Um silêncio nada inocente

Em sua primeira intervenção após o agravamento da situação venezuelana, Gustavo Dudamel seguiu com as declarações pusilânimes de sempre clamando “líderes políticos a encontrar os meios necessários de resolver a crise na Venezuela” - sem citar nomes ou causas, condições concretas ou propostas objetivas.

por Leandro Oliveira

Gabriela Montero, pianista que fez as cabeças de todos nós com seus improvisos na Sala São Paulo em 2007, tornou-se, ao longo dos últimos anos, uma das solistas mais celebradas da Osesp, acompanhando-a inclusive na sua última turnê européia. Gabriela é também, no meio artístico, uma das dissidentes mais proeminentes dos desmandos em seu país natal, a Venezuela.

Outra figura ilustre do universo musical clássico é Gustavo Dudamel. Também venezuelano, também contemporâneo da atual conjuntura trágica pela qual passam seus conterrâneos, o regente acumula os postos de diretor musical da Orquesta Sinfónica Simón Bolívar e da Los Angeles Philharmonic. Ao contrário de Gabriela, no entanto, prefere atuar em uma zona nebulosa quanto a seu posicionamento político.

O capítulo mais recente desta triste história se desenrolou na última semana. Em sua primeira intervenção após o agravamento da situação venezuelana, Gustavo Dudamel seguiu com as declarações pusilânimes de sempre clamando “líderes políticos a encontrar os meios necessários de resolver a crise na Venezuela” – sem citar nomes ou causas, condições concretas ou propostas objetivas. Veja o vídeo:

O importante jornalista inglês Norman Lebrecht, que tão facilmente julga a posição antissemita de artistas mortos como Richard Wagner, vem à sua página para comentar do “ato de coragem” do jovem regente venezuelano, em todos os termos, vivíssimo. Segundo ele “Dudamel, que mora nos EUA e trabalha em todo o mundo, não tinha motivos para colocar a cabeça acima do parapeito.” Curiosamente, e de modo involuntário, explicita logo após as próprias contradições:

“Ele nunca falou antes sobre a política venezuelana. Se ele tivesse ficado quieto, ninguém teria sido capaz de culpá-lo por isso – pelo menos não mais do que já o fizeram. Ele deve ter estado ciente que fazer qualquer movimento é um gesto onde ninguém ganha. Sei por encontros pessoais que Gustavo Dudamel ama seu país e mantém uma ingênua admiração por seu ex-líder, Hugo Chávez. Dudamel não é um político, mas tem um sentido agudo de responsabilidade para os músicos na Orquestra de Simon Bolivar, que dirige. Ter tido um ataque aberto ao governo de Maduro teria exposto seus músicos ao risco de vida. Ele não podia fazer.”

Nesta segunda-feira, dia 01 de maio, Gabriela Montero publica em seu Facebook:

“Varios músicos del Sistema me han escrito para pedirme que denuncie que el régimen y la directiva del Sistema (otra dictadura y un poco de enchufados) los están obligando a marchar hoy Lunes en la marcha chavista.”

Numa explicação objetiva: as autoridades de Caracas ordenaram que os músicos da orquestra do El Sistema saíssem e marchassem no dia 1º de maio em apoio ao governo de Maduro. Evidentemente, estão sob ameaça.

Por quase vinte anos, os músicos do El Sistema apresentaram-se em eventos oficiais, ou pelo mundo afora com um modelito de gosto duvidoso, a revisitação do moleton esportivo de Fidel Castro, com as cores nacionais venezuelanas.

Gustavo Dudamel – que até este vídeo público limitava-se a dizer que “arte não pode tratar de política” – jamais se absteve de ser a marionete de um projeto de poder, deixando-se instrumentalizar, conscientemente ou não, ao receber calado o prestígio das grandes orquestras e sociedades de concerto de todo mundo enquanto presenciava as agruras de seu país. Em termos políticos, Dudamel jamais foi seu porta-voz declarado (fala a respeito apenas para justificar-se nos argumentos tolos de que “música é energia para alma“); mas permitiu-se ser a Übermodel de um quimérico socialismo do século XXI, sua Christy Turlington.

Hugo Chávez e Gustavo Dudamel

Em uma entrevista para “Paris Review”, Woody Allen comenta achar curioso o tipo de auto-promoção que artistas fazem quando advogam a si mesmos o status de pessoas que “assumem riscos”:

“Artistic risks are like show-business risks — laughable. Like casting against type, wow, what danger! Risks are where your life is on the line. The people who took risks against the Nazis or some of the Russian poets who stood up against the state — those people are courageous and brave, and that’s really an achievement.” (Riscos artísticos são como os riscos do show-business — risíveis. Como contratar o tipo errado para o papel, uau, que perigo! Riscos existem quando a sua vida está na berlinda. As pessoas que assumiram riscos contra os nazis ou alguns dos poetas russos que se ergueram contra o estado — essas pessoas foram corajosas e destemidas, e isso é realmente uma conquista).

Allen é um realista e fala da vida como ela é. Para a vida como ela é, o acontecimento de fato não é enclausurar-se no edifício da beleza da arte e suas epifanias. Isso não é resistir, mas fugir. O que Allen não diz é que a fuga daqueles que têm os meios para fazer a diferença é tudo que os projetos totalitários querem. Para que as coisas tenham alcançado a dimensão que alcançaram na Venezuela, seus artistas influentes devem ter estado calados por tempo demais. Dudamel, enquanto pôde, calou-se e, calando-se, foi um dos mais oportunistas prosélitos do regime.

Agora, quando fala, faz pouco.

Post Scriptum: Após o encerramento desta edição, Gabriela Montero publicou a seguinte mensagem em sua página de Facebook:

“Quando teu dono e amo é quem te assassina…

“Na segunda-feira, Eduardo Mendez (Diretor Executivo de El Sistema), ‘Cachorro’ (braço direito e assistente de Gustavo Dudamel) e outros membros da orquestra foram fotografados em apoio ao regime assassino de Maduro.

“Ontem (quarta-feira), Armando Cañizales, um jovem músico do Sistema, de 17 anos, foi assassinado pelo mesmo regime legitimado por aquelas pessoas, regime do qual fizeram propaganda pelo mundo pelos últimos 18 anos.

“Armando protestava com uma contundente maioria de Venezuelanos, contra a barbárie que sofre hoje nosso país.

“Meu mais sentido pêsame à família de Armando.”

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