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Extratos de ‘O que é a Metafísica?’, aula inaugural de Martin Heidegger na Universidade de Freiburg.
Tradução de Marcelo Consentino e interpretação de Carlyle Oliveira Porto.
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O relacionamento com o mundo que prevalece em cada ciência enquanto ciência faz com que as ciências busquem as coisas e façam delas, daquilo que são e do modo como são, um objeto de investigação, definição e fundamentação. O ideal das ciências é nos auxiliar a nos aproximarmos da essência de todas as coisas.
A relação particular de cada ciência com as coisas é sustentada e guiada por uma orientação livremente escolhida por parte do ser humano. Nossas atividades pré- e extracientíficas também são maneiras de nos relacionarmos com as coisas. A ciência, porém, é única na medida em que dá ao objeto em questão, e só a ele, uma primazia fundamental, completa e explícita. Este foco no objeto característico da investigação, da definição e da fundamentação científica, implica uma submissão singular e específica à realidade, a fim de que ela se mostre tal qual ela é. A pesquisa e a teoria científica existem a serviço dos seus objetos, e esta é a razão pela qual as ciências são capazes de assumir na existência humana em geral um papel próprio, ainda que limitado, de liderança.
O modo de entender integralmente a peculiar relação da ciência para com o mundo, assim como a orientação humana que a guia, é compreender o que acontece durante esta orientação e esta relação com o mundo. O ser humano — um tipo de ser entre outros seres — “busca a ciência”. O que acontece nesta “busca” é nada menos que a irrupção do ser humano entre as coisas, com a consequência de que em tal irrupção as coisas mesmas se revelam, irrompem tais quais são e como são. A seu próprio modo, esta irrupção humana na qual as coisas irrompem as ajuda a se tornarem, pela primeira vez, aquilo que são.
Tomada em sua unidade radical, esta trindade composta pela relação com o mundo, pela orientação e pela irrupção das coisas, traz à nossa existência científica a simplicidade e o rigor esclarecedores do ser humano. Uma vez que compreendemos este ser humano científico esclarecido, devemos dizer: nossa relação com o mundo se relaciona somente com as coisas que existem, e nada mais; toda orientação é guiada pelas coisas, e por nada além delas; na irrupção do humano, nossas pesquisas confrontam as coisas, e mais nada.
O curioso é que no momento mesmo em que os cientistas demarcam o seu território, eles fazem referência a algo além. Eles investigam somente as coisas, e nada mais; somente coisas que existem, e nada além; somente coisas que são, e mais nada. Que dizer deste “nada”? Será por mero acaso que falamos tão naturalmente nestes termos? Seria só força de expressão e nada mais?
Por que nos preocuparmos com este Nada? A ciência o rejeita, o dispensa como “simplesmente nada”. Não obstante, ao abandonar o Nada deste modo, não estaremos “concedendo” algo ao Nada? Por outro lado, como podemos falar em “conceder” quando de fato não concedemos nada? Talvez todo este vai-e-vem seja um mero jogo de palavras. Este é o momento em que a ciência deve reafirmar resolutamente sua seriedade e insistir que só lida com coisas. A ciência vê o Nada como nada, como horror e fantasmagoria.
Se a ciência está correta, então uma coisa é certa e segura: a ciência não quer saber nada sobre o Nada. Em última instância, esta é a concepção rigorosamente cientifica do Nada. Nós o conhecemos somente porque não queremos saber nada sobre ele.
A ciência não quer saber nada sobre o Nada. Ainda assim, é igualmente certo que quando a ciência tenta expressar a sua própria essência, ela apela ao nada em seu auxílio. Ela afirma aquilo que rejeita. Que tipo de ambivalência estará se revelando aqui?
Ao refletir sobre a nossa existência concreta — uma existência determinada pela ciência — nos encontramos a nós mesmos emaranhados numa controvérsia na qual uma questão já irrompeu. Esta questão só precisa ser diretamente formulada: que acontece com o Nada?
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Haverá em nossa existência algum estado de espírito que nos leve a confrontar o Nada face a face?
Isto pode, sim, acontecer e acontece, ainda que por instantes raros e fugidios, no sentimento de fundo da angústia. Por “angústia”, não me refiro à experiência bastante corriqueira da apreensão, em última instância redutível ao medo, que nos acomete tão facilmente. A angústia é fundamentalmente diferente do medo. Aquilo diante de que sentimos medo é sempre alguma coisa específica que nos ameaça de um modo específico. Além disso, este medo diante de algo específico é sempre medo por algo específico. Uma vez que o medo diante de e o medo por são determinados por objetos específicos, sempre que nos atemorizamos estamos delimitados e envolvidos por este algo que nos afeta. Tentando nos salvar a nós mesmos desta coisa que nos afeta, nos tornamos inseguros na nossa relação com todas as outras coisas e, como se diz, “perdemos completamente a cabeça” em meio a elas.
A angústia jamais permite tal colapso. Muito pelo contrário, nela impera uma estranha quietude. Certo, a angústia é sempre angústia diante de…, mas não diante disto ou daquilo. E a angústia diante de… é sempre angústia por…, mas não por isto ou por aquilo. Aquilo que nos angustia e aquilo pelo que nos angustiamos é algo indefinido — não devido a uma nossa suposta incapacidade de defini-lo, mas porque é simplesmente impossível defini-lo. Isto pode ser ilustrado por uma experiência bastante familiar.
Na angústia, costumamos dizer que “algo estranho acontece”. Mas o que exatamente é estranho e quem sente tal estranheza? Somos incapazes de dizer o que provoca este insólito sentimento. Ele simplesmente acontece. Todas as coisas e nós com elas afundamos numa espécie de fugacidade. Não, contudo, no sentido de uma mera supressão, mas antes, ao nos abandonarem em sua fuga, as coisas se voltam contra nós. Este desamparo geral da realidade que nos obceca na angústia é precisamente aquilo que nos pressiona e oprime. Não resta nada em que se amparar ou se agarrar. Em tal abandono, só o que resta e nos invade é o puro “nada”.
A angústia revela o Nada.
Na angústia nos vemos “suspensos”. Dito mais claramente: a angústia nos suspende porque ela provoca o desamparo da realidade como um todo, de tal forma que nós, nós que existimos concretamente, também nos abandonamos a nós mesmos em meio às coisas. Assim, no limite, não é a “você” ou a “mim” que a angústia causa estranheza, mas algo estranho simplesmente acontece. No suspense deste abandono, em meio ao qual não podemos nos amparar em nada, só o que resta é a nossa pura existência.
A angústia sufoca as nossas palavras. Quando a realidade como um todo nos desampara, o Nada nos encurrala, e, na sua presença, toda enunciação do “ser” — tudo aquilo ao qual aplicamos o termo “é” — se silencia. Na opressão da angústia tentamos insistentemente quebrar o vazio do silêncio falando desmesuradamente, mas isso só prova a presença do Nada. Que a angústia revela o Nada é algo que nós mesmos comprovamos em primeira-mão tão logo ela se desmancha. No olhar lúcido nutrido por uma lembrança ainda fresca, somos forçados a dizer que aquilo diante de que e pelo que nos angustiávamos era, no fim das contas… nada. E é exatamente isto! O próprio Nada, enquanto tal, estava lá.
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Somente porque o Nada nos é revelado no fundo de nossa existência, podemos ser assaltados pela total estranheza da realidade. Somente quando esta estranheza nos oprime, despertamos e nos abrimos à estupefação. Somente em razão desta estupefação — ou seja, da manifestação do Nada —, irrompe a questão do “por que”. Somente pelo fato de este “por que” ser possível enquanto tal, podemos questionar os fundamentos das coisas e fundamentar nossos questionamentos. Somente porque somos capazes de questionar e fundamentar, a nossa existência pode ser orientada à investigação científica.
Assim, a questão sobre o Nada nos põe a nós mesmos, os questionadores, em questão. É uma questão metafísica.
Só podemos nos relacionar com tudo aquilo que existe se nos afastamos abandonando-nos a nós mesmos no Nada. Superar a realidade, ir acima, além dela, é algo que se dá na essência mesma do ser humano. Mas este ir além é a própria Metafísica. Por isto a Metafísica pertence à “natureza do ser humano”. Ela não é nem uma disciplina da filosofia acadêmica, nem um campo de ideias extravagantes. A Metafísica é o acontecimento mais fundamental na existência humana. De fato, ela é a própria existência humana.
Pelo fato de a verdade da Metafísica residir neste fundo sem fim, sua vizinha mais próxima é a perpétua possibilidade do mais profundo erro. Por esta razão, nenhum rigor de nenhuma ciência, por mais forte que seja, jamais igualará a gravidade da Metafísica. A filosofia jamais pode ser mensurada pelo padrão do ideal científico.
Se realmente participamos desta investigação sobre a questão do nada, então o que fizemos não foi trazer a metafísica diante de nós a partir de fora. Tampouco nos “transportamos” pura e simplesmente para dentro dela. Não podemos nos transportar para dentro da Metafísica porque pelo fato mesmo de existirmos já estamos lá. Pois, como dizia Sócrates no Fédro de Platão, “o espírito humano vive na filosofia”. Enquanto o ser humano existir, o filosofar de um modo ou de outro acontecerá.
A filosofia — tal como a entendemos — nada mais é que o avançar da Metafísica, através do qual a filosofia encontra a si mesma e as suas tarefas explícitas. A filosofia só começa quando nossa própria existência assume um compromisso pessoal com as potencialidades fundamentais da existência humana em sua totalidade. Para que isto ocorra, eis aqui, em conclusão, os três fatores decisivos: antes de mais nada, que abramos espaço aos seres em seu próprio contexto; depois, que nos abandonemos a nós mesmos em meio ao Nada, ou seja, que nos libertemos de todos os ídolos que amparam a cada um de nós e entre os quais costumamos nos perder; e, finalmente, que, suspensos no Nada, deixemos livre curso às oscilações deste suspense, a fim de que elas nos reencaminhem incessantemente à questão fundamental da metafísica, aquela que o próprio Nada nos extorque: Por que, no fim das contas, existe alguma coisa e não simplesmente Nada?
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Publicado originalmente n’O Grande Teatro do Mundo.
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Tradução: Marcelo Consentino
Original: Was ist Metaphysik
Interpretação: Carlyle Oliveira Porto
Produção: LuppiArts Estúdio
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