por Heloisa Pait
Quem sou eu sem a cidade? E que é a cidade sem mim? Se eu fosse resumir o pensamento do berlinense Georg Simmel num tweet, parafrasearia Hillel com estas duas perguntas.
Simmel escreveu inúmeros ensaios, além de alguns tratados, ao final do século XIX e começo do XX; temos apenas o suficiente traduzido para o português. O belo “As Aventuras de Georg Simmel”, de Leopoldo Waizbort, traz o detalhado contexto social em que Simmel cresceu e trabalhou, além de interessantes depoimentos de seus estudantes, trazendo à vida um autor cuja escrita é, ela mesma, pulsante. Seus ensaios sobre figuras urbanas como o aventureiro, a prostituta e o estrangeiro, assim como suas reflexões sobre o dinheiro, os grupos e a cultura feminina, parecem ter apenas alguns anos – o ensaio sobre a sociologia do segredo é especialmente atual, quando nos achamos nadando num mar profundo de informação. Os elementos que Simmel destaca em sua cidade amada são semelhantes àqueles que nós destacaríamos nas nossas, cem anos depois. Quando indico seus textos em aula, os alunos se surpreendem com ele ser anterior ao “pesadão” Max Weber, seu seguidor nos conceitos centrais.
Nestes dias de opiniões acaloradas e verdades relativas, é uma bênção ler Simmel, com seu espanto estudado diante da vida dos homens e das mulheres. Sua mirada não reduz o outro a objeto de pesquisa, não o cala, não o subsume a conceitos abstratos e metafísicos. E também não o endeusa, não coloca sobre ele ou seu grupo expectativas espetaculares e redentoras. O homem é o que é. E a mulher é o que é, com suas estratégias próprias de se tornar indivíduo numa sociedade que abre frestas para que o faça. O interesse de Simmel nos homens e suas relações não é externo, isto é, não é utilitário. O grupo não é portador de um destino heróico nem precisa de conserto; ele merece ser estudado enquanto tal, por seu próprio valor.
Seus esquemas teóricos são como miniaturas da vida social, maquetes habilidosas que representam o mundo de maneira estilizada e compreensível. Seus tipos sociais não são modelos sobre como as gentes devem ou não devem ser, mas representações esquemáticas que nunca chegam a abarcar o todo humano. Lembram as silhuetas encontradas por G.H., no romance de Clarice Lispector, que os críticos já analisaram em profundidade, delineando o sujeito ausente sem compreendê-lo, apenas demandando um esforço para que o façamos. São, finalmente, convites a nós, observadores do universo urbano, para que desenhemos nossos próprios tipos sociais, como nosso Sérgio Buarque fez por algum tempo.
Simmel faz parte do grupo de intelectuais judeus de língua alemã da virada do século passado que deslocaram o espanto diante do incognoscível – awe em inglês – da esfera religiosa para a esfera científica. Os nomes mais conhecidos são Freud e Einstein; ainda cito o escritor Arthur Schnitzler, e meus colegas mais eruditos lembrarão de outros mais. Outros autores, em outros tempos e lugares, como Walter Benjamin e nossa Clarice Lispector, também fizeram esse estranho trajeto de olhar o mundo humano com o maravilhamento antes devotado a Deus.
Simmel analisa os tamanhos dos grupos, as intensidades de suas conexões internas, seus conflitos e modos de pertencimento como quem estuda um ser amado, em detalhes, como se tudo, absolutamente tudo, importasse nessa grande dança da vida humana. E não é assim? E não são nossas relações que imprimem graça e terror à vida? E não merece a forma como nos articulamos entre nós todo esse espanto e interesse? Pois merece sim, e há cem anos já temos o instrumental específico para olhar de modo minucioso para esse objeto de estudo onipresente, nós mesmos.
Ao menos nas traduções americanas, que são meu meio de chegar a ele, Simmel não aparece como grande fã dos jargões. Só conheço o “Vergesellschaftung”, em português “constituição do social” ou “sociação”, como aparece nas traduções: uma estrutura que é constituída, não é nem dada a priori nem inexistente. Simmel foi visto em sua época como um narrador impressionista, mas uma leitura mais sistemática o revelaria plantando a semente para uma ciência das relações humanas. Outro dia um economista inglês me questionou se sociologia era ciência ou não. Eu lhe respondi que a sociologia poderia ter se tornado uma ciência, e tinha em mente a proposta de Simmel de exame dessa constituição, que a teoria dos jogos e a análise de redes sociais abraçaram, ainda que sem sua riqueza interpretativa.
O projeto de Simmel era construir uma filosofia da vida. Ao final, ofereceu-nos uma sociologia que compete, às vezes em desvantagem, com engenharias sociais, pregações apocalípticas e agitprop. Em desvantagem pois a linguagem de Simmel é de uma poesia discreta que não chama a atenção para si. Simmel não é Žižek. Sua sutileza não serve a movimentos políticos além de um humanismo moderno que não anda em voga. O personagem mais grandioso da trama de Simmel é a cidade moderna, que para ele é Berlim, e para cada um de nós, uma outra cidade onde buscamos nos afirmar como indivíduos ao lado da multidão. Onde os conflitos, como ele diz, são laços fortes que nos unem e sem os quais a vida perde o sabor.
Esta cidade não paira acima de nós, não nos constrói ou produz. Simmel insiste que não há sociedade além das interações sociais. A cidade, a sociedade, a teia de relações humanas, para usar um termo de Arendt, é apenas isso: uma superposição complexa de milhares, milhões, talvez bilhões de encontros e desencontros que temos uns com os outros e, através das estórias, com os que nos precederam. O que faz Berlim são os berlinenses, e o que faz os berlinenses são os não-berlinenses, pois, sem eles, Berlim não seria Berlim. Numa visita a uma pequena cidade mineira pela qual me apaixonei, depois de conhecer o quitandeiro uruguaio e o restaurateur de Osasco, me dei conta de que são aqueles dois que fazem da pequena Alagoa uma cidade, e que a cada novo habitante – incluindo eu mesma –, Alagoa se refaz como cidade e, em vez de se dissolver na mesmice da globalização, se encontra consigo mesma, se recontando e revelando ao forasteiro.
É esse tipo de ideia que Simmel inspira. Nos Estados Unidos, seu pensamento frutificou na Escola de Chicago e nas detalhadas descrições da sociabilidade urbana etnicamente diversa. Perdeu algo da poesia, mas ganhou a sistematização; com Ervin Goffman, ganhou humor. No Brasil, há uma análise muito boa sobre a influência de Simmel na obra de Sérgio Buarque de Holanda, feita pelo mesmo Leopoldo Waizbort – um tema fascinante que pretendo explorar em um futuro artigo. Mas Sérgio não penetrou na sociologia brasileira e, mais ainda, foi muito pouco traduzido no exterior. Por que não? Por que não, se sua proposta sutil e compreensiva dos humores humanos se encaixa tão bem em nossa cultura? O que ficou, e isso será tema do artigo, foram propostas de pensar a sociedade que reforçam nossa estrutura desigual, enaltecendo-a ou desprezando-a, mas de qualquer modo a colocando num pedestal explicatório que o individualismo de Simmel não poderia fazer.
Pois em seu individualismo, e aprendi isso num livro muito belo do escritor israelense Amós Oz, o centro do mundo não é o ser humano abstrato, igual aos demais, apreensível em teorias acachapantes, mas o ser humano particular, dono de um mundo inteiro ele mesmo. Esse individualismo apoiado na particularidade de cada ser humano coloca na coletividade destes homens únicos um peso considerável: ela é responsável por cada uma destas almas. A mim me emociona pensar em Berlim, em São Paulo, como este aglomerado enorme de gentes distintas e mesmo assim tão dependentes umas das outras, até quando se batem, se dividem entre o partido de cima e o partido de baixo, como em Alagoa.
Simmel faleceu em 1918. No ano que vem, relembraremos o centenário de seu falecimento. O que aconteceu neste século sem Simmel? O que aconteceu com o pensamento social nesse século depois de Simmel? Mantivemos, nas leis e nas ideias, o amor ao ser humano único, induplicável, cuja mirada e ação sobre o mundo temos o privilégio de testemunhar? Entendido amor aqui como respeito e desejo de que se desenvolva, e não pena por ele ser quem ele é ou vontade que fosse algo distinto. Cuidamos das cidades enquanto morada fenomenal do indivíduo moderno, em sua pluralidade e convivência? Enxergamos de modo claro como a cidade precisa do indivíduo e este da cidade?
Em linhas gerais, penso que sim. A Berlim de Simmel foi destruída como símbolo da modernidade e convivência – ainda que nos dias que correm parece ter se reconvertido em reduto de racionalidade e compreensão. Mas outras cidades surgiram, talvez a sua que me lê agora. Mais gente é estrangeiro hoje do que jamais o foi. E portanto mais lugares são cidades do que jamais foram. Mas a cidade está hoje novamente em perigo, depois de cem anos. Seus valores e sua vida enfrentam adversários de peso, e é sempre bom lembrar que cidades maravilhosas, como Bagdá ou Roma, sucumbiram à imbecilidade autóctone ou às armas de fora. Seus adversários, precisamos enfrentar com nossas próprias armas, o diálogo que nos une e a lei que nos protege. Em cada ato, cada voto, precisamos nos perguntar: apoio o projeto de Nero para Roma ou ando de braços dados com Churchill? Votei em Péricles ou no trêbado Jânio Quadros? Vejo cada eleição como um “espetáculo da democracia” ou como uma roleta russa com o futuro de minha urbe?
Sair em desabrida cruzada contra a cor dos muros, como nosso alcaide, não vai resgatar a consideração que devemos, cidadãos, ter uns pelos outros e que mantém nossa cidade habitável. Defender com a mesma intensidade a todas as práticas possíveis e imagináveis não vai dar guarida aos habitantes da cidade, que merecem nossa proteção até as últimas consequências. Não será fácil encontrar o equilíbrio entre direitos individuais e coletivos, dos quais depende o futuro do projeto moderno. Como saber quando estamos convidando o fascismo a se instalar, ou exercendo moderação que compensará mais adiante? Como saber quando estamos preservando a cidade para todos ou apenas calando vozes incômodas? Como distinguir a defesa do direito individual – da qual vive a cidade – da licença para oprimir e violar?
Para quem quer lutar, Simmel oferece muito pouco: poucas bandeiras, poucos slogans e nenhuma missão. Na minha lembrança, seu argumento mais acalorado defendia o valor do trabalho de um químico que, criando tintas, valoriza a produção de uma infinidade de trabalhadores têxteis. Que movimento político virá desta defesa, que possa incendiar as massas ou alunos de graduação? Não há dois minutos de ódio, há apenas um olhar valorizador para uma atividade humana específica, numa releitura singela do tratado de Adam Smith sobre a Riqueza das Nações. Já para quem quer agir de modo inteligente, a partir de reflexões lúcidas sobre os dilemas sociais contemporâneos, eu não conheço melhor ponto de partida que a obra deste pequeno judeu berlinense, esse sábio discreto e perspicaz que nos deixou como legado uma maneira de olhar o mundo social sem prazo de validade.