No Proms e em Salzburg

Ao que parece o Brexit tornou-se a última resistência do músico clássico que tem pretensões políticas. Ao menos entre aqueles que, tendo pretensões políticas, tem o privilégio de apresentar-se no Proms - como informalmente é conhecido o "The Henry Wood Promenade Concerts presented by the BBC”. O “maior e mais democrático festival de música do mundo”, criado em 1895, recebeu este ano algumas curiosas manifestações, discretas ou não, de apoio ao projeto da União Européia com a Grã-Bretanha.

por Leandro Oliveira

Ao que parece o Brexit tornou-se a última resistência do músico clássico que tem pretensões políticas. Ao menos entre aqueles que, tendo pretensões políticas, tem o privilégio de apresentar-se no Proms – como informalmente é conhecido o “The Henry Wood Promenade Concerts presented by the BBC”. O “maior e mais democrático festival de música do mundo”, criado em 1895, recebeu este ano algumas curiosas manifestações, discretas ou não, de apoio ao projeto da União Européia com a Grã-Bretanha.

O primeiro a fazê-lo foi o pianista israelense Igor Levit. Com um broche da comunidade União Européia na lapela, Igor atacou em seu bis a transcrição de Franz Liszt para o último movimento da sinfonia número nove de Beethoven. A “Ode à Alegria” é o hino da UE, e evidentemente a coisa passou para a imprensa internacional como um gesto político. Segundo Norman Lebrecht, a o bis foi reconhecido pela BBC como “inesperado”. Era a primeira noite do Festival.

Eis que dois dias depois Daniel Barenboim faz das suas. A frente da Statskapelle Berlin, com quem executou a Segunda Sinfonia de Edward Elgar, Barenboim disse…

“Senhoras e senhores, espero que você tenham paciência – há algumas palavras que eu gostaria de dizer hoje que gostaria de compartilhar com vocês. Não sei se todos vocês concordarão comigo, mas eu realmente gostaria de compartilhá-las.

“Mas antes de tudo, gostaria de agradecer a esta maravilhosa orquestra … [APLAUSOS] não por ser maravilhosa – isso apenas é o que são. Mas, por terem concordado em adiar suas férias por uma semana ou talvez mais para chegar ao Proms neste fim de semana, para tocar para vocês, a Sinfonia de Elgar, obra que é muito importante para eles. Eles realmente se apaixonaram por essa música e realmente queriam trazer isso para Londres. E estou muito grato por eles só saírem de férias amanhã. [APLAUSOS]

“E gostaria de compartilhar com vocês alguns sentimentos ou pensamentos que eu tenho. Não é político. [RISO] Não é político, mas sim de uma preocupação humanística. Quando olho para o mundo com tantas tendências de isolamento, fico muito preocupado. E eu sei que não estou sozinho. [APLAUSOS]

“Vocês sabem – eu estava – eu vivi neste país por muitos anos. Fui casado neste país. Eu vivi aqui aqui por muitos anos. Tive dele tanta afeição enquanto aqui estive que isso me dá ímpeto de dizer o que eu gostaria de dizer.

“Penso que o principal problema hoje desse ou daquele país, não é a política. O principal problema de hoje é que não há educação suficiente. [APLAUSOS]

“Que não há educação para a música que conhecemos há muito tempo, mas agora não há educação suficiente sobre quem somos, sobre o que é um ser humano e como ele se relaciona com outros do mesmo tipo. [APLAUSOS]
É por isso que digo que [meu discurso] não é político, mas que é de interesse humanístico. E se você olhar para as dificuldades que o continente europeu está passando agora, você pode ver isso, porque é isso, por causa da falta de educação comum. (…) E não estou falando sobre esse país agora (…) [RISO] Estou falando em geral. Vocês conhecem nossa profissão, a profissão musical, é a única, que não é nacional. Nenhum músico alemão lhe dirá: “Eu sou um músico alemã e só vou tocar Brahms, Schumann e Beethoven” [RISO E APLAUSO] Tivemos uma boa prova disso hoje à noite.

“Permitam-me ficar fora da Grã-Bretanha: se um cidadão francês quiser aprender Goethe, ele deve ter uma tradução. Mas ele não precisa de uma tradução para as sinfonias de Beethoven. Isso é importante. É por isso que a música é tão importante. E essas tendências isolacionistas, ou o nacionalismo em seu sentido mais estreito, são algo muito perigoso e só podem ser combatidos com um grande aceno real pela educação da nova geração. Nós provavelmente somos muito velhos para isso. Mas a nova geração precisa entender que a Grécia e a Alemanha, a França e a Dinamarca têm algo em comum, chamado cultura européia. [APLAUSOS]

“Não só o Euro. Cultura. Esta é a coisa mais importante. E, claro, nesta comunidade cultural chamada Europa, há um lugar para culturas diversas. Para diferentes culturas. Para diferentes maneiras de ver as coisas. Mas isso só pode ser feito com educação. E o fanatismo que existe no mundo com origens religiosas só pode ser combatido com a educação. [APLAUSOS]

“O fanatismo religioso não pode ser combatido sozinho. O mal real do mundo só pode ser combatido com um humanismo que nos mantém todos juntos. Incluindo vocês. E eu vou mostrar que eu realmente quero dizer com isso.”

… e Barenboim virou-se a sua orquestra e tocou “Land of Hope and Glory” de Elgar – uma espécie de hino oficioso entre os ingleses.

https://www.youtube.com/watch?v=91eFes1wD4o

A Revista “The Spectator” publicou uma crítica a oportunidade do discurso – O Proms deve manter-se politicamente neutro, diz o mesmo Lebrecht que louvara a atitude de Levit alguns dias antes (aqui).

O jornal “The Guardian” considerou em editorial a importância de todo o imbróglio (aqui).

Essa atitude-“Bono Vox” é, claro, um pouco irritante. Mas ao que parece, falar contra o Brexit, na Inglaterra, é a nova onda.

***

O sempre bem informado e diligente Nelson Rubens Kunze chama atenção para o estudo “Festival de Salzburg: motor para a economia, infusão de excelência para a região” (aqui)

Realiza-se ali uma radiografia do festival, a qual, Kunze resume:

“(…) A análise baseia-se em uma pesquisa realizada com 3.067 visitantes do festival de 2015. Cruzando a pesquisa com os dados gerais do festival, o estudo revela que os visitantes, por meio de suas despesas em hotéis, ingressos para os espetáculos, compras, atividades de lazer, transporte e outros gastos, geraram uma demanda econômica de 141 milhões de Euros. O impacto dessa demanda, por sua vez, criou o impressionante valor acrescentado bruto de 183 milhões de Euros apenas em Salzburg; considerando toda a Áustria, o valor alcançou 215 milhões de Euros (cerca de R$ 800 milhões), quase 4 vezes o orçamento total do evento (que foi de 59,6 milhões de Euros).

“Esse valor acrescentado de 215 milhões de Euros resultou em um rendimento disponível de 122 milhões de Euros. Além disso, gerou 3.400 vagas de trabalho, incluídas as 400 do próprio festival (mas sem considerar os cerca de 3.500 artistas de coros e orquestras atuantes no evento). Por fim, o Festival de Salzburg e seu ‘valor acrescentado’ levaram a um recolhimento em tributos e taxas, para o poder público e o sistema social, da ordem de 77 milhões de Euros. (…)”

Esta é a fulgurante realidade dos investidores culturais nas condições privilegiadas do mercado europeu e ainda mais especiais no Festival de Salzburg. Salzburg acaba por ser resultado de uma interseção rara, mesmo entre os festivais europeus: qualidade artística (medida em prestígio, dinheiro e prazer), estrutura logística e capacidade de comunicação únicos.

Para entender o impacto de sua qualidade artística, talvez baste resgatar seu histórico. O Festival de Salzburgo foi criado em 1877 e, após breve interrupção durante a Primeira Guerra Mundial, foi reinstituído por Hugo von Hofmannsthal, pelo compositor Richard Strauss, pelo diretor teatral Alfred Roller, pelo maestro Franz Schalk e pelo diretor do teatro Max Reinhardt, em 1920. Desde então Arturo Toscanini, Bruno Walter, Herbert von Karajan (para ficar entre os maestros) foram seus mais engajados propagandistas. Após décadas de colaboração estreitas com a Filarmônica de Berlim, Salzburg torna-se ainda, no período de Páscoa, cidade residência da Staatskapelle Dresden, orquestra dirigida pelo seu atual diretor artístico, Christian Thielemann – que é para muitos o mais relevante maestro alemão da atualidade.

Localizando-se no centro da Europa, Salzburg consegue reunir no verão, regularmente, algumas das mais impressionantes formações orquestrais internacionais, solistas de renome e títulos de interesse. O investimento dá retorno, mas as condições são favoráveis – e ingressos caríssimos. A despeito de qualquer acusação de um eventual elitismo esnobe, ou talvez por causa dela, o fato é que o Festival de Salzburg preserva o privilégio de ser por quatro semanas, entre finais de julho e agosto, o inequívoco centro do mundo musical clássico.

Como bem lembrou um amigo, o “share of voice” de um empreendimento como esse é obviamente único e eventuais comparações com nossa realidade brasileira talvez seja
forçada. Mas loas máximas ao artigo de Kunze (aqui): se não mirarmos as estrelas, arriscamos cair apenas do terceiro andar.

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