Música clássica em casa: o (bom) efeito colateral da atual crise

Vejo a atual onda de streamings gratuitos como um efeito colateral positivo da atual crise sanitária. Resisto a me colocar ao lado daqueles que entendem a situação em termos melancólicos.

por Leandro Oliveira

As ações de transmissão audiovisual de espetáculos de música clássica se tornaram, a muitos do público dedicado ao assunto, como uma saída, a melhor saída, para a quarentena. São eventos realizados em todo o mundo, disponibilizados ao vivo ou em gravações de alto nível, diretamente da sala de concerto para o computador ou smart tv nos domicílios. Eles podem ser vistos tanto pelo acesso a aplicativos dedicados, como o Digital Concert Hall, da Filarmônica de Berlim, ou o medici.tv, quanto por portais populares e de conteúdo mais generalistas, como YouTube e Facebook.

Trata-se, é claro, de uma ação importante, tanto para a audiência – composta em sua maioria por adultos com mais de 60 anos, exatamente aqueles mais expostos às complicações decorrentes da contaminação pela Covid-19 – quanto para as instituições que se fragilizam de modo dramático num contexto de incerteza e cancelamentos de temporada forçados e sem prazos para retomada de atividades. No Brasil, as duas principais orquestras do país, com eventos anunciados com antecedência e planejamento desde finais do ano passado, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, e a Filarmônica de Minas Gerais, viram-se forçadas ao lockdown ainda nos prelúdios da crise. Na Sala São Paulo, atividades foram suspensas a partir do dia 14 de março (a terceira repetição do concerto de Paul Lewis com a orquestra); em Minas Gerais, a comunicação oficial se deu já no dia 17 de março, cancelando todas as atividades a partir daquela semana (o programa traria, além de obras de Alexandre Levy, a Oitava Sinfonia de Beethoven e um Concerto para violoncelo de Dvorák que, antes mesmo do cancelamento, hava sido substituído pela Oitava Sinfonia, do mesmo compositor, por conta da inviabilidade da viagem da solista, que viria de Israel).

As transmissões ganham proeminência num momento curioso, quando há já um evidente amadurecimento destas iniciativas ao redor do mundo. Após a crise financeira que culminou com a greve dos músicos no ano anterior, a Orquestra Sinfônica de Detroit reestruturou completamente sua programação, passando a prever na segunda metade de sua temporada 2010/2011 uma transmissão semanal pela internet de seus concertos sinfônicos; seu objetivo era “tornar-se a orquestra mais acessível do planeta”. A Sinfônica de Detroit realizou seu primeiro streaming no dia 07 de maio de 2011 e, ao contrário do temor de muitos dos organizadores, de que a transmissão afetaria negativamente a frequência presencial na sala de concertos, em quatro anos de transmissões a ocupação da sala aumentou em 90% (de cerca de 50% da capacidade para 90% de capacidade, em média).

Antes dela, a Filarmônica de Berlim produziu sua primeira transmissão por streaming, desde sua sala de concertos, em 6 de janeiro de 2009. A Berlin Phil Media GmbH, responsável pelo desenvolvimento do aplicativo de transmissão de concertos da orquestra, conseguiu amadurecer um modelo de negócios com ofertas flexíveis para os assinantes individuais, que acessam o evento de seu próprio computador doméstico. O alcance da iniciativa, hoje, é de centenas de milhares de usuários registrados na plataforma, dos quais mais de cinquenta mil pagam pelo acesso anual à temporada digital, transmitida em tecnologia 4K e disponibilizada por um sistema de assinatura que garante ao telespectador o acesso a transmissão ao vivo da última das três apresentações semanais da temporada sinfônica oficial da orquestra, além da licença para consulta de todo o acervo de transmissões passadas e gravações históricas.

Pouco antes da iniciativa do aplicativo berlinense, no dia 30 de dezembro de 2006, o Metropolitan Opera de Nova Iorque havia iniciado o projeto Metropolitan Opera Live in HD – uma série de transmissões via satélite em alta definição de performances ao vivo, diretamente do Lincoln Center para salas de cinema nos Estados Unidos da América e no Canadá. Desde então, organizado em temporadas que contam entre seis e doze espetáculos anuais, o digital broadcasting do MET esteve presente em salas de exibição de países como Inglaterra, Japão, Noruega, Austrália e Nova Zelândia, bem como Argentina e Brasil, entre outros. O apelo midiático e o potencial comercial de tais experimentos levaram grandes companhias de ópera, incluindo Covent Garden, La Scala, San Francisco Opera, assim como National Theater ou Bolshoi Ballet, a iniciarem suas próprias transmissões. Em 2011, foi a vez da Filarmônica de Berlim realizar seu primeiro experimento em salas de cinema, transmitindo um evento em alta definição e tecnologia 3D de Berlim para cento e quarenta salas de cinema da Inglaterra. Tal integração com os meios de comunicação e a vida diária do público nos últimos anos acaba por favorecer uma série de experiências que atuam no que parece constituir negócios complementares à apresentação convencional. Para as distribuidoras de cinema, são hoje parte sensível do grande guarda-chuva de novos conteúdos não-tradicionais, ou “Conteúdos Alternativos” – que é como os departamentos de marketing acabam por chamar estes produtos.

O assunto ganha contornos curiosos, pois, sabidamente, a transmissão para internet de concertos sinfônicos leva adiante uma empreitada que conta, a essa altura, com mais de 70 anos de história. Ao menos desde 1948, concertos sinfônicos são transmitidos para as telas. Desde os primeiros projetos, levados a cabo para televisão pelas então principais redes comerciais de transmissão concorrentes nos EUA, a CBS e NBC, e posteriormente por dezenas de redes comunitárias e públicas, essa história conta uma transformação radical na história da recepção da música clássica. Ao longo de todo o século XX, as produções audiovisuais de concertos sinfônicos não apenas transformaram o melômano em telespectador: elas moldaram a sensibilidade do público de música clássica.

Na história da produção de concertos transmitidos para televisão, é possível ver confluir a tensão de duas premissas básicas. A primeira, de que a visualização de uma orquestra a partir de um ponto fixo, como seria a posição de um assento de uma sala de concerto, é algo intuitivamente contranatural ao ambiente audiovisual; ao contrário, mostrar diferentes aspectos da produção musical, aqueles que ficam inacessíveis ao público no teatro, é visto como a principal tarefa e a grande oportunidade do diretor da transmissão. A segunda premissa é que a exibição nas telas idealmente se faz a partir de uma performance ao vivo – uma decisão que preserva deliberadamente a atmosfera de tensão dos broadcasting de concertos para as rádios, tão populares ao longo das décadas de vinte e trinta. Para uma certa matriz de produção de concertos televisionados, ambas ideias formam o setup básico do manual do telecasting da música clássica.

Pois assim seguiram ao longo da história, convergindo até as atuais produções para internet. São exatamente estes os pontos em comum das transmissões televisivas inaugurais nos EUA, realizadas pela Columbia Broadcasting System (CBS) e pela National Broadcasting Company (NBC), no mesmo dia, 20 de março de 1948 (aquela da CBS aconteceu 90 minutos antes da outra, e por isso é reconhecida como a primeira da história norte-americana), e aquelas da Filarmônica de Berlim, semanalmente. A despeito das mesmas premissas, as diferenças superficiais são enormes: enquanto aqueles projetos pioneiros contassem com três câmeras – de movimento e modos de operação extremamente limitados – as transmissões atuais podem usar, por monitoramento remoto, um número de até nove câmeras que, pelo silêncio e dimensão reduzida, podem ser usados com liberdade de ação quase total sobre o palco, sem incomodar músicos ou plateia.

Até pelos valores reduzidos, desdobramento da evolução tecnológica, nunca se transmitiu tanta música clássica para as telas. E, é evidente, a tecnologia impacta não apenas o volume destas iniciativas, mas também sua relação com o mercado. No Brasil, a Filarmônica de Minas Gerais é a pioneira em investir, por recursos próprios, numa produtora interna, com equipe dedicada e equipamentos próprios. Como diz Agenor Carvalho, Diretor de Comunicação da orquestra, “apesar do investimento inicial, trata-se de uma economia a médio prazo, uma vez que a contratação de empresa para a prestação de serviço prevê um investimento bastante alto. De qualquer maneira, a aquisição destes equipamentos só foi possível devido a uma emenda parlamentar direcionada a isto e também aquisição de novos instrumentos para a Orquestra.” Assumindo tal prestação de serviço especializado como parte integrante do dia a dia da orquestra, a Filarmônica de Minas irmana-se a iniciativas de instituições sinfônicas internacionais cujas posições fixas responsáveis por “Mídias Sociais” e “Produção de vídeo” acaba por conviver com outras mais tradicionais como “Gerente da orquestra” e “Produtor de palco”. Casos mais evidentes são os da Filarmônica de Nova York ou a Sinfônica de Detroit, com departamentos de pesquisa dedicados, chamado por “Audiences and Innovation” e “Digital Iniciatives”, respectivamente, e responsáveis pela exploração de modelos de acesso a estes “novos” públicos.

Os ganhos se dão tanto quanto a melhor monitoração dos direitos e uso de imagem quanto a maleabilidade nos modos de exibição ou qualidade do produto final – “uma equipe dedicada é a única que pode acompanhar os ensaios ao longo da semana, passar o tempo tornando precisos as complexas questões técnicas envolvidas na relação da partitura, dos músicos e maestros no palco, e as necessidades de áudio e vídeo de um projeto como esse”, diz Agenor Carvalho, “e o Instituto Cultural Filarmônica tem como premissa de atuação a excelência em todas suas frentes de trabalho, desde sua essência, que são as questões artísticas, muito bem lideradas pelo maestro Fabio Mechetti”, completa. É esta qualidade esperada que, segundo ele, norteia as ações que envolvem a Filarmônica Digital. “Trabalhamos para que o público possa, desde sua casa, ter o melhor da nossa Orquestra”.

A pergunta decisiva, neste segundo momento histórico das transmissões de concertos sinfônicos, há de passar pela qualidade audiovisual do que é transmitido. Não há qualquer dúvida, nos dias de hoje, que, do ponto de vista da fruição dos concertos, as transmissões servem não como sucedâneo das salas de concerto, mas como um empreendimento artístico em si, a exigir toda uma nova percepção. Isso é decisivo mas pouco discutido. O fato é que, se é verdade que “o meio é a mensagem”, a postura do ouvinte de um concerto para as telas é radicalmente diferente daquela de um ouvinte no teatro. E isso sem qualquer juízo de valor sobre a qualidade da recepção, que, afinal, é um dado psicológico muito complexo para vermos reduzidos nos termos duais: há oportunidade de experiências de alto nível pela tela, há oportunidade de uma experiência medíocre ao vivo. E vice-versa. Como recentemente comenta o crítico da Anthony Tommasini para o The New York Times, na edição do dia 13/03/2020:

No passado, eu elogiei as transmissões de rádio e as transmissões de alta definição como ferramentas poderosas para servir os devotos da música clássica e, talvez, para atrair os recém-chegados. Ao mesmo tempo, enfatizei que essa é uma forma de arte que idealmente deveria ser vivida ao vivo – em salas com acústica natural, quanto mais íntimo, melhor. Mas na quinta-feira, mergulhando em seis diferentes apresentações transmitidas durante a tarde e a noite, senti-me privilegiado por fazer parte desse público apenas online. Ouvi com maior atenção e gratidão. Este episódio pode chamar mais atenção para os serviços de streaming digital que estão disponíveis há anos. E quando a crise imediata passar, é possível que tenhamos dado um novo passo ao acostumar-nos à idéia de que o streaming não é apenas uma alternativa à maneira certa” de apreciar a música clássica, mas também um meio de performance viável por si só.

Tommasini não tem culpa de chegar atrasado ao problema (Herbert von Karajan não estava sozinho mas já havia entendido, na década de sessenta, que a transmissão de um concerto é um empreendimento artístico em si), mas é virtuoso que o aponte publicamente desse modo. Com a popularização das transmissões de concertos para a tela, será inevitável que o público adquira a sensibilidade para a gramática específica do audiovisual – a duração e musicalidade dos tempos de cada corte, a precisão e inteligência dos enquadramentos, a pertinência ou irrelevância do jogo entre as câmeras. Isso tudo já era discutido, acaloradamente, inclusive no The New York Times, na década de cinquenta, e de algum modo impressiona que os critérios da recepção destas transmissões tenha baixado tanto de expectativa para o telespectador médio. Mas é assim.

Eventualmente, a crítica precisará se atualizar, comentando não apenas se a música feita pela orquestra foi boa, mas se a realização do evento para as telas foi bom. Será oportunidade para, assim, reassumir seu importante papel de mediador e educador de um público. Por isso é que vejo a atual onda de streamings gratuitos como um efeito colateral positivo da atual crise sanitária. Resisto a me colocar ao lado daqueles que entendem a situação em termos melancólicos. A meu ver, a disponibilização destas produções ao público não é um grito de desespero: é um gesto de acolhimento e expansão, a prova da vitalidade enorme do meio e das instituições de um gênero que, mais que qualquer outro, parece estar aberto a reinventar-se e experimentar.

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