Sobre pianistas

Mãos à obra: Gabriela Montero, Cecil Taylor e Giulio Draghi.

por Leandro Oliveira

“É quase como se eu estivesse em um estado de consciência diferente quando improviso. Não é um exercício mental… É como a água que brota, é inevitável e sempre variável.” Estas são as palavras da pianista venezuelana Gabriela Montero, figura solar e uma das mais ativas artistas do piano do mundo clássico – conhecida e respeitada como intérprete do grande repertório e improvisadora.

Inevitável e sempre variável parecem ser bons termos para descrever a expressividade do concerto n. 14 para piano de Mozart. É ele que Montero escolheu para sua participação na temporada 2018 da Osesp, nos dias 12, 13 e 14 de abril, na Sala São Paulo. A regência do maestro inglês Alexander Shelley.

Entre um pianista-intérprete e um pianista improvisador, seguem duas notas abaixo.

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Cecil Taylor faleceu na última semana, dia 05 de abril, aos 89 anos. Muitas vezes definindo-se por artista de “jazz” entre aspas, Taylor foi um pianista idiossincrático em diversos sentidos. Diplomado pelo rigorosíssimo New England Conservatory, foi educado em composição e piano habituando-se igualmente no ambiente de Webern e Xenakis, mas também Duke Ellington e Miles Davis. Como criador, muito precocemente filiou-se a ideia de ser um compositor que se abstêm do controle de tudo – e com essa ideia, criou uma poética de performance absolutamente única no panorama da música de nosso tempo. Como diz Alex Ross:

Taylor poderia de fato improvisar música atonal, como se estivesse criando uma sonata de Charles Ives ou uma das Klavierstück de Stockhausen. Em seus momentos mais diabólicos, ele soa como vários dos rolos hipercinéticos do piano de Conlon Nancarrow tocando simultaneamente. Mas essa avalanche de notas dificilmente é aleatória. Ele explora o piano em diferentes registros e depois repete o gesto com precisão surpreendente. Suas mãos sempre vão para onde seu cérebro os direciona para ir. E ele retorna aos planos tonais depois de longos períodos em um ambiente livre de gravidade.

Temos uma pobre bibliografia em português sobre a história do Jazz – e evidentemente costumamos estar bastante desatualizados sobre sua discussão no ambiente musicológico norte-americano. E o que hoje é uma questão disputadíssima diz respeito à origem e evolução do gênero, não tendo por base sua referência sociológica, nos círculos negros norte-americanos, mas todos os múltiplos sistemas culturais que o Jazz faz convergir em si: a rica psicodinâmica da tradição oral, expedientes sofisticados da música clássica (e sua tensão com a escrita) e a cultura fonográfica. O Jazz é o mais elevado entre os gêneros musicais do século XX , exatamente por ser um “vira-lata”. Cecil Taylor é talvez mais direto:

este é todo o ponto: o músico de jazz pegou a tradição da música ocidental e fez dela o que queria fazer com ela …. Somos todos herdeiros das grandes civilizações anteriores a nós – e estamos construindo a partir delas, sobre elas. Isso é tudo. Estamos fazendo nosso trabalho.

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Em 2015, a Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, destinou parte de sua programação a eventos no horário do almoço ou final do dia – pensado para as folgas de expediente para quem, trabalhando por perto, quisesse ouvir um pouco de música clássica. Ali, o pianista Giulio Draghi apresentou em dois dias, 21 e 28 de janeiro, nada menos que os “24 Estudos” de Frederic Chopin. Finalmente disponível para o grande público (Os DVDs podem ser encontrados no site da Livraria Arlequim).

Giulio concedeu essa breve entrevista para o Estado da Arte:

Como nasceu o projeto? 

O projeto nasceu do desejo de comemorar pessoalmente 50 anos desde a primeira aula de piano. Escolhi os Estudos de Chopin por considerar que apesar de todas as outras séries de estudos nenhuma anterior ou póstuma à Chopin é mais completa ou aborda com mais naturalidade a arte de tocar piano. Ao mesmo tempo a desejei filmada ao vivo e não gravada em Estúdio. Sinto que desde o advento da edição as gravações se tornaram uma espécie de “laboratório experimental” onde muitas  vezes resultados belíssimos são obtidos mas que distanciam cada vez mais da naturalidade e do envolvimento que a tríade artista + público + obra ao vivo pode proporcionar. Escolhi também a filmagem porque desde criança sempre me senti um tanto frustrado com o aprendizado por meio de gravações. Embora o andamento, a sonoridade e a leitura interpretativa do artista, o aluno fica totalmente no escuro em relação à postura das mãos, dedilhados utilizados, gestos, até mesmo a linguagem corporal que o pianista assume para projetar suas idéias. Por este motivo e pensando apenas no aluno realizei a filmagem mostrando 99% das mãos ao teclado em tomadas múltiplas sempre que possível. A opção  ao vivo também proporciona um toque de realidade que falta nas versões realizadas em estúdio. Dividir os riscos com o público é infinitamente mais recompensador do que a frieza e o perfeccionismo do estúdio.  Na verdade me dei conta que ao tocar ao vivo os 24 Estudos que o público “torce” pelo artista o tempo todo, ele “participa” conosco em cada nota de um arpejo, em cada árdua sequencia c sequencia de terças, de sextas, de oitavas ou saltos arriscados.

Como foi o trabalho de seleção da edições, algo sempre delicado no repertório chopiniano? 

Usei  mais de dez versões desde as primeiras publicadas em vida por Chopin como as que passaram por grandes intérpretes e pedagogos como Friedheim, Friedman, Cortot, Badura-Skoda, Casella, Brugnoli , Paderewsky, Schulz e surpreendentemente Claude Debussy, cuja revisão feita para a editora Durand dos 24 Estudos de Chopin o inspirou em seguida a compor seus próprios Estudos. Diversas edições didáticas traziam “ossias” de grandes pianistas da época e em alguns casos aceitei de bom grado “sugestões” de Anton Rubinstein, Tausig, Liszt, Cortot, Busoni, Isidor Philipp. Outras ainda apesar de soarem estranhas são na realidade do próprio Chopin, cuja ultima e definitiva edição publicada recentemente por Jan Ekier chega a ser até angustiante tal a quantidade de ossias que Chopin escrevia nos cadernos de seus alunos e que hoje em dia foram todos recuperados. O caderno crítico publicado separadamente que acompanha esta edição de Ekier é uma leitura absolutamente fascinante que mergulha a fundo na capacidade infinita de nunca se repetir ou tocar a mesma obra igual duas vezes seguidas.

Como você coloca sua gravação no panorama das outras versões de pianistas brasileiros? 

No Brasil a primeira a gravar a série completa dos 24 Estudos foi Guiomar Novaes, Fernando Lopes, Miriam Ramos e Nelson Freire. Este meu trabalho foi filmado pois destina-se principalmente aos alunos interessados em opções de dedilhados e nas infinitas posições que as mãos e braços tem que adotar a cada passagem e cada estudo em particular. O domínio e a automatização deste aspecto técnico é absolutamente fundamental para uma execução pública dos 24 estudos. Não se trata mais de dominar cada estudo em separado mas dominar a “sequencia”, dominar e administrar o cansaço muscular e manter o relaxamento por quase uma hora submetido ao mais alto virtuosismo pianístico. E a sequencia natural dos estudos também está longe de ser confortável, mas na verdade este já é um problema nosso. Chopin nunca sonhou que no século XX nós nos interessaríamos por tocar todos os estudos num mesmo concerto um atrás do outro… No entanto se trabalhados com tranquilidade e com paciência (a mesma paciência legendária que Chopin e Rachmaninoff tinham para estudar lentamente!) os estudos de Chopin ao contrário do que se pode imaginar são uma experiência tão enriquecedora como o estudo de todo o Cravo Bem Temperado de Bach. Os benefícios após este trabalho são imensos para a realização de qualquer outra partitura do repertório pianístico. As mãos se tornam mais flexíveis, fortes, os dedos adquirem força e ao mesmo tempo leveza e virtualmente todos os tipos de dedilhados são abordados.

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