O diabo ofereceu-se três vezes para pactuar com Jesus (além de propor, pela boca de Pedro, que fugisse de Cruz), mas (desconsiderada a barganha entre Eva e uma serpente) a primeira pessoa a fazer um pacto com Satanás foi o próprio Deus, ao permitir que infernizasse a vida de Jó. Porém o mais famoso pactário de todos os tempos foi Fausto – e o mais bem-sucedido demônio foi Mefistófeles. Nem o diabo dantesco, eternamente imobilizado no gelo do fundo do inferno, mastigando três cabeças com suas três cabeças, nem o príncipe rebelde do Paraíso Perdido de John Milton, Mefistófeles é mundano, prestativo, jocoso, quase um amigo, ou melhor, um perfeito serviçal, pronto a servir ora como um estudante, ora como um bufão, um mágico, um cavalheiro, um general e até mesmo um… poodle. Generoso, seu pacto com Fausto previa gozo, saber e poder ilimitados por 24 anos, mas já dura a quase 500.
Enquanto como bom servo ele se apagava, a ponto de, como dizia Baudelaire, convencer o homem moderno de que não existe, a estrela de Fausto brilhava: ele penetrou os segredos da natureza, enriqueceu ao lado de imperadores, se casou com Helena de Troia e hoje é, junto a outros como Don Juan, Don Quixote, Hamlet ou Robinson Crusoe, um dos grandes mitos do individualismo moderno. Mas este arquétipo do intelectual desesperançado, orgulhoso e insaciável é o único cuja lenda tem uma origem documentada: um certo Georg Faust, mago que segundo Lutero chamava o diabo de “cunhado” e para Melanchthon era uma “besta vil e um poço de muitos demônios”. Logo após a sua morte, entrou para o folclore em brochuras moralizantes como pactário exemplar e delas foi absorvido pelos teatros de marionetes de onde entretém crianças até hoje. Foi elevado à grande literatura com a tragédia de Christopher Marlowe, e ali introduzido à Academia e ao inferno. Com a de Goethe chegou aos céus, ganhando contornos épicos (ainda que cômicos), e no romance de Thomas Mann o mito foi transfigurado (ainda que desconstruído).
A barganha fáustica também inspirou diretamente autores como Lessing, Heine, Lenau, Púchkin, Turgueniev, Paul Valéry, Klaus Mann, Boulgakov e Fernando Pessoa, e, indiretamente Byron, E.T.A. Hoffmann, Dostoiévski, Oscar Wilde e Guimarães Rosa. Protagonista de óperas de Berlioz, Busoni, Gounot e Arrigo Boito, e peças orquestrais de Schumann, Liszt, Wagner, Mahler e, claro, do grande Adrian Leverkühn – isso sem falar no cinema, de Murnau a Sokurov –, Fausto avança incansável rumo ao Terceiro Milênio. De fato, pergunta Erich Heller: “Qual é o pecado de Fausto? Sua inquietude de espírito. Qual é a salvação de Fausto? Sua inquietude de espírito.”
Convidados
Juliana Perez: Professora de literatura alemã da Universidade de São Paulo e membro do grupo de pesquisa “Literatura e Sagrado”.
Marcus Mazzari: Professor de teoria literária da Universidade de São Paulo e autor da tese de livre-docência Romance de formação, pacto fáustico e outros temas de literatura comparada.
Patricia Maas: Professora de literatura alemã na Universidade Estadual Paulista e autora de O cânone mínimo: o Bildungsromanna história da literatura.