzidos. Se o Theatro Municipal é a casa da ópera, do balé e da música de concerto do Estado do Rio de Janeiro, o Museu Villa-Lobos por sua vez deveria ser a casa da pesquisa, promoção e difusão da vida e obra do maior compositor latino-americano. Por tal razão, seria imprescindível que fossem dirigidos por nomes à altura de suas respectivas missões institucionais, pessoas que entendessem tanto das idiossincrasias da música clássica em geral, do repertório brasileiro e sua inserção no mercado internacional, quanto da gestão executiva e financeira de projetos de tal magnitude.

Mas ainda há outra coisa une Gonçalves e Nunes de Castro: foram selecionados por pessoas sem conhecimento específico do meio em que estas instituições estão efetivamente inseridas. Gonçalves, afinal, foi escolhido por um político sem nenhuma história no campo da cultura (a atuação pública de Lazaroni restringe-se às áreas do esporte e do meio ambiente); Nunes de Castro, por sua vez, foi designada diretora de um museu dedicado à música e às suas complexidades por uma comissão composta por profissionais com formação nas áreas de zoologia, educação e administração pública.

Cumpre indagar, por fim, o porquê do silêncio das Associações de Amigos do Theatro Municipal e Museu Villa-Lobos face a decisões tão equivocadas quanto determinantes para o futuro destas instituições. O que resta claro: uma situação como a da música clássica carioca, infelizmente, não se improvisa.

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