Em mais uma peça para a série “Café Filosófico”, o Estado da Arte traz a ode à infância do poeta inglês William Wordsworth (1770-1850) em tradução de Matheus Mavericco para a revista Escamandro.
Reverberando algumas de suas preocupações fundamentais com a educação e a formação, mas também com a salvaguarda do mundo infantil, o Café Filosófico promoveu em junho deste ano o Ciclo “O Tempo da Infância”, com a curadoria de Julieta Jerusalinsky e as participações de Ilana Katz, Antônio Prata e Maria Rita Kehl. Para complementar essas explorações, o Estado da Arte oferece o testemunho de Wordsworth.
Já na primeira estrofe, a dialética lírica do poeta oscila entre, por um lado, uma experiência singular e gloriosa, porém reclusa sob as brumas da infância (“Houve um tempo em que a relva, a fonte, o rio, a mata/ E o horizonte se vestiam/ De uma luz grata,/ — Visto que assim me pareciam —,/ E da opulência que nos sonhos é inata.”) e, por outro lado, o mundo real, sólido, porém descolorido da vida adulta (“Hoje está sendo tal como foi outrora;— / Seja o que for, eu,/ Na luz ou breu,/ Eu não verei jamais o que se foi embora”). Em um certo ponto, essa tensão é intensificada ao ponto de uma aguda intuição mística
…arrastando nuvens de glória, viemos
De Deus — nele vivemos —:
É o Céu que a nós circunda e a nossa meninice!
Intuição que é instantaneamente diluída na consciência adulta dos limites do mundo, da nossa decadência biológica e nossa mesquinhez, quando não sordidez, habitual:
As sombras da prisão começam a cobrir
O Menino que cresce;
Mas ele vê a luz, sabe aonde ela vai ir
E sabe que ela o acresce;
A Juventude, em sacerdócio à Natureza,
Viaja ao Leste numa empresa
Guiada pela
Visão mais bela;
E ao largo o Homem vê que sua vida acaba
E que na luz do hábito ela enfim desaba.
Na vida social, essa tensão entre a vida adulta (vivida) e a infantil (lembrada), se mal solucionada, ou melhor, se falsamente solucionada, com a ênfase em um ou outro pólo, pode desencadear duas distorções antagônicas, porém irmãs: de um lado a idealização da infância, de outro o cinismo em relação à infância, como se todas as experiências reais da criança em relação ao bem, a verdade e sobretudo à beleza – ou melhor, do bem e da verdade como expressões da beleza – fossem reduzidas, na vida adulta, ao sonho e à ilusão.
Como se pode verificar ao longo das palestras do Ciclo “O Tempo da Infância” nosso tempo tem a sua própria maneira de viver – e eventualmente distorcer – a relação entre vida adulta e infantil. Antônio Prata, por exemplo, retoma a necessidade de se cultivar não exatamente uma “nostalgia”, quer dizer, um saudosismo resignado da infância, mas uma “memória” ativa, uma rememoração contínua, que permita à vida adulta cultivar frutos alimentados diretamente pelas raízes da infância:
A infância deixa marcas indeléveis a partir das quais cada um se torna quem é. Apesar de que muitas delas caiam na amnésia infantil, continuam vividas em nós. Fazer o exercício de recordar ajuda-nos a elaborar. Transmitir o vivido como uma experiência não idealizada à geração seguinte é decisivo para não condená-la a repetir.
Outro tema perene no drama das gerações humanas, explorado por Ilana Katz em sua palestra “Infância e Política”, é a inserção da criança na vida da Sociedade. Se as crianças participam da sociedade, então, em sentido amplo, é possível dizer que desde os estertores das suas consciências, elas já gozam de uma vida política – ainda que, num primeiro momento, essa vida seja indissociável da vida familiar. Mas se justamente a maturação que levará do menino ao homem é o processo de distinção entre a vida do indivíduo e a do cidadão, entre a vida familiar de um lado e a vida profissional e política de outro, como fazer para que, no momento em que essas dimensões não forem mais fusionadas, tal como são na vida infantil, mas sim distintas, uma delas não anule ou absorva a outra? como equilibrar essas instâncias diversas, dado que todas são essenciais a uma existência humana integral?
Obviamente, esse processo de nascimento do adulto de dentro da criança, como a árvore que nasce de dentro da semente, não poderia se dar sem as dores do crescimento. E nossa época, como todas, tem a sua própria panaceia para aliviar essas dores, eventualmente ao ponto da alienação e da intoxicação. Na Era da realidade virtual, essa alienação pode chegar a uma verdadeira cisão entre o universo da criança e o universo no qual ela está inserida. Como diz Jerusalinsky: “A virtualidade traz o ganho da dissociação do corpo. Mas como considerar esta dissociação em um tempo em que ainda o bebê não produziu tal apropriação?”
Outra singularidade do nosso tempo são as novas configurações familiares englobadas pelo direito e legitimadas pela nossa moral pública. Embora elas não alterem, ao menos não na raíz, o “drama” do desenvolvimento infantil entre a “heteronomia”, que está na base, e a “autonomia”, que está no fim, elas acrescentam, sim, um grau a mais de complexidade, inaudita para alguém dos tempos de Wordsworth. Assim Maria Rita Kehl articula o problema:
As configurações familiares passam por transformações ao longo de cada época, exigindo modificações de sua inscrição jurídica. As famílias tentaculares da atualidade produzem novas questões às crianças que devem ser escutados considerando, ao mesmo tempo, que o tradicionalismo parental nunca foi garantia de saúde psíquica.
Mas qual será, se houver, esta garantia? Talvez não haja – afinal, o que, a rigor, é “garantido” na vida humana? Mas nem por isso podemos deixar de perseguir a nossa saúde psíquica. Pelo contrário. Justamente porque a nossa vida se encontra suspensa no presente entre o passado e o futuro, sem garantias de sucesso, é preciso a todo tempo, numa espécie de higiene da memória, desobstruir os canais que conectam a nossa existência adulta às nossas experiências infantis, isto é, garantir, pelo nosso esforço diário, que a seiva recolhida nas raizes da infância flua aos frutos da maturidade. Se isso impõe uma disciplina, própria da vida adulta, aliada a uma certa disponibilidade e frescor próprios da vida infantil para com os tesouros escondidos em nossa memória, que por sua vez podem passar anos a fio soterrados e ignorados, na poesia de Wordsworth podemos ao menos vislumbrar os frutos desse esforço na forma pura que só a arte é capaz de oferecer.
Confira:
Prenúncios da imortalidade reclhidos da mais tenra infância
Veja também, no Café Filosófico – CPFL: