por André Egg e Murilo Cleto
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No próximo dia 10, João Gilberto Prado Pereira de Oliveira completaria 90 anos. A efeméride de seu nascimento, em Juazeiro, na Bahia, dá ao Brasil mais uma vez a chance de se olhar no espelho a partir do que tem de melhor.
Em sua pesquisa sobre João, Walter Garcia fala em uma “contradição sem conflitos” que caracteriza sua batida, que também poderíamos remeter a outros aspectos da personalidade algo extravagante do músico brasileiro que encantou o mundo.
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Como aponta Carlos Pires em artigo lapidar sobre “a causa” de João Gilberto, com ele conviviam o rigor de sua anedótica busca pela perfeição e também uma liberdade ímpar que fez Tom Jobim explicar assim o padrão de sua mão direita: “cada caso era um caso”.
O mesmo João Gilberto dos acordes sofisticados era, além do canto comedido e suave, o João Gilberto da apresentação que exigia pouco além de um banquinho e um violão. O mesmo João Gilberto, capaz de abandonar o palco por causa de um assovio fora de lugar, era o João Gilberto que dizia que, se pudesse, voltaria todas as noites para tocar para a mesma plateia até cansar. Ele, que ninguém conseguia contratar, era capaz de fechar, já quase amanhecendo e num frio de rachar, um festival de hippies no interior de São Paulo. Não sem antes pedir silêncio, é claro, mas fazendo o público cantar junto! (Como se pode ver no filme “O Barato de Iacanga”, disponível na Netflix.)
Lendária, a inacessibilidade de João Gilberto virou livro (“Ho-ba-la-la”, de Marc Fischer”) e filme documentário (“Onde está você, João Gilberto?”, de Georges Gachot). Mesmo recluso, no entanto, João gastava horas no telefone não apenas com compositores que admirava, mas também e especialmente com cozinheiros dos restaurantes nas redondezas que o serviam. Falava, mas também ouvia muito. Sabia da biografia de todos. Em Londres, conta-se que deu bolo em Eric Clapton.
Muito se diz, com razão, sobre o quanto João Gilberto mudou a música brasileira para frente. É difícil encontrar um grande artista da geração de 1960 que não admita ter começado tentando imitá-lo: Caetano, Gal, Chico, Gil, entre tantos outros. Caetano lhe atribuía o início de uma linhagem modernizadora da música brasileira, que chamou de “linha evolutiva de João Gilberto”, sempre a ser retomada.
João Gilberto resolveu reduzir o espaço ocupado pela voz na mixagem das canções, tanto literalmente — nas mesas de som — quanto através da forma delicada de cantar, que chamava mais atenção pela precisão na costura da melodia e pela musicalidade que a enunciação o mais natural possível das sílabas evocava do que pela potência ou demais recursos comumente associados ao que se entende por uma boa voz, como a emissão, a plenos pulmões, de longos vibratos, quase inexistentes em sua obra.
O violão de João Gilberto, um fenômeno à parte, destoa do que se destacava nas construções mais populares até então: sem baixarias e com raros e curtos fraseados, ele remete a uma espécie de percussão com harmonia. Enquanto o polegar da mão direita marca o baixo, como um surdo, o “IMA” — como os violonistas se referem aos dedos indicador, médio e anular — faz a vez do tamborim, com pelo menos duas particularidades: a primeira é que seu polegar estava sempre à frente, conferindo aos graves um aspecto ainda mais aveludado; e, segundo, é que dedo seu indicador costumava tocar um pouco mais forte que os demais.
João se notabilizou por tocar, sempre que possível, esses acordes em bloco. Em determinados momentos da carreira, isso se tornou uma quase obsessão, como se nota em diversas execuções de “Doralice” e “Pra Que Discutir Com Madame”, por exemplo. Como dava várias voltas na mesma canção antes de encerrá-la, com muitas variações no meio do caminho, João Gilberto eventualmente deixava o ritmo da batida suspenso — ou pressuposto na memória do espectador —, com ataques solitários em cada tempo, marcando apenas o seu contra, e voltando ao gingado quando desse na telha.
Pode-se dizer que ninguém mais tocou violão na música brasileira do mesmo jeito depois de João Gilberto — o instrumento que era mais ligado à tradição do choro e usado para contracantos melódicos, passou a ser o instrumento harmônico percussivo. Depois de João, aprender violão passou a significar um acorde na mão esquerda e uma batida na mão direita.
O impacto, principalmente do violão de João, foi percebido de forma mais incisiva por jovens músicos que se tornaram algo como seus seguidores. Nelson Motta, em suas memórias, fala do impacto que foi ouvir João — ele tinha 15 anos e nunca mais ouviu música da mesma forma. Outros músicos, como Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, decidiram até mesmo sistematizar e ensinar o violão de João Gilberto, já que o próprio jamais teria paciência para isso. Entre os alunos que procuraram essa “escola”, estava a jovem Nara Leão.
Mas não é só isso, embora isso já seja muito. João Gilberto também foi fundamental para dar ao país uma consciência sobre sua própria tradição musical. Como diz com propriedade o professor Arthur Nestrovski, com ele a canção brasileira mudou não só para frente, mas também para trás. “Ele não mudou só o futuro. Ele mudou o passado também. A nossa compreensão de tudo que veio antes de João Gilberto mudou depois de João Gilberto e por causa dele”, sustenta.
João regravou muitos sambas das décadas de 1930 e 1940. Gravava Noel Rosa, Geraldo Pereira, Dorival Caymmi. Gravava também muitos sambistas menos conhecidos. Embora tenha sido para ele que o epíteto bossa nova surgiu (e muitos o associavam à sua persona — chamando-o de “baiano bossa nova”), o próprio João sempre dizia quando entrevistado: “faço samba, não faço bossa nova”.
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Assim como a literatura e demais expressões culturais e artísticas de um país que ainda se perguntava se daria certo, a música brasileira também tinha uma história. Hoje esse diagnóstico é fácil de fazer. No fim dos anos 1950, nem tanto. Chega de Saudade, lançado em março de 1959, inaugura portanto muito mais do que uma nova batida.
Interessante observar como um crítico contemporâneo dimensionou essa aparição de João Gilberto. Ary Vasconcelos, em seu livro “Panorama da Música Popular Brasileira”, lançado em 1964, escolheu usar imagens religiosas. João Gilberto tocando violão em duas faixas no disco de Elizeth Cardoso em 1958 era o apóstolo da modernidade. Tinha tentado “catequizar” a cantora para abandonar o velho estilo, mas ela “não quis ou não conseguiu”. Por isso, para o crítico, a modernidade plena só surgiria com o disco autoral do ano seguinte, no qual João não apenas tocava violão mas também cantava.
Se, por lado, não restam dúvidas de que a bossa de João Gilberto aponta para o novo, em consonância com certo espírito modernizador da época, por outro é inegável que sua obra é responsável por recuperar canções e compositores muitas vezes esquecidos no tempo, numa espécie de triagem — para usar uma expressão cara a Luiz Tatit.
O mesmo João Gilberto que repercute as novidades, como a composição que nomeia seu disco de estreia, é o João Gilberto que busca Zé da Zilda e Marino Pinto. E João tocou de tudo. Recorreu a velhos sambistas, mas também a vanguardistas dos estilos mais improváveis. João Gilberto tocou até Lobão. Enquanto o samba-canção estava em declínio, interpretava Herivelto Martins e Lupicínio Rodrigues. Se houvesse Google na época, cada apresentação significaria um novo boom na procura por esses autores.
Ao longo da carreira, João Gilberto compôs poucas músicas. Nem precisou. Cada canção que pegou para tocar ganhou uma nova forma. Com ele, a ideia de “releitura” chegou a outro patamar. João Gilberto foi o maior recompositor do Brasil. Se algum desavisado fosse apresentado à sua discografia, poderia crer que era o autor de tudo. O futuro e o passado aqui não tensionam, mas convergem num presente arrebatador.
Apesar de frequentemente comum, é um erro tratar a bossa nova — e especialmente a música de João Gilberto — como um tipo de jazz. Lorenzo Mammi já havia sepultado essa questão em um artigo no início dos anos 1990. Em que pesem as influências externas que orientaram sua formação, o próprio João se considerava, como já dito, um sambista. E mesmo a batida que se pode reivindicar como nova tem, na verdade, raízes muito bem estabelecidas no cancioneiro nacional. Dá para citar, sem medo de errar, Garoto e, sem dúvidas, um dos grandes ídolos de João Gilberto, Geraldo Pereira — o rei do samba sincopado. Nas harmonias, há o toque de Radamés Gnatalli e de João Donato.
Ainda que não tenha sido o primeiro, João Gilberto levou a música brasileira para conquistar o mundo em poucos anos de carreira. Ainda hoje é o responsável pelos únicos Grammys conquistados pelo país nas principais categorias. Getz/Gilberto é o único disco vencedor estrelado por um brasileiro, assim como The Girl From Ipanema, considerada a melhor canção.
Em tempos de desalento generalizado, celebrar João Gilberto é celebrar o que o Brasil tem de melhor. É celebrar a própria história da música brasileira. Um Brasil que, definitivamente, deu certo.
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André Egg é Doutor em História pela USP e professor na UNESPAR e na UFPR.
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