por Vinícius Müller
Tempos atrás, em uma amistosa conversa com um conhecido alemão, contei a ele que era professor universitário. Eu, então com pouco menos de 40 anos, fui surpreendido com a reação daquele que perguntara sobre minha profissão. Algo respeitoso, disse-me que eu era muito jovem para se professor universitário e que me imaginava como um prodígio ou algo assim. Curioso pela reação a qual não estou acostumado, devolvi a pergunta questionando-o sobre sua profissão. Mais uma surpresa minha: ele se apresentou como marceneiro. Perguntei, então, fiel à minha formação como historiador, se marcenaria era alguma tradição familiar ou regional. Lembrei-me das aulas fantásticas que tive, ainda na graduação, de História Medieval com o também fantástico professor Ruy de Oliveira Andrade Filho. Nelas apareciam uma nova sociedade do outono medieval europeu, mais urbana, mais comercial e com uma nova sociabilidade que, em mosaico, aproximara mercadores, intelectuais, nobres, homens de ofício (marcenaria?), e, porque não, variações da religiosidade cristã. Corporações de ofício, guildas, feiras e cidades na Baixa Idade Média. Imaginei que marcenaria fosse um desses ofícios medievais que passara de geração em geração até chegar ao meu interlocutor.
Contudo, não era o caso. Disse-me que, anos antes, quando estudante de Arquitetura em uma Universidade de seu país natal, descobriu que assim como ele outros colegas não se satisfaziam com as disciplinas teóricas e relacionadas às áreas do Urbanismo e, por isso, resolveram abandonar o curso e se dedicar ao desenho e manufatura de móveis. E que, a partir disso, abriram uma loja de móveis em Düsseldorf, cidade das mais desenvolvidas da Alemanha. Em silêncio, pensei por alguns segundos sobre o quão novo para mim era alguém se apresentar como marceneiro – ou pelo ofício – quando poderia fazê-lo como empresário. Insisti no tema e perguntei se mais alguém de sua família, seu pai talvez, também era marceneiro. Respondeu-me que seu pai era um advogado tributarista que atuava como consultor para alguns investidores de Frankfurt. Acabei com a conversa perguntando, capciosamente, se sua escolha profissional, a marcenaria, não havia criado algum tipo de conflito com sua família. Filho de advogado bem sucedido abandona a faculdade de Arquitetura para ser marceneiro? Imaginei a crise familiar, o pai o expulsando de casa etc. Ele não entendeu minha última pergunta. Achou que eu estava brincando.
Voltei mentalmente à Idade Média, avancei um pouco, e lembrei-me de uma expressão usada por Phillys Deane, historiadora e economista britânica em sua obra The First Industrial Revolution (Cambridge University Press, 1965). Nela, Deane fala em ‘aburguesamento da nobreza’ britânica. Algo como a aderência por parte da nobreza britânica a alguns valores vinculados aos comerciantes e empresários. Com sinal invertido, Joel Mokyr, também historiador econômico, em The Enlightened Economy: a Economic History of Britain, 1700-1850 (Yale University Press, 2009) fala sobre um ‘enobrecimento da burguesia’ britânica. Ou seja, que alguns valores tradicionais da nobreza foram incorporados ou negociados com a promissora burguesia. A identificação de elementos que, na mesa de negociação, servem de ponto de partida para a criação de uma intersecção entre valores, interesses ou grupos diferentes, pode resultar não em diminuição do prestígio de um em benefício do outro. Mas, sim, na ascensão de uma nova ética que os equilibra. Certamente a existência de regras e práticas, como por exemplo, as do Parlamento Britânico, facilitou essa negociação. Mas, esse equilíbrio reflete algo como uma obrigação, mesmo a contragosto, que as partes têm em se dedicar a negociação. É como se houvesse um quantum de status e dignidade social compartilhado pelos grupos diversos. Aliás, dignidade é o tema da segunda obra que compõem a trilogia sobre a ascensão das ideias burguesas escrita por Deirdre McCloskey (The Bourgeois Dignity: why economics can´t explain the modern world. University of Chicago Press, 2009). Nela, a historiadora norte-americana reflete sobre o reconhecimento social que os homens de negócios e profissionais liberais conquistaram e como isso influenciou no desenvolvimento econômico do mundo moderno.
Em um mundo ideal e idealizado por economistas exageradamente liberais, o mercado ajustaria a remuneração dos agentes a partir da utilidade e qualidade daquilo que oferecem. O talento e a relevância seriam recompensados. Mas, mesmo não sendo em absoluto mentiroso (sim, o mercado funciona!), este mundo idealizado não é unidimensional. Ao contrário, mesmo funcionando, o mercado sofre uma série de influências e impactos vindos de outras tradições, regras e racionalidades. Ou seja, não foi apenas o mercado e sua racionalidade que permitiram que os negócios florescessem na Grã-Bretanha, mas sim a criação de um espaço social de ajuste e de influências mútuas entre nobres e homens de negócios que permitiu que o status e a dignidade social desses últimos se equilibrassem aos dos primeiros. O resultado foi uma valorização das atividades burguesas que, por isso, passaram a ser mais reconhecidas e recompensadas naquela sociedade. E isso se transformou em um círculo virtuoso: mais reconhecimento, mais dignidade social, maiores parcelas da riqueza, maior procura, pelos indivíduos, pelas atividades relacionadas.
Ou seja, não há nenhum demérito social ao meu amigo alemão quando ele se apresenta como marceneiro e não como empresário. Não lhe parece indigno ter escolhido ser marceneiro, mesmo filho de um advogado bem sucedido. Ainda bem que, por isso, ele pôde exercitar profissionalmente aquilo que lhe parecia ser seu talento. Por outro lado, não me parece que a situação possa ser transportada ao Brasil: como seria a reação de um advogado bem sucedido (ou médico, ou juiz, ou banqueiro, ou engenheiro, ou qualquer outra atividade profissional a qual creditamos dignidade e/ou reconhecimento social e econômico) se seu filho primogênito resolvesse ser professor de Ciências do Ensino Fundamental? McCloskey acertou, mesmo sem querer. O problema não é a desigualdade, mas sim a dignidade.