2008: o ano que não acabou

Quando acabará? Quais foram as causas e os efeitos da Grande Quebra Financeira? Que lições podemos tirar para as novas crises cujos alertas já começaram a soar?

por João Ricardo Costa Filho

Podemos lembrar o dia 15 de setembro por diversos motivos. Seja pela abertura da primeira escola não-aristocrática na Itália de 1616 ou pela independência de países da América Central do império espanhol em 1821; temos também a chegada de Charles Darwin a Galápagos em 1835 e a descoberta da penicilina, em 1928, por Alexander Fleming. Podemos até lembrar que, nesse dia, no ano de 1998, o site google.com foi registrado[i].  Mas, para um mundo que há uma década vem sofrendo os efeitos da maior crise financeira desde a Grande Depressão, o dia 15 de setembro traz uma lembrança bem mais amarga: a quebra, em 2008, do quarto maior banco de investimento dos EUA, o Lehman Brothers e, com ela, desdobramentos que machucariam a economia mundial e deixariam algumas feridas que ainda teimam em não cicatrizar.

Embora Barry Eichengreen, em 2002, já tenha nos mostrado que o problema das crises financeiras vem crescendo após o fim do período conhecido na arquitetura financeira internacional como Bretton Woods, a gestação da crise de 2008 (ou Grande Crise Financeira como o episódio também tem sido chamado por alguns acadêmicos) ocorre em resposta às mudanças nas finanças domésticas e internacionais no fim dos anos 1980.

Após períodos complicados para os gestores de política econômica nos EUA, com a alta da inflação na década de 1970 (em função dos dois choques no Petróleo e das políticas expansionistas) e o período de forte recessão na chamada era Volcker (em homenagem ao presidente do Federal Reserve, o banco central americano, pela redução no crescimento da base monetária e consequente recessão no país), o mundo desenvolvido entrou no período chamado de “Grande Moderação”, para utilizar a célebre expressão cunhada por Stock e Watson em artigo publicado em 2002[ii]. Basicamente, as taxas de crescimento e inflação tornaram-se menos voláteis, dando a impressão a Robert Lucas, laureado com o prêmio Nobel em economia, de que a macroeconomia deveria se dedicar ao estudo de fenômenos como o crescimento de longo prazo, pois os ciclos econômicos estariam domados.

Junto a essa calmaria macroeconômica nos países desenvolvidos (porque nos países emergentes, como podemos bem lembrar, a década de 1990 foi qualquer coisa menos calma) veio um movimento de desregulamentação financeira, capitaneado por Allan Greenspan, sucessor de Volcker no Federal Reserve por 18 anos, que acreditava que os agentes do mercado financeiro poderiam se autorregular. Um dos símbolos da remoção das amarras regulatórias foi a revogação do Glass-Steagal Act, no governo Clinton, que, de maneira resumida, separava as operações com recursos próprios daquelas feitas com os recursos dos clientes.

Removidos certos entraves regulatórios e diante de um aparente “céu de brigadeiro”, especialmente após a recuperação do estouro da bolha das empresas de tecnologia na bolsa de valores dos EUA em 2000, os bancos e outras corporações financeiras iniciaram a busca por retornos em empreitadas mais arriscadas, já que, seja para acomodar a queda no preço das ações, seja pelo excesso de poupança dos países da Ásia (especialmente a China), as taxas de juros dos títulos públicos norte-americanos estavam muito baixas.

O mercado de crédito imobiliário nos EUA apresentava (ou ainda apresenta?) um problema de incompatibilidade de incentivos que ajuda a explicar a existência dos NINJAS (não os legendários mestres das artes marciais, mas um acrônimo em inglês cujo significado se explicará adiante). A venda dos financiamentos imobiliários era feita em boa parte por empresas terceiras contratadas por bancos, mas a responsabilidade da cobrança e o ônus da inadimplência não ficavam com as mesmas. Mesmo quando era realizada por funcionários da instituição bancária, as metas dos gestores eram de curtíssimo prazo. Portanto, o que importava era fechar o contrato. Se o cliente iria pagar, era problema do banco, lá no futuro. Surgiram, portanto, incentivos para certa displicência (e fraude) na análise de crédito. Alguns agentes que não possuíam renda, nem emprego, nem patrimônio (em inglês No Income, No Job or Assets, os ninjas!), mas tiveram crédito aprovado. Por quê?

Com o movimento de queda nas taxas de juros, aumento do volume de crédito e consequente crescimento da demanda por imóveis (resultando numa escalada de preços dos mesmos), se um cliente não conseguiria pagar uma parcela, ao ir ao banco renegociar a sua dívida ele encontrava condições muito melhores do que no momento em que contraiu o empréstimo. Em alguns casos, chegava até a ir ao banco inadimplente e voltar com dinheiro no bolso!

Quando vieram os avisos, por exemplo, por parte de Robert Shiller de que os preços dos imóveis haviam descolado dos fundamentos, ou de Raghuram Rajan de que os agentes estavam excessivamente alavancados, muitos especialistas foram buscar razões para justificar a solidez do sistema financeiro e motivos por trás dos movimentos dos preços dos ativos. Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, analisando oito séculos de crises financeiras, nos lembram que esse movimento de acreditar que “desta vez é diferente”, que desta vez há justificativa para o que está acontecendo, é recorrente e ajuda a explicar por que, como diria Charles Kindleberger, só reconhecemos uma crise financeira depois que ela aconteceu.

Desta vez não foi diferente.

Não bastasse a frágil dinâmica do mercado imobiliário dos norte-americanos, o mercado financeiro o impulsionou além do limite, não apenas com ferramentas tradicionais de concessão de crédito, mas também pelo aparente espaço criado através de complexos instrumentos financeiros conhecidos como derivativos. Ao invés de esperar o pagamento, um banco poderia, por exemplo, “colocar em uma sacola” diversos empréstimos diferentes, e vender essa sacola, num processo conhecido como securitização (transformando, assim, dívida em título). E não parou por aí. Por que não colocar diversas sacolas em uma mala e vendê-la? E por aí vai.

Os compradores desses novos produtos não eram só bancos, mas fundos de investimentos, seguradoras e outros agentes, tanto nos EUA, quanto em outros países, fundamentalmente da Europa (a dificuldade em acessar esse tipo de produto ajuda a entender porque países como o Brasil foram pouco afetados – apenas dois trimestres de contração e crescimento forte no ano seguinte).

Quando os juros pararam de cair e os preços pararam de subir, renegociar ficou mais difícil, a bicicleta do crédito parou de ser pedalada e veio o… tombo.

Em livro recente, Gennaioli e Shleifer atribuem a qualificação de “crise” à mudança da percepção dos agentes do mercado financeiro quanto aos problemas que começaram a se manifestar em 2006, cujas entidades vinculadas a hipotecas necessitaram de recursos públicos para não quebrarem. Embora Albanesi, De Giorgi e Nosal tenham mostrado em 2017 que o gatilho da crise não foram os empréstimos de baixa qualidade conhecidos como subprime, a aparente ideia da redução do risco – através da diversificação – que a securitização dos empréstimos queria oferecer esbarrou num entrave caprichosamente esquecido: diversos empréstimos colocados numa mesma “sacola” vinham de imóveis nos mesmos bairros. E já que o crédito ficou menos pujante e, como sabemos, no curto prazo, grande parte dos movimentos do PIB são provenientes dos investimentos, especialmente em imóveis, o que acontecerá se um bairro, uma cidade, uma indústria específica começar a ir mal em função da desaceleração da economia? Nesse caso, não adiantará nada ter colocado os ovos em cestas diferentes.

A sensação de proteção vinha também pelo “selo” de alta qualidade fornecido pelas agências de classificação de risco, cujo trabalho era avaliar os títulos criados pelo processo de securitização e verificar o risco inerente. Muitos títulos foram erroneamente classificados como AAA (triple A, indicando baixíssimo risco), e, quando a inadimplência começou, aqueles poucos que anteviram que esse processo era insustentável haviam adquirido outros produtos, os Credit Default Swaps (CDS), que funcionavam como se uma pessoa fizesse um seguro para o carro de outra. Só que, após bater o carro (ficar com títulos atrelado a empréstimos inadimplentes), você ainda tinha que pagar para aquele que fez o seguro “contra” você.

Quando os agentes nos mercados financeiros começaram a desconfiar que os seus pares possuíam em carteira diversos títulos podres (o que implica em perdas diretas vinculadas aos empréstimos e indiretas, ao pagar aqueles “seguros”, os CDS), surgiu o que John Taylor apelidou de “o problema da dama de espadas” (em alusão ao jogo de baralho “Copas”) ou, numa releitura tupiniquim, o problema do “mico” (também um jogo de cartas, mas com figuras de animais). Qual é o banco que estava com o “mico na mão”? Não sei, logo, não empresto para nenhum.

Após o tumultuado desfecho em março de 2008, quando o Bear Stearns, àquela altura o quinto maior banco de investimento dos EUA, foi vendido por apenas dois dólares a ação (num passado não distante o preço oscilava em torno de 50 dólares), vimos o governo norte-americano negar socorro ao Lehman Brothers, que teve de buscar abrigo na Constituição e pediu a sua falência. No dia seguinte, o governo salvou a AIG, maior seguradora do mundo, pois percebeu que algumas entidades eram “grandes demais para falir” (alcunha que gerou todo um debate sobre o risco moral associado ao salvamento das próprias instituições que causaram o problema, para começo de conversa). Isso desencadeou o mecanismo da dama de espadas e em dezembro de 2008 nós tivemos o ápice da crise de liquidez do sistema monetário internacional. Os bancos não emprestavam entre eles, imagine para empresas e famílias.

E a política econômica?

À época o Federal Reserve era comandado por Ben Bernanke, um dos maiores estudiosos da grande depressão. Em discurso feito em 2002, o presidente do banco central já havia indicado possíveis caminhos para problemas dessa natureza, em reconhecimento ao trabalho de Milton Friedman e Anna Schwartz, que atribuíram ao banco central a severidade da Grande Depressão (já que a entidade permitiu que a quantidade de moeda diminuísse). Na sua essência, a prescrição era que o Federal Reserve utilizasse todos os meios para sustentar a liquidez do sistema. Isto é, imprimir moeda.

Após testar os limites da política monetária tradicional ao baixar a taxa de juros para zero, criou-se o chamado afrouxamento quantitativo (quantitative easing), para influenciar as taxas de juros negociadas no mercado financeiro (por exemplo, injetando moeda na economia ao comprar títulos de vencimento mais longo, que são os que possuem mais influência no mercado de crédito), baixando-as e, assim, podendo fornecer alguma fonte de estímulo monetário. Outras investidas também foram feitas, como a compra de ativos com problemas para “limpar” os ativos dos bancos, ou mesmo incursões fiscais (que hoje são vistas como tímidas, como o Economic Stimulus Act, no qual o governo restituiu impostos de contribuintes da classe média enviando cheques pelo correio) para estimular a demanda agregada.

Surge, inclusive, toda uma agenda do que tem sido chamada regulação macroprudencial. Basicamente, trata-se de desenhar mecanismos para que o sistema como um todo (e não apenas as instituições individualmente) possa suportar mudanças no ciclo econômico. Por exemplo, aumentar a exigência de capital próprio para todos os bancos.  As evidências empíricas corroboram essa agenda, mas ainda há muita incerteza a ser investigada.

As recessões típicas duram em média, quatro trimestres. Todavia o casal Carmen e Vincent Reinhart nos lembra que a queda após excessos financeiros e estouro de bolhas no mercado imobiliário, algumas variáveis macroeconômicas, como o desemprego, levam uma década para voltar ao nível pré-crise. Isso ajuda a entender porque mesmo as investidas não ortodoxas levaram tanto tempo para reerguer a economia.

O mundo (desenvolvido, especialmente) assistiu àquele tipo de crise que, com sorte, ocorre uma vez por século. Mas ao quadruplicar o balanço do banco central dos EUA, o excesso de liquidez trouxe novos desafios. Como remover essa quantidade enorme de recursos sem causar uma nova crise? Esse é o grande tema da normalização da política monetária dos EUA hoje. Quando pensamos que há uma caixa preta no mercado de crédito da China (que se aberta pode ganhar o colorido de Pandora), que a Europa possui uma área monetária com dificuldades e que há uma desaceleração do crescimento mundial (tanto em países desenvolvidos, como em emergentes), os alertas para uma nova crise começam a disparar. É importante, portanto, consolidar os aprendizados da crise de 2008 para que possamos combater melhor a nossa próxima crise.

João Ricardo Costa Filho é Doutor em Economia pela Universidade do Porto e professor da FGV/SP e do Ibmec/SP.

[i] https://www.onthisday.com/day/september/15 apresenta uma extensa lista dos acontecimentos do dia 15 de setembro ao longo da história.

[ii] Stock, J. H. and Watson, M. W. (2002). Has the business cycle changed and why? NBER macroeconomics annual, 17:159{218.

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