A carne de papelão na era “pós-verdade”

A operação Carne Fraca, da Polícia Federal, que investiga um suposto esquema de pagamento de propina para agentes públicos com o objetivo de emitir, sem fiscalização, certificados de adequação da carne para consumo humano a padrões sanitários, trouxe à tona um interessante problema prático, ligado a várias questões filosóficas: Como o consumidor pode saber se o que ele está consumindo é próprio para o seu consumo?
Operação Carne Fraca: Como o consumidor pode saber se o que ele está consumindo é próprio para o seu consumo?

por Andrea Faggion

A operação Carne Fraca, da Polícia Federal, que investiga um suposto esquema de pagamento de propina para agentes públicos com o objetivo de emitir, sem fiscalização, certificados de adequação da carne para consumo humano a padrões sanitários, trouxe à tona um interessante problema prático, ligado a várias questões filosóficas: Como o consumidor pode saber se o que ele está consumindo é próprio para o seu consumo? Aliás, preocupações com a saúde à parte, o consumidor também pode querer saber se o que ele consome condiz com uma série de valores seus, como sustentabilidade ambiental e ausência de mão-de-obra escrava. Mas como ele pode saber, ou, ao menos, colocando a questão de forma mais modesta, como podemos otimizar as condições para o consumidor não ser enganado por empresários inescrupulosos que querem maximizar seus lucros, desconsiderando possíveis danos a seu consumidor, bem como a terceiros?

Uma alternativa parece atraente. Considerando que os agentes supostamente corrompidos pelos frigoríficos para não efetuar a devida fiscalização eram agentes públicos, podemos optar por um sistema em que empresas privadas vendam justamente selos de qualidade. Agentes privados não poderiam ser corrompidos? Certamente, um fiscal privado também poderia receber propina para não fazer seu trabalho. Porém, segundo o argumento, se uma empresa vendesse selos de qualidade que não correspondessem a uma real garantia ao consumidor, ela seria rapidamente eliminada pelas concorrentes, pois sua certificação, por óbvio, não teria qualquer valor de mercado.

Certamente, trata-se de um argumento bastante persuasivo que faz crer que seria desejável termos um mercado competitivo de empresas de certificação de qualidade, empresas que, naturalmente, já existem e atuam com bastante sucesso em diferentes áreas e países. A questão é se isso basta, ou seja, se o livre mercado, por si só, realmente resolve o problema.

Neste ponto, um elemento importante precisa ser levado em consideração na análise. Como uma empresa privada de certificação perderia sua boa reputação? Seria muita ingenuidade pensarmos que a verdade sobre a qualidade de um produto simplesmente surgiria diante de nossos olhos, isto é, que um fato bruto desmascararia a empresa privada de certificação fraudulenta que nos fez acreditar que comíamos carne própria para consumo humano, quando comíamos, por exemplo, carne podre com aditivos cancerígenos.

Por hipótese e, aparentemente, na realidade também, o aspecto da carne adulterada não é suspeito. A princípio, nenhuma qualidade sensível imediatamente perceptível nos indica a diferença entre uma carne própria para ser consumida por seres humanos e uma carne quimicamente adulterada para parecer assim. Ao menos, assumiremos esse fato em prol do argumento. Também parece muito razoável assumirmos que a esmagadora maioria dos consumidores não vai realizar suas próprias análises laboratoriais com a carne antes de consumi-la. Por fim, a diferença entre correlação e causalidade assegura que consequências negativas para a saúde não desmascarem a empresa de certificação corrupta. Ainda que a proporção de pessoas com câncer passasse a crescer substancialmente entre as que consomem carne, há tantos outros fatores que são, igualmente, compartilhados por essas pessoas que não teríamos por que inferir que teria sido justamente o consumo de carne o responsável pelas doenças.

O ponto em que quero chegar após essas observações triviais é o seguinte: no fim, a verdade que desmascara um agente responsável por emitir certificações não é um fenômeno independente, que salta diante de nossos olhos em plena luz do dia, por conta própria. É, sim, uma nova crença, que julgamos epistemicamente justificável em virtude de sua fonte. Quer dizer, para voltarmos ao exemplo concreto envolvendo a operação Carne Fraca, se o agente supostamente corrompido fosse o agente de uma empresa privada, essa empresa perderia sua boa reputação, desde que confiássemos na Polícia Federal e em todo sistema judiciário no qual sua investigação está inserida. Em outras palavras, tudo depende da nossa confiança no bom funcionamento de instituições públicas. Se um anarquista livre mercadista usasse os “fatos” pertinentes à operação Carne Fraca para abalar nossa confiança em agentes públicos, por terem se mostrado corruptos e, portanto, corruptíveis, em última análise, para argumentar, ele estaria se fiando em sua própria confiança em agentes públicos, no caso, em policiais federais.

Em um próximo nível do argumento, seria possível perguntarmos se também o trabalho da polícia federal e do próprio sistema judiciário não poderia ser privatizado. Pensaríamos aqui, aparentemente, em agências que fiscalizam agências que fiscalizam. Mas, se há vários agentes reivindicando nossa confiança e se a perda de confiabilidade em algum deles depende justamente da nossa confiança já depositada em outra fonte que contesta a confiabilidade da primeira, ao que tudo indica, deve haver um último depositário da nossa confiança, para não cairmos no regresso ao infinito.

Esse parece ser o papel reivindicado pela autoridade pública dentro de uma sociedade. Você confia em uma empresa de certificação privada, antes de mais nada, porque você confia que, se ela fosse fraudulenta, a autoridade pública acabaria descobrindo isso e expondo-a, em uma operação como a Carne Fraca, o que significa, a um só tempo, confiar na eficiência e na honestidade da autoridade pública vigente. Em outras palavras, para uma instituição privada, ser confiável requer, como condição necessária, embora não suficiente, não ter sido desqualificada por uma instituição acima dela, na qual eu simplesmente confio.

Porém, é claro que nem todas as crenças são, digamos, “fonte dependentes”. Desse modo, eu posso perder minha confiança na própria instituição que deveria ser depositária de minha confiança última. Eu posso observar, por exemplo, estilos de vida de agentes públicos incompatíveis com suas rendas. Simples relações pessoais, como o tratamento íntimo de um Ministro da Justiça para com um dono de frigorífico, poderiam indicar a existência de relações de favorecimento ilícito, mesmo que eu não tivesse como prová-las.

As coisas ficam mais complicadas quando questionamos se nossas “fontes independentes” são mesmo o que pretendem ser – independentes das fontes, uma vez que, via de regra, recebemos essas informações com uma intermediação. A própria mídia pode, com boas razões, ser atingida por suspeitas. Sobretudo, na era da “pós-verdade”, da “fake news”, podemos ver todos os agentes detentores de alguma capacidade de influenciar crenças como parte de alguma conspiração da qual, de alguma forma, somos as vítimas indefesas. Quando a perda de confiança, no mais das vezes, motivada por boas razões, chega ao ápice, não resta  muito ao cidadão comum, além de manufaturar um chapéu de papel alumínio em forma de cone para cobrir a cabeça. O grande problema é como vamos saber se o papel alumínio não foi adulterado…

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