Direito e moral, por H.L.A. Hart

Validade jurídica e valor moral: Seção 3 do Capítulo IX (“Direito e Moral”) de O Conceito de Direito, de Herbert Lionel Adolhpus Hart. Oxford, 1961 d.C.

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Validade jurídica e valor moral: Seção 3 do Capítulo IX (“Direito e Moral”) de O Conceito de Direito, de Herbert Lionel Adolphus Hart.

Oxford, 1961 d.C.

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H.L.A. Hart (Steve Pyke/Getty Images)

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As proteções e benefícios conferidos pelo sistema de abstenções recíprocas que subjaz, quer ao direito, quer à moral, podem, em diferentes sociedades, estender-se a categorias muito diferentes de pessoas. É verdade que a negação dessas proteções elementares a qualquer categoria de seres humanos, disposta a aceitar as correspondentes restrições, ofenderia os princípios da moral e da justiça  a que todos os Estados modernos prestam, em qualquer caso,  tributo verbal. A visão moral professada é, em geral, impregnada pela concepção de que, nestes pontos fundamentais, pelo menos, os seres humanos têm o direito de ser tratados de forma igual e que as diferenças de tratamento exigem, para as justificar, mais do que um apelo aos interesses dos outros.

Contudo, é claro que nem o direito nem a moral aceite pelas sociedades precisam de estender as suas proteções e benefícios mínimos a todos, dentro do seu âmbito, e frequentemente não o têm feito. Em sociedades esclavagistas o sentido de que os escravos são seres humanos, e não meros objetos de uso, pode ter sido perdido pelo grupo dominante, muito embora tal grupo possa ser moralmente mais sensível para as pretensões e interesses uns dos outros. Huckleberry Finn, quando lhe perguntaram se a explosão da caldeira do barco a vapor tinha ferido alguém, respondeu: “Não, senhora; matou um negro”. O comentário da Tia Sally — “Bem, tiveram sorte, porque por vezes ficam feridas pessoas” — resume toda uma  moral  que  tem  prevalecido  frequentemente  entre  os homens. Quando prevalece, como Huck descobriu à sua custa, o estender aos escravos a  preocupação  pelos outros,  que é  natural entre os membros do grupo dominante, pode bem considerar-se como um delito moral grave, o qual traz consigo todas as sequelas de culpa moral. A Alemanha nazi e a África do Sul mostram casos paralelos desagradavelmente próximos de  nós  no tempo.

Embora o direito de certas sociedades tenha ocasionalmente estado adiantado em relação à moral aceite, normalmente o direito segue a moral e o próprio homicídio de um escravo pode ser encarado apenas como um desperdício de recursos públicos ou como um delito contra o dono de quem aquele é propriedade. Mesmo onde a escravatura não é oficialmente reconhecida, as discriminações com fundamento na raça, cor ou crença podem produzir um sistema jurídico e uma moral social que não reconhecem que todos os homens têm direito a  um mínimo de proteção dos outros.

Estes factos penosos da história humana são suficientes para mostrar que, embora uma sociedade, para ser viável, deva oferecer a alguns dos seus membros um sistema de recíprocas abstenções não necessita, infelizmente, de oferecê-las a todos. É verdade, como já temos acentuado na discussão da necessidade de sanções e da possibilidade respectiva, que, para um sistema de regras ser imposto pela força sobre quaisquer pessoas, deve haver um número suficiente que o aceite voluntariamente. Sem a cooperação voluntária deles, assim criando autoridade, o poder coercivo do direito e do governo não pode estabelecer-se. Mas o poder coercivo, assim estabelecido na sua base de autoridade, pode ser usado de dois modos principais. Pode ser aplicado só contra os malfeitores que, embora lhes seja conferida a proteção das regras, todavia as violam de forma egoísta. Por outro lado, pode ser usado para subjugar e manter numa posição de inferioridade permanente um grupo dominado, cuja dimensão, relativamente ao grupo dominante, pode ser grande ou pequena, dependendo dos meios de coerção, solidariedade e disciplina à disposição do último e da impotência ou incapacidade de organização do primeiro. Para aqueles assim oprimidos, pode não haver nada no sistema destinado a suscitar a sua lealdade, mas apenas coisas a recear. São as suas vítimas, não os seus beneficiários.

Nos anteriores capítulos deste livro, frisámos o facto de que a existência de um sistema jurídico é um fenómeno social que sempre apresenta dois aspectos, a ambos os quais devemos atender, se a nossa visão dele pretender ser realista. Envolve as atitudes e comportamentos implicados na aceitação voluntária das regras e também as atitudes e comportamentos mais simples envolvidos na pura obediência ou aquiescência.

Por  isso, uma  sociedade com direito abrange os que encaram as suas regras de um ponto de vista interno, como padrões aceites de comportamento, e não apenas como predições fidedignas do que as autoridades lhes irão fazer, se desobedecerem. Mas também compreende aqueles sobre quem, ou porque são malfeitores, ou simples vítimas impotentes do sistema, estes padrões jurídicos têm de ser impostos pela força ou pela ameaça  da  força; estão preocupados com as regras apenas como uma fonte de possíveis castigos. O equilíbrio entre estes dois componentes será determinado por muitos fatores diferentes. Se o sistema for justo e assegurar genuinamente os interesses vitais de todos aqueles de quem pede obediência, pode conquistar e manter a lealdade da maior parte, durante a maior parte do tempo, e será consequentemente estável. Pelo contrário, pode ser um sistema estreito e exclusivista, administrado segundo os interesses do grupo dominante, e pode tomar-se continuamente mais repressivo e instável, com a ameaça latente de revolta. Entre estes dois extremos, podem encontrar-se várias combinações destas atitudes para com o direito, frequentemente no mesmo indivíduo.

A reflexão sobre este aspecto das coisas revela uma verdade tranquilizante: a passagem da forma simples de sociedade, em que as regras primárias de obrigação são o único meio de controle social, para o mundo jurídico com o seu poder legislativo, tribunais, funcionários e sanções, todos organizados de forma centralizada, traz ganhos apreciáveis, com um certo custo. Os ganhos são os da adaptabilidade à mudança, certeza e eficiência, e são imensos; o custo é o risco de que o poder organizado de forma centralizada bem possa ser usado para a opressão dum número de pessoas, sem o apoio das quais ele pode passar, de um modo que o regime mais simples das regras primárias não podia. Porque este risco se tem materializado e tal pode acontecer de novo, a pretensão de que há outro modo pelo qual o direito deve conformar-se com a moral para além do que apresentámos como o conteúdo mínimo do Direito Natural, necessita de análise muito cuidadosa. Muitas de tais afirmações, ou não conseguem tomar claro o sentido em que a conexão entre o direito e a moral é afirmada como sendo necessária ou, submetidas a exame, revelam querer dizer algo que é simultaneamente verdadeiro e importante, mas que é muito confuso apresentar como uma conexão necessária entre o direito e a moral. Terminaremos este capítulo examinando seis formas desta pretensão.

(i) O poder e a autoridade. Diz-se frequentemente que um sistema jurídico deve basear-se num sentido de obrigação moral ou na convicção do valor moral do sistema, uma vez que não se baseia e não pode basear-se no mero poder do homem sobre o homem. Acentuamos nós próprios, nos capítulos anteriores deste livro, a inadequação das ordens baseadas em ameaças e em hábitos de obediência para a compreensão dos fundamentos de um sistema jurídico e da ideia de validade jurídica. Não somente exigem estes para a sua elucidação a noção de uma regra de reconhecimento aceite, como sustentámos detalhadamente no Capítulo VI, mas também, como vimos neste capítulo, constitui uma condição necessária da existência de poder coercivo o facto de que alguns, pelo menos, devem cooperar voluntariamente no sistema e aceitar as suas regras. Neste sentido, é verdade que o poder coercivo do direito pressupõe a sua autoridade aceite. Mas a dicotomia do «direito baseado apenas no poder» e do «direito que é aceite como moralmente vinculativo» não é exaustiva. Não só pode grande número de pessoas ser coagido por leis que não considera como moralmente vinculativas, mas nem mesmo é verdade que aqueles que aceitam voluntariamente o sistema devam considerar-se como moralmente vinculados a aceitá-lo, embora o sistema seja mais estável quando o façam. De facto, a sua lealdade ao sistema pode ser baseada em considerações muito diferentes: cálculos acerca de interesse a longo prazo; preocupação desinteressada quanto aos outros; atitude não crítica, herdada ou tradicional; ou o mero desejo de fazer como os outros fazem. Não há na verdade qualquer razão pela qual os que aceitam a autoridade do sistema não devessem examinar a sua consciência e decidir que, moralmente, não deviam aceitá-lo, muito  embora continuem a fazê-lo por várias razões.

Estes lugares comuns podem ter-se tornado obscuros pelo uso geral do mesmo vocabulário para exprimir, quer as obrigações jurídicas, quer as morais, que os homens reconhecem. Aqueles que aceitam a autoridade de um sistema  jurídico, encaram-no do ponto de vista interno e exprimem o sentido das suas exigências em afirmações internas formuladas na linguagem normativa que é comum, quer ao direito, quer à moral: «eu (tu) tenho (tens) o dever de», «eu (ele) tenho (tem) de», «eu (eles) tenho (têm) uma obrigação». Contudo, não estão por tal circunstância vinculados a um juízo moral de que é moralmente certo fazer o que o direito exige. Indubitavelmente, se nada mais se disser, há uma presunção de que aquele que falar deste modo das suas obrigações jurídicas ou das dos outros, não pensa que há qualquer razão moral ou outra contra o respectivo cumprimento. Isto, contudo, não demonstra que algo não pode ser reconhecido como juridicamente obrigatório, a não ser que seja aceite como moralmente obrigatório. A presunção que mencionámos baseia-se no facto de que será frequentemente desprovido de sentido reconhecer  ou  apontar   uma  obrigação   jurídica,   se   o  autor da afirmação tiver razões concludentes, de natureza moral  ou  outra, para  objetar  ao seu cumprimento.

(ii) A influência da moral sobre o direito. O direito de  todos os Estados modernos mostra em pontos muito numerosos a  influência não só da moral social aceite, como também de ideais morais mais vastos. Estas influências entram no direito, quer de forma abrupta e confessada, através de legislação, quer de forma silenciosa e paulatina, através do processo judicial. Em alguns sistemas, como nos Estados Unidos, os critérios últimos da validade jurídica incorporam explicitamente princípios de justiça ou valores morais substantivos; noutros sistemas, como em Inglaterra, em que não há restrições formais à competência do poder legislativo supremo, a sua legislação pode, contudo, de forma não menos escrupulosa, ser conforme à justiça ou à moral. Os outros modos por que o direito espelha a moral são plúrimos, e ainda insuficientemente estudados: as leis podem ser uma mera carapaça jurídica e exigir pelos seus termos expressos que sejam preenchidas com recurso a princípios morais; o elenco de contratos tutelados juridicamente pode ser limitado por referência a concepções de moral e de equidade; a responsabilidade  pelos ilícitos cíveis e criminais pode ser ajustada aos pontos de vista prevalecentes de responsabilidade moral. Nenhum  «positivista» poderá negar estes factos, nem que a estabilidade dos sistemas jurídicos depende em parte de tais tipos de correspondência com a moral. Se tal for o que se quer dizer com a expressão conexão necessária do direito e da moral, então a  sua  existência  deverá ser admitida.

(iii) A Interpretação. As leis exigem interpretação, se quisermos aplicá-las aos casos concretos, e uma vez removidos os mitos que obscurecem a natureza dos processos judiciais através de estudo realista, torna-se patente, como mostrámos no Capítulo VI, que a textura aberta do direito deixa um vasto campo à atividade criadora que alguns designam como legislativa. Os juízes não estão confinados, ao interpretarem, quer as leis, quer os precedentes, às alternativas de uma escolha cega e arbitrária, ou à dedução «mecânica» de regras com um sentido pré-determinado. A sua escolha é guiada muito frequentemente pela consideração de que a finalidade das regras que estão a interpretar é razoável, de tal  forma que  não se pretende com as regras criar injustiças ou ofender princípios morais assentes. Uma decisão judicial, especialmente em questões de alta importância constitucional,  envolve  frequentemente  uma  escolha  entre valores morais e não uma simples aplicação de um único princípio moral proeminente;  será  tolice  acreditar  que,  quando  o  significado  do direito  é objeto de dúvidas,  a  moral  tem  sempre  uma  resposta  clara a dar. Neste ponto, os juízes podem de novo fazer  uma  escolha  que não é, nem arbitrária, nem mecânica; e aqui mostram frequentemente virtudes judiciais características, cuja especial adequação à decisão jurídica explica  por  que  razão  alguns sentem  relutância  em  designar tal atividade judicial como «legislativa». Estas  virtudes  são  as seguintes: imparcialidade e neutralidade ao examinar as alternativas; consideração dos interesses de todos os que serão afetados; e preocupação com a colocação de um  princípio  geral  aceitável  como base racional de decisão. Sem dúvida, porque é sempre possível uma pluralidade de tais princípios, não pode ser demonstrado que  certa decisão é a única correta: mas essa pode tomar-se aceitável corria produto racional de escolha esclarecida e imparcial. Em tudo isto, temos as atividades  de  «pesar»  ou  de  «equilibrar»,  características do  esforço  para  fazer  justiça  entre  interesses  conflitantes.

Poucas pessoas negariam a importância destes elementos, que podem ser designados como «morais», para tomar aceitáveis as decisões; e a tradição pouco definida e em mutação, ou os cânones de interpretação, que regem a interpretação na maior parte dos sistemas, frequentemente incorporam-nos de forma vaga. Contudo, se estes factos forem oferecidos como prova da conexão necessária do direito e da moral, precisamos de nos recordar que os mesmos princípios têm sido respeitados quase tanto na violação, como na observância. Isto porque, desde Austin até ao presente, as notas que recordam deverem tais elementos guiar a decisão têm provindo, fundamentalmente, dos críticos que têm descoberto que a criação de direito por via judicial tem sido  frequentemente  cega  relativamente   aos  valores sociais, «automática» ou inadequadamente racional.

(iv) A critica do direito. Por vezes, a pretensão de que há uma conexão necessária entre o direito e a moral não ultrapassa a afirmação de que um bom sistema jurídico se deve conformar em certos pontos, tais como os já mencionados no último parágrafo, com as exigências da justiça e da moral. Alguns podem encarar tal como um truísmo; mas não é uma tautologia e, de facto, na crítica do direito, pode haver desacordo não só quanto aos padrões morais adequados, como também aos pontos de conformidade exigidos. Quererá a palavra moral, com a qual  o direito se deve conformar, para  ser bom, significar a  moral  aceite pelo grupo de cujo direito se trata, ainda que tal moral possa basear-se na superstição ou possa negar os seus benefícios e proteção aos escravos ou às classes subjugadas? Ou moral quererá significar padrões esclarecidos, no sentido de que se baseiam em crenças racionais no tocante a questões de facto, e aceitam que todos os seres humanos tenham direito a igual consideração e respeito?

A pretensão de que um sistema jurídico deve tratar todos os seres humanos dentro do seu âmbito de aplicação como titulares de certas proteções e liberdades fundamentais é, sem dúvida, aceite geral­ mente como uma afirmação de um ideal com relevância evidente na crítica do direito. Mesmo quando a prática se afasta desse ideal, usualmente é-lhe prestado um tributo verbal. Pode mesmo dar-se o caso de que a filosofia demonstre que uma moral que não acolha esta visão do direito de todos os homens a igual consideração, esteja implicada em qualquer contradição interna, em dogmatismo ou irracionalidade. Se for assim, a moral  esclarecida  que  reconhece estes direitos apresenta credenciais especiais como verdadeira  moral, e não é apenas uma entre muitas morais possíveis. Trata-se de pretensões que não podem ser aqui objeto de investigação, mas mesmo se forem admitidas, não podem alterar, nem devem deixar na sombra, o facto de que os sistemas jurídicos internos, com a sua estrutura característica de regras primárias e secundárias, subsistiram durante longos períodos, embora tratassem com desprezo estes princípios de justiça. Consideraremos mais adiante o que se ganha, se é que algo se ganha,  com a  negação de que  as  regras  iníquas  são direito.

(v) Princípios de legalidade e justiça. Pode dizer-se que a distinção entre um bom sistema jurídico, que se conforma em certos  pontos com a moral e a justiça, e um sistema jurídico que o não faz é falaciosa, isto porque é necessariamente realizado um mínimo de justiça   sempre  que  o  comportamento   humano  é  controlado  por

regras gerais anunciadas  publicamente  e  aplicadas  por  via  judicial. Na verdade, já referimos  ao analisar a ideia  de  justiça,  que  a sua forma  mais  simples  (a  justiça  na  aplicação  do  direito)  não consiste noutra coisa senão na tomada a sério da noção de que aquilo que deve aplicar-se a uma multiplicidade de pessoas diferentes é a  mesma regra geral, sem desvios causados por preconceitos, interesses ou caprichos. Esta imparcialidade é aquilo que os padrões processuais, conhecidos  dos  juristas  ingleses e americanos  como  princípios de «Justiça   Natural»,  pretendem  assegurar.  Daí  que,  embora  as leis mais odiosas possam ser aplicadas de forma justa, tenhamos,  na noção singela de aplicação de uma regra geral de direito, o germe, pelo menos,  da justiça.

Surgem aspectos ulteriores desta forma mínima de justiça que bem poderá ser designada como «natural», se estudarmos aquilo que está de facto implicado em qualquer método  de  controlo  social – regras de jogos e também direito – que consiste primariamente em padrões gerais de conduta comunicados a categorias de pessoas, das quais se espera então a compreensão e a conformação com as regras, sem ulterior diretiva oficial. Para que o controlo social deste tipo funcione, as regras devem satisfazer certas condições: devem ser inteligíveis e ao alcance da capacidade de obediência da maior parte das pessoas e, em geral, não devem ser retroativas, embora excepcionalmente possam ser. Isto significa que, na maior parte dos casos, aqueles que vierem a ser eventualmente punidos pela violação das regras, terão tido a capacidade e a oportunidade de obedecer. Certamente que estes aspectos de controle através das regras estão estreitamente relacionados com as exigências de justiça que  os juristas designam como princípios de legalidade. Na verdade, um crítico do positivismo viu nestes aspectos de controlo através de regras algo que se traduzia  numa conexão necessária entre o direito e a moral, e sugeriu que se lhes chamasse «a moral interna do direito». Mais uma vez, se isto for aquilo que a conexão necessária entre o direito e a moral significa, podemos aceitá-lo. É infelizmente compatível  com  iniquidades  muito sérias.

(vi) Validade jurídica e resistência ao direito. Por muito descuidadamente que possam ter formulado a sua concepção geral, poucos teorizadores do direito classificados como positivistas se teriam preocupado com a negação das formas de conexão entre o direito e a moral discutidas sob as últimas cinco epígrafes. Qual foi então a preocupação dos grandes gritos de guerra do positivismo jurídico: «a existência  do direito é uma coisa; o seu  mérito ou demérito, outra»: «O direito de um Estado não é um ideal, mas algo que  realmente  existe… não é o que devia ser, mas o que é»; «as normas jurídicas podem  ter  qualquer  espécie  de  conteúdo»?

O que estes pensadores estavam essencialmente preocupados em promover era  a clareza e a  honestidade  na formulação das  questões teóricas e morais suscitadas pela existência de  leis concretas  que eram moralmente iníquas mas foram legisladas de forma devida, claras no seu sentido, e satisfizeram todos os critérios  reconhecidos de validade de um sistema. A sua visão foi a de que, ao pensar em tais leis, quer o jurista teórico, quer os infelizes funcionários ou o cidadão privado que foram chamados a aplicá-las ou a obedecer-lhes, só podiam  ser  confundidos   por  um  convite  de  recusa  do  título de «direito» ou de «validade» relativamente a elas. Pensaram que, para encarar tais problemas, existiam recursos  mais simples e cândidos, que iluminariam muito melhor todas as considerações intelectuais e morais relevantes: devíamos dizer «isto é direito; mas é demasiado iníquo  para  poder ser aplicado ou obedecido».

O ponto de vista oposto é um que aparece como atraente quando, após uma revolução ou alterações profundas, os tribunais de um sistema têm de considerar a sua atitude para com as iniquidades morais cometidas em forma jurídica por cidadãos privados ou funcionários durante o regime anterior. O castigo deles pode ser visto como socialmente desejável e, contudo, para o conseguir através de legislação francamente retroativa, tornando criminoso o que era permitido ou mesmo exigido pelo direito do regime anterior, pode ser difícil, em si moralmente odioso ou, talvez, impossível. Nestas circunstâncias pode parecer natural explorar as implicações morais latentes no vocabulário do direito e em especial em palavras como ius, recht, diritto, droit, as quais estão carregadas com o peso da teoria do Direito Natural. Pode parecer então tentador dizer que as leis que se associaram à iniquidade ou a permitiram não deviam ser reconhecidas como válidas, ou não deviam ter a qualificação de direito, mesmo se o sistema em que foram promulgadas não reconhecia qualquer restrição à competência legislativa do seu poder legislativo. Foi desta forma que os argumentos de Direito Natural foram ressuscitados na Alemanha, depois da última guerra, em resposta aos problemas sociais agudos deixados pelas iniquidades do regime nazi e pela sua derrota. Deveriam ser punidos os informa­ dores que, com fins egoístas, conduziram à prisão outras pessoas acusadas de delitos contra leis monstruosas  editadas  durante  o regime nazi? Seria possível condená-los nos tribunais da Alemanha do pós-guerra, com o fundamento de que tais leis violavam o Direito por violação de tais leis era de facto ilegal, e o ato de provocar tal prisão era em si próprio um delito? Por simples que a questão pareça entre os que aceitariam e os que repudiariam o ponto de vista de que as regras moralmente iníquas não podem ser direito, os contendores parecem  frequentemente ser muito pouco claros quanto à sua natureza geral. É verdade que estamos aqui confrontados com modos alternativos de formular uma decisão moral de não aplicar, não obedecer a ou não permitir que outros aleguem em sua defesa regras moralmente iníquas: contudo a questão é mal  apresentada como sendo uma questão de palavras. Nenhum dos lados da contenda ficaria satisfeito se se lhes dissesse: «Sim: têm razão, o modo correto de colocar tal tipo de questão em inglês (ou em alemão) é dizer o que disseram». Por isso, embora o positivista pudesse apontar para o peso do uso inglês, que mostra não haver contradição na afirmação de que uma regra de direito é demasiado iníquia para a ela se obedecer e que se não segue da proposição de que uma regra é demasiado iníqua para se lhe obedecer que não seja uma regra de direito válida, os seus oponentes não encarariam  de forma  alguma tal  como resolvendo o caso.

É evidente que não podemos tentar lidar adequadamente com esta questão, se a virmos como uma questão respeitante aos detalhes da correção do uso linguístico. O que está realmente em jogo é o mérito comparado de um conceito ou modo de classificar regras mais amplo e de um mais restrito, os quais pertencem a um sistema de regras eficaz de um modo geral na vida social. A fazermos uma escolha racional entre estes conceitos, tem de ser porque um é superior ao outro na maneira por que ele auxiliará as nossas pesquisas teóricas, ou fará avançar e clarificará as nossas deliberações morais,  ou  contemplará ambas.

O mais amplo destes dois conceitos rivais de direito inclui o mais restrito. Se adoptarmos o conceito mais amplo, este levar-nos-á nas pesquisas  teóricas  a  agrupar  e  a  considerar  conjuntamente como «direito» todas as regras que são válidas de harmonia com os testes formais de um sistema de regras primárias e secundárias, mesmo se algumas delas ofenderem a própria moral de uma sociedade ou aquilo que podemos sustentar ser uma moral esclarecida ou verdadeira.  Se  adoptarmos  o  conceito    mais  restrito,  excluiremos  do «direito» tais regras moralmente ofensivas. Parece claro que nada há a ganhar no estudo teórico ou científico do direito, enquanto fenômeno  social,  com  a  adopção  do conceito  mais  restrito: levar-nos-ia a excluir certas  regras,  mesmo que elas apresentassem  todas as outras características complexas do direito. Seguramente, nada, a não ser confusão, resultaria duma proposta de deixar o estudo de tais regras a outra disciplina, e certamente nem a  história,  nem outra forma de estudo jurídico consideraram vantajoso fazê-lo. Se adotarmos o conceito mais amplo de direito, podemos incluir nele o estudo de quaisquer aspectos específicos que as leis moralmente iníquas tenham, bem como a reação da sociedade contra estas. Por isso, o uso do conceito mais restrito deve inevitavelmente fraccionar, de uma forma geradora de confusão, o nosso esforço de compreensão, não só do desenvolvimento, como das potencialidades do método específico de controlo social que se vê num sistema de regras primárias e secundárias. O estudo do seu uso envolve o estudo do seu abuso.

Que dizer então dos méritos práticos do conceito mais restrito de direito, no tocante à deliberação moral? Em que medida, quando se está confrontado com pedidos moralmente iníquos, é melhor pensar «isto não é direito em nenhum sentido», em vez de «isto é direito demasiado iníquo para se lhe obedecer ou para o aplicar»? Tornaria isto os homens mais esclarecidos ou prontos para desobedecer, quando a moral o exige? Conduziria isto a modos mais eficazes de resolver problemas, tais como os que o regime nazi deixou atrás de si? Indubitavelmente, as ideias têm a sua influência; mas dificilmente parece que um esforço para treinar e educar homens no uso de um conceito mais restrito de validade jurídica, em que não haja lugar para leis válidas mas moralmente iníquas, seja susceptível de conduzir a um esforço da resistência ao mal, perante ameaças do poder organizado, ou a um entendimento mais perfeito do que está moralmente em jogo, quando se pede obediência. Enquanto os seres humanos puderem conseguir a suficiente cooperação de alguns, de forma a permitir-lhes dominar os outros, utilizarão as formas do direito como um dos seus instrumentos. Os homens perversos editarão regras perversas que outros obrigarão a cumprir. O que seguramente é mais necessário para dar aos homens uma visão clara, quando enfrentarem o abuso oficial do poder, é que preservem o sentido de que a certificação de algo como juridicamente válido não é ter, as suas exigências devem no fim ser sujeitas a exame moral. Este sentido, de que há algo fora do sistema oficial, por referência ao qual o indivíduo deve, em última análise, resolver os seus problemas de obediência, é seguramente mais susceptível de manter-se vivo entre aqueles que estão acostumados a pensar que as  regras  de direito podem ser iníquas, do que entre os que pensam que nenhuma iniquidade  pode  ter  em  qualquer  parte o estatuto de direito.

Mas talvez  uma  razão  mais forte  para  preferir o conceito mais amplo de direito, que nos habilitará a pensar e a dizer:« isto é direito, mas é iníquo», reside em que negar o reconhecimento jurídico às regras iníquas poderia simplificar de forma excessiva e grosseira a variedade de questões morais a que aquelas dão origem. Os autores mais antigos que, como Bentham e Austin, insistiram na distinção entre o que é o direito e o que devia ser, fizeram-no, em parte, porque pensaram que, a menos que os homens mantivessem estes aspectos separados, poderiam, sem calcular os custos para a sociedade, fazer julgamentos apressados relativos às leis que seriam inválidas e a que se não deveria obedecer. Mas além deste perigo de anarquia, que bem podem ter estimado de forma exagerada, há outra forma de simplificação excessiva. Se nós estreitarmos o nosso ponto de vista e pensarmos só na pessoa que é chamada a obedecer às regras más, poderemos encarar tal como uma questão de indiferença,  respeitante a saber se ela pensa ou não que está confrontada com uma  regra válida de «direito», desde que ela veja a sua iniquidade moral e faça o que a moral exige. Mas além da questão moral de obediência (devo fazer esta coisa má?), há a questão da submissão posta por Sócrates: devo sujeitar-me ao castigo pela desobediência, ou fugir? Há também a   questão   que   foi  posta   aos   tribunais   alemães do  pós-guerra, «devemos punir aqueles que fizeram coisas más quando eram permitidas por regras más, então em vigor?». Estas questões suscitam problemas muito diferentes de moral e justiça, que precisamos de considerar independentemente uns dos outros: não podem ser resolvidos por uma recusa, feita de uma vez para sempre, de reconhecer as leis más como válidas para todo e qualquer fim. Trata-se de uma atitude demasiado brutal para com complexas e delicadas questões morais.

Um conceito de direito, que permita a distinção entre a invalidade do direito e a sua imoralidade, habilita-nos a ver a complexidade e a variedade destas questões separadas, enquanto que um conceito restrito de direito que negue  validade  jurídica às regras iníquas pode concludente  quanto à questão da obediência  e que, por maior que seja a aura de majestade ou de autoridade que o sistema oficial possa cegar-nos para elas. Pode admitir-se que os informadores alemães, os quais com fins egoístas levaram outros a ser punidos no domínio de leis monstruosas, fizeram o que a moral proibia; contudo, a  moral pode também exigir que o Estado puna só os que, ao fazerem o mal, tenham feito o que o Estado nesse tempo proibia. Isto é o princípio de nulla poena sine lege. Se tiverem de introduzir-se limitações a este princípio para evitar algo considerado como um mal maior do que o seu sacrifício, é vital que as questões em jogo sejam claramente identificadas. Um caso de punição retroativa não deve fazer-se aparecer como um caso vulgar de punição por um ato ilegal ao  tempo da sua prática. Pelo menos, pode ser reivindicado a favor da doutrina positivista simples  que  as  regras  moralmente  iníquas podem ainda ser direito, e que tal não mascara a escolha entre males que, em circunstâncias extremas,  pode  ter  de ser feita.

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H.L.A. Hart (Steve Pyke/Getty Images)

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Edição: Fundação Calouste Goulbenkian, 2001.

Publicado originalmente n’O Grande Teatro do Mundo.

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