por Ary Quintella
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Existe em Veneza uma placa de pedra, colada na parede de uma casa de cor ocre situada ao lado de uma pequena ponte. Sempre que passeio sem rumo pela cidade, em algum momento vejo a placa, em geral quando menos espero. Há momentos em que a procuro, não encontro a ponte de onde poderia vê-la, desisto e, no dia seguinte, por acaso, passo por ela. A cada vez, é a mesma surpresa. Fico sem entender que caminhos circulares me levaram até ali.
A placa comemora a estada de Mozart naquela casa por um mês, em 1771, quando ele tinha quinze anos. Leopold, seu pai, o acompanhava, mas é ignorado nos dizeres na pedra. Quando minha mulher e eu estivemos em Veneza pela última vez, em setembro de 2019, a placa estava decorada com uma guirlanda de folhas secas, e assim eu a fotografei. Parecia uma janela barroca.
O texto transmite justamente aquilo que, desde minha leitura das Memórias de Casanova, na adolescência, associo ao espírito veneziano do século XVIII. Caracteriza a cidade como sendo a de Vivaldi e Goldoni. Diz que Mozart, “il fanciullo salisburghese”, passou em Veneza, de forma festiva — “festevolmente” — o carnaval daquele ano. Só de ler essas palavras, os olhos comunicam à alma uma sensação de leveza.
Como todos nós, eu jamais poderia ter previsto naquele dia de setembro em Veneza, há mais de um ano, enquanto atravessava a ponte e fotografava a placa, que uma pandemia surgiria pouco tempo depois. Os meses imediatamente anteriores a fevereiro de 2020 parecem-me, hoje, mais inocentes do que até mesmo os anos da minha primeira infância. Revestem-se de uma aura de alegria, liberdade e despreocupação. Isso é, naturalmente, apenas uma fantasia post facto, mas demonstra o impacto causado pela Covid-19.
À medida que a pandemia se eterniza, a atitude filosófica com que eu a encaro parece-me mais e mais estoica. São já nove meses sem ver minha mulher, e onze sem ver minha filha ou minha mãe. No meio do caminho, em julho, minha tia, também madrinha de batismo, morreu de Covid-19. Inúmeros amigos contraíram o vírus mas sobreviveram. A vida cotidiana mudou para todos.
Em maio, mergulhado no confinamento compulsório na Malásia, afirmei em Roma não está mais em Roma que, no meio do isolamento social, não precisamos ficar tristes pela saudade de amigos, de nossa família ou de lugares, pois eles estão em nós e nos acompanham aonde vamos. Sete meses transcorreram desde então. As fronteiras da Malásia, de Singapura e da União Europeia continuam fechadas, o vírus segue presente entre nós, e as festas de final de ano se aproximam a galope sem que haja, para mim, perspectiva de reunião familiar.
Durante o confinamento na Malásia, entre março e maio, uma válvula de escape foram as transmissões gratuitas pela Internet de espetáculos gravados meses ou anos antes, por diferentes teatros, companhias ou orquestras. Avaliei em Cleópatra no Escritório que, por mais lúdico que fosse para o público acessar essas transmissões, para os intérpretes a pandemia criava uma situação insustentável a longo prazo. Por razões financeiras, e também porque o artista precisa de plateia tanto quanto de ar.
De meu conhecimento, apenas a Metropolitan Opera continua transmitindo gratuitamente, de forma regular, alguns de seus espetáculos. A mesma produção de Don Pasquale já passou ao menos três vezes desde março. Essa é uma ópera que me acompanha desde os vinte anos. Não há tédio e tensão que sobrevivam às risadas que ela provoca. Gosto infinitamente do libreto e da música. Endosso o comentário de Zito Batista Filho, em seu livro A Ópera: “Tudo termina bem, como convém a uma ópera bufa que é, aliás, uma das mais belas em seu gênero”.
Quantas vezes, porém, pode um admirador de Donizetti assistir à mesma produção de Don Pasquale, ainda que excelente, e ver Anna Netrebko no papel de Norina, no mesmo cenário, com as mesmas roupas, na mesma gravação? Netrebko esteve hospitalizada, em setembro, com Covid-19, mas li que se recuperou bem. Ela pode voltar a cantar nas casas de ópera da Europa que venham a reabrir ou novamente fechar em função dos meandros da pandemia. Já a Met Opera permanecerá ociosa até setembro de 2021, e não paga desde abril aos seus músicos — ao menos um dos quais morreu de Covid-19 logo no início da pandemia. Um dos parceiros de Anna Netrebko em Don Pasquale, o barítono polonês Mariusz Kwiecien, anunciou, também em setembro, que, embora ainda jovem, já não cantaria nos palcos, por um problema de coluna. No mundo eternizado dos vídeos da Metropolitan, porém, nada mudou. A orquestra está intacta. Donizetti nos encanta. Anna, no papel de Norina, e Mariusz, no de Dr. Malatesta, estão saudáveis, e ela se casa em todas as transmissões com Ernesto, personificado pelo tenor Matthew Polenzani.
No futuro, haverá análises acadêmicas sobre como a repetição incessante pela Met Opera, ao longo de 2020, das mesmas gravações de algumas de suas produções terá influenciado a estética teatral no mundo. Em setembro de 2019, em Covent Garden, assisti a uma estupenda produção de Agrippina, de Handel, com Joyce DiDonato no papel-título, como mencionei em O Delacroix de Chelsea. Uma das últimas apresentações pela Metropolitan, em março de 2020, antes de seu fechamento, foi justamente a de outra produção da mesmíssima Agrippina, com a mesmíssima Joyce DiDonato. A montagem do Lincoln Center já foi transmitida duas vezes nas últimas semanas e, a esta altura, virou minha referência, suplantando a de Covent Garden, embora esta talvez fosse melhor.
Nunca pensei que teria a sorte de assistir a Nixon in China, onde John Adams, como compositor, e Alice Goodman, como libretista, conseguem a façanha de tornar interessante uma ópera contemporânea (1987) sobre um tema de política externa — que é agora também, tantos anos depois do evento descrito, um tema de história diplomática. É uma obra artística que talvez estimule o estudo das relações internacionais. Duas noites, ao longo dos meses de pandemia, pude ver e ouvir a soprano Janis Kelly cantar a ária This is prophetic, em que Pat Nixon, em Beijing, prevê um mundo mais simples e portanto, nessa visão, mais feliz:
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and everywhere the simple virtues root
and branch and leaf and flower.
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Uma ópera que não morava no meu coração é Idomeneo. Não guardo lembrança alguma da única vez em que a vi no palco, em Bruxelas, há dez anos. Assistir no computador duas vezes, em pouco tempo, à produção da Met Opera deixou-me agora entusiasmado por essa opera seria mozartiana. Luxuosamente barroco, montado por Jean-Pierre Ponnelle em 1971, e parecido com a sua produção de La Clemenza di Tito, esse Idomeneo revela detalhes da música que eu anteriormente não notara.
Matthew Polenzani, que poucas noites antes parecera ser o simplório Ernesto apaixonado pela esperta Norina, reaparece transformado em figura mitológica, majestática, o heroico Rei de Creta, ele mesmo, Idomeneo, regressando da Guerra de Troia. A ária final de Electra — em que ela enlouquece de amor não correspondido — tal como interpretada pela soprano Elza van den Heever é uma grande cena de teatro. Arrasta-se ela pelo chão, com olhar alucinado, afastando freneticamente do vestido, com as mãos, as Fúrias que somente ela vê, enquanto a elas suplica: “Squarciatemi il cuore, ceraste, serpenti”. Na estreia da ópera em 1781, em Munique, essa foi uma das árias cortadas por Mozart, para encurtar a produção, e isso já é motivo para pensar como é bom estar vivo em 2020, em vez de no século XVIII. Na produção de Ponnelle, Electra morre no palco, contorcendo-se, ao terminar a ária. Menos dramaticamente, o libreto nos diz que ela “parte, infuriata”.
O recente aumento no número de casos de Covid-19 na Malásia criou novas restrições à vida social. Impossibilitado de ver minha família, condenado de noite, ao voltar do trabalho, a ver uma vez mais no computador Anna Netrebko ou Joyce DiDonato nos mesmos papéis em que já as vi várias vezes desde março, senti um dia que precisava recuperar alguma lembrança da infância, de repente transformada, na minha fantasia, em época em que tudo era perfeito.
Foi então que pensei no disco de Mozart.
Aos 8 anos de idade, ganhei de presente dos meus pais, na Bélgica, um disco de vinil com duas sinfonias do “fanciullo salisburghese”, a Nº 40 em sol menor e a “Júpiter”. Durante muitos anos, esse disco foi um dos meus tesouros. Mesmo hoje, pego-me frequentemente cantarolando as duas sinfonias. A própria composição gráfica da capa era sedutora, com uma moldura azul celeste e, no centro, a reprodução de um quadro barroco repleto de personagens em uma cena rural.
A música de Mozart parecia revelar as complexidades, portanto as decepções, que aguardam todo ser humano, mas trazia também a cura mágica. Quando, na mesma época, entendi que um dia eu já não respiraria, não pensaria, não sentiria, saber que o compositor de dons terapêuticos também se extinguira tornou a perspectiva menos assustadora. O que consolava antecipadamente da morte era lembrar que Mozart morrera um dia. Hoje, como vivi já bem mais do que ele, que morreu tão jovem, esse pensamento produz um efeito menos benéfico. Comparo quem ele foi com quem eu sou, com tantos anos a mais na Terra, e considero-me insatisfatório. É cruel, injusto, viver mais do que ele e não produzir algo como Don Giovanni ou Così fan Tutte ou a Sonata para Piano K.331.
Nada ilustra mais a maldade representada pelo desaparecimento de Mozart aos 35 anos, em 1791, do que um trecho das Conversações com Goethe de Johann Peter Eckermann. Quarta-feira 3 de fevereiro de 1830: “Jantei em casa de Goethe. Falamos de Mozart. Goethe disse: ‘Eu o vi, garoto de sete anos, quando ele dava um concerto em uma de suas viagens. Eu mesmo tinha então cerca de catorze anos, e me lembro ainda muito nitidamente daquele garotinho de peruca e espada na cintura’. Fiquei boquiaberto. Pareceu-me prodigioso que Goethe fosse velho o suficiente para ter visto Mozart criança”. Como Eckermann, fico eu também “boquiaberto” com isso. O romancista, poeta, dramaturgo, cientista e membro da Corte de Weimar tinha 80 anos na noite desse jantar em 1830.
Em outra conversa, Goethe afirma que só Mozart teria sabido transformar em ópera o seu Fausto, publicado em 1808, dezessete anos depois da morte do compositor. Para mim, o comentário é doloroso, porque traz à tona outro sentimento muito presente na minha adolescência, o da perda de obras magníficas que nunca escutaremos, porque Mozart morreu cedo demais para compô-las.
No apartamento em Kuala Lumpur, ansiei pelo consolo do disco da minha infância com as duas sinfonias. Guardo com carinho os meus antigos LPs. Fui até a estante onde eu os colocara, ao abrir a mudança em junho. Embora eu não tenha ainda conectado aquilo que se costumava chamar de vitrola, era possível ao menos olhar e segurar o disco de Mozart, admirar a capa, alisar o vinil. Isso não apresentava qualquer problema.
Só que sim.
Simplesmente, o disco desapareceu. Estão todos lá, os LPs que me acompanharam na infância e na adolescência, antes da chegada do CD, e que ajudaram a formar minha personalidade. Todos, não. Do disco com as duas sinfonias, não há sinal. Não consigo lembrar em que momento ele sumiu. Terá quebrado? Ou ficado tão arranhado que, em um ato de desapego pouco característico, eu o joguei fora? Vai ver, simplesmente desapareceu, como tudo na vida desaparece, assim, sem razão, como o próprio Mozart partiu um dia.
Quis verificar o nome do regente e da orquestra na gravação. Uma busca na Internet, em poucos minutos, mostrou-me a capa. Vi então que a cena rural no centro é um quadro de Rubens. Meu apreço pelo pintor é sólido, resquício da infância passada na Bélgica. Houve a decisão, em setembro de 2019, já que estava de férias na Europa, de ir até Antuérpia apenas para revisitar sua casa; há as costumeiras tentativas, que consigo sempre frustrar, de rever no Louvre seu ciclo cobre a vida de Maria de Médicis.
A verdadeira surpresa da capa porém era outra. O regente, Karl Ritter, e a Orchestre de la Société des Concerts de Vienne nada me diziam. E nem poderiam. Nunca existiram. No século XIX houve um compositor menor, com esse nome, que foi aluno de Schumann. Somente uma busca intensa na Internet permitiu-me colher essa informação. Esse aluno de Schumann obviamente não poderia ter gravado um disco na segunda metade do século XX. Em resumo, meu disco de Mozart, descobri em Kuala Lumpur tantas décadas depois, era um genérico, copiando uma gravação fidedigna, mas modificando os nomes do regente e da orquestra para evitar direitos autorais ou problemas legais. Era um disco pirateado.
Essa descoberta propiciou o consolo desejado, ainda que não da forma prevista. A falsidade nos nomes dos artistas, na capa do vinil desaparecido, fez-me perceber o deslocamento que eu promovera ao longo do tempo. Atribuíra poderes encantatórios a um objeto material, em vez de à música nele gravada. O importante não era o disco, aquele fetiche que sobrara, por alguns anos, da infância. A música é o que conta. Um disco de vinil quebra. Não deixa rastros. Como as sucessivas idades da infância, ele se desvanece. Mozart morre. O que ele teve tempo de criar permanece, dando sentido à vida.
A infância não foi bonita e segura porque vivida na era pré-pandemia ou por causa da forma como transcorreu. Ela teve, a bem da verdade, os seus dramas. Preservar ou perder o disco não muda nem o passado e nem o presente. Depende só de nós valorizar a música, em vez do objeto. Depende só de nós, mesmo nos momentos mais difíceis, como este longo 2020, criar felicidade onde poderia haver tristeza. O velho LP, como Mozart, desapareceu; como as duas sinfonias, o que ele representava pode para sempre perdurar.
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Ary Quintella publica seus ensaios e crônicas na página aryquintella.com.
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