por Leandro Oliveira
Um amigo pergunta: por que não tocamos as trilhas de grandes filmes na Sala São Paulo? A verdade é que desde uma recente apresentação célebre pela Filarmônica de Berlim da música de John Williams, Nino Rota e tantos outros, a pergunta acaba por ser muito comum. Mas respondi com outra pergunta: seria o tema “O Poderoso Chefão” música para apresentações da programação oficial de grandes orquestras para além daquelas situações especiais em que acaba por ser apresentado?
E, antes que venham gritar os desavisados, isso nada tem a ver com preconceito de seus programadores ou de seu público: as trilhas de Nino Rota, quase todas, sem exceção, sobrevivem ao filme e guardam uma identidade estilística indiscutível. Mas – e isso todo músico sério reconhece – sua função específica, sua pertinência como música incidental, de algum modo coíbem sua descontextualização em apresentações, por exemplo, na Sala São Paulo. Em parte, isso se dá em respeito ao próprio compositor.
Rota não precisaria ter suas obras cinematográficas executadas por orquestras pois de fato tem uma vastíssima produção musical para salas de concerto que segue ainda pouco explorada. Entre suas obras mais significativas estão óperas e balés – “Ariodante” (1942), “Torquemada” (1943), “Il cappello di paglia di Firenze” (1955), “La notte di un neurastenico” (apresentado no Teatro La Scala em 1960), ou “Amor di poeta” (1978) para Maurice Bejart –, mas também concertos e sinfonias, peças para piano solo, obras corais com ou sem orquestra: todas com o indiscutível selo de qualidade de um dos grandes orquestradores e melodistas de nossa época. Estas, sobretudo as óperas, seguem impregnadas da mesma atmosfera mágica de sua obra para filmes. Mas não há por que pensar que o público que já cantarola o “Tema do Chefão” deixaria de seguir encantado com o compositor da interessantíssima “Sinfonia n. 1 em Sol maior” (1936), a neoclássica “Sinfonia n.3 em dó maior” (1956), o extraordinário “Concerto para harpa” (1947).
Nino Rota (1911 – 1979) nasceu em uma família de músicos de Milão. Foi aluno primeiramente de Giacomo Orefice e Ildebrando Pizzetti até que, habitando já em Roma, completa seus estudos com Alfredo Casella no Conservatorio di Musica Santa Cecilia. Era o ano de 1929, e o jovem já se tornara conhecido como um menino prodígio tanto como regente quanto como compositor: seu primeiro oratório “L’infanzia di San Giovanni Battista” foi executado em Milão e Paris em 1923, e sua comédia musical “Il Principe Porcaro” foi composta em 1926. Após seus estudos na Itália, frequentou o Curtis Institute na Filadélfia, onde teve por professor o maestro Fritz Reiner e fez amizades com Arturo Toscanini e Igor Stravinsky. De volta à Itália, em 1936, começa sua longa carreira como professor, culminando sua carreira como diretor do Conservatório Niccolò Piccinni de Bari, posto em que permanece de 1950 a 1978, um ano antes de sua morte por ataque cardíaco e contemporâneo aos grandes filmes como “Totò al giro d’Italia” (Mario Mattoli, 1952), “La grande guerra (Mario Monicelli, 1959), “La bisbetica domata (Franco Zeffirelli, 1967) e, com Luchino Visconti, “Le notti bianche” (1957), “Rocco e i suoi fratelli” (1960), Il gattopardo (1963). Além disso, é claro, foi este o período da mais impressionante e frutífera colaboração entre autores de música e cinema, aquela de Nino com Federico Fellini – que se estende de “Lo sceicco bianco” (1952) a “Prova d’orchestra” (1978), passando por “La strada” (1954), “La dolce vita” (1960), “8 ½” (1963) e “Amarcord” (1973).
A vida dupla de diretor de conservatório e compositor para vários meios poderia resultar numa personalidade artística esquizofrênica. Mas Rota soa como Rota sempre. Isso é muito revelador de sua capacidade técnica, além de ser bastante idiossincrático em um meio com compositores extraordinários como John Williams ou Ennio Morricone que, como camaleões, trocam a cor da roupa para cada situação. Rota segue completamente reconhecível, e isso se deve em parte à sua formação sofisticada e precoce – garantidora de uma maturidade artística sólida –, mas também às suas fontes muito particulares.
Um historiador da música que passasse pelo catálogo dos nomes que participaram da formação de Rota – Pizzetti, Casella, Reiner – apostaria tratar-se de um compositor de raízes profundamente ligadas a uma certa atitude modernista. Em parte isso é verdade, mas apenas na medida em que atitude não é necessariamente absorção de valores. O “modernismo especial” que grassa na Itália dos anos de 1920 e 1930 será aquele a encontrar ecos nos expedientes neoclássicos de figuras como Benjamin Britten e o nosso Francisco Mignone. E embora seja uma modernidade que jamais perde suas raízes românticas, que jamais se deslumbra com os expedientes da vanguarda ou abraça qualquer coisa pelo simples interesse da novidade, a verdade é que a música de Nino Rota é, ainda entre aqueles, pouco ousada. De seus professores, no entanto, Rota absorve o senso de estrutura, o respeito ao passado, o cultivo de uma certa linguagem que acaba por amadurecer anacrônica e sobretudo, um enorme poder evocativo de imagens através dos sons.
Por isso, em Nino temos tais grandes melodias, tais impressionantes achados instrumentais (o realejo de “O Poderoso Chefão” é extraordinário) e, por isso, tamanha eficiência cinematográfica autoevidente. Nino opta pelo público e essa opção é que torna coerente sua música em todas as esferas de sua produção. Para o professor Pier Marco De Santi – do curso de Cinema da Universidade de Pisa – é a coerência a grande lição de Rota. “Miklos Rozsa foi um de seus grandes admiradores, e mesmo Stravinsky – que detestava música de filme – uma vez teria o chamado de príncipe da música de cinema”. Nino por si, queria ser lembrado pela sua quase falta de pretensão. Dizia muitas vezes, “Simplicidade é o objetivo, não o ponto de partida. Para ser simples em música há que se trabalhar muito”.