Gilgamesh nasceu, a um tempo, mais de dois mil anos antes de Cristo e quase dois mil anos depois. Após seu reinado na cidade de Uruk, na Mesopotâmia, foi praticamente inexistente para nossos ancestrais desde os tempos de Moisés ou Homero até o século XIX, quando sua história cunhada em tabletes foi exumada dos escombros da antiga Nínive, hoje no Iraque, e decifrada em Londres. Apesar de não ser o primeiro fragmento literário nem narrativo, pela sua potência e amplitude, ela foi consagrada como a “História mais Antiga do Mundo”. É também das mais abrangentes, contendo tudo o que faz uma história apaixonante — batalhas, sexo, monstros, aventuras, mágica, lealdade, morte – mas explorado com uma profundidade raras vezes igualada por todas as histórias que vieram depois. Os leitores modernos viram nela uma precursora das questões mais polêmicas da contemporaneidade: da preservação ambiental à legitimação do amor homossexual até a emancipação dos oprimidos. Não por acaso, os sumérios conheciam Gilgamesh como “Aquele que supera todos os reis” e os acádios como “Aquele que o abismo viu”. Como aos descendentes de Noé, lhe foi dado ver a destruição cataclísmica da raça humana; como os grandes heróis da antiguidade, ele foi filho de deuses e homens; como Heitor ou Aquiles, foi o maior guerreiro de seu povo; como Ulisses, percorreu os confins do mundo, mas não só para retornar à sua casa, e sim, como Enéias, para criar uma civilização; como eles, e Dante, atravessou o mundo dos mortos; como Fausto e o jagunço Riobaldo do Grande Sertão, transacionou com forças demoníacas para ultrapassar os limites humanos; e, como este último, tocou a imortalidade através do amor do melhor amigo e ao preço de sua morte. No preâmbulo, o poeta nos assegura que ele foi um titã em força e sabedoria. Mas tudo o que vemos em sua história é um tirano impiedoso com seu povo, ímpio com os deuses, impudente com as mulheres e imprudente com a natureza, que sacrificou a vida do seu amigo por um capricho; menosprezou as virtudes da vida familiar; abandonou suas responsabilidades para viver como um vagabundo selvagem; perdeu um elixir prodigioso por desleixo; perseguiu soluções quiméricas para o mistério da vida; e, na hora extrema, a ponto de receber a verdadeira resposta, foi incapaz de ficar acordado por mais de 5 minutos e dormiu como uma criança.
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Convidados
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Jacyntho Brandão, Professor emérito de letras clássicas da Universidade Federal de Minas Gerais e tradutor da Epopeia de Gilgámesh.
Katia Pozzer, Professora de história da arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e coordenadora do Laboratório de Estudos da Antiguidade Oriental.
Marcelo Rede, Professor de História Antiga da Universidade de São Paulo e autor de Família e Patrimônio na Antiga Mesopotâmia.…….
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