A mistificação do Direito

O mundo do Direito é um mundo paralelo, com suas próprias regras, suas próprias leis e seus próprios critérios do que é certo e do que é errado.
Escultura “A Justiça”, de Alfredo Ceschiatti, em frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal

por Horacio Neiva

Juristas gostam de raciocinar a partir de casos hipotéticos, então comecemos com um: imaginem que a polícia descobre que determinada pessoa praticou um crime bárbaro. A descoberta ocorreu porque os policiais conseguiram, no curso de uma investigação, interceptar uma ligação entre o criminoso e sua esposa, na qual ele confessava, sem margens para dúvidas, que havia praticado o crime. Aquela era a única prova material que a polícia conseguira em meses de investigação. Finalmente, a justiça poderia ser feita. Só havia um problema: a polícia havia interceptado a ligação sem ter pedido a um Juiz que a autorizasse previamente.

Aquele criminoso, se não existirem outras provas, provavelmente será absolvido. O direito brasileiro não admite provas que tenham sido obtidas por meio de interceptação telefônica não autorizada judicialmente. Policiais, promotores, advogados e – principalmente – juízes poderão ouvir a gravação, saber do que se trata, ter certeza que nela consta uma confissão expressa de crime, e ainda assim deverão concordar que o criminoso sem escrúpulos não poderá ser condenado.

Pessoas comuns, diante disso, ficam consternadas. Será que é correto deixar que um assassino ou um corrupto saia impune de um tribunal por conta de uma pequena minúcia técnica em um processo criminal? O formalismo jurídico, com suas regras, seus procedimentos, suas milhares de brechas para nulidades e vícios, não é, afinal de contas, um tipo de artificialismo imoral?

Os juristas tentam encontrar – ou formular – justificativas morais para situações como essa. Eles argumentam, por exemplo, que os formalismos são uma salvaguarda do cidadão em face do arbítrio do Estado. Pequenas violações de garantias, que muitos gostam de chamar de “fundamentais”, acabarão se transformando em violações progressivamente mais graves. O cidadão comum que consentiu com uma pequena violação, acabará sendo, posteriormente, vítima de outra.

É melhor absolver um culpado do que condenar um inocente, dizem os juristas. As garantias – e nulidades que muitas vezes dela decorrem – tentam assegurar que poucos inocentes serão injustamente condenados. Idealmente, que nenhum será. Se alguns culpados serão soltos como decorrência, paciência. É o preço a se pagar.

Mas será mesmo? Nosso criminoso hipotético havia confessado o crime, e ninguém tinha dúvidas quanto a isso. Será moralmente correto deixá-lo livre em nome de supostos inocentes que poderiam ser condenados num futuro que não sabemos se chegará?

A resposta do Direito é “sim”. Ou melhor: “não importa”. O cidadão comum vê com estranhamento as formalidades jurídicas porque encara problemas como o do criminoso hipotético a partir de seu julgamento moral sobre o caso. E o julgamento moral do cidadão comum, corretamente, considera que um criminoso confesso deve ser punido, e que é injusto não fazê-lo.

Contudo, é esse tipo de julgamento moral que o Direito tenta afastar do raciocínio jurídico. Na lógica dos juristas, a avaliação moral das circunstâncias de um caso pode ser relevante no momento da criação de uma lei. Mas, uma vez promulgada, cabe aos profissionais do Direito aplicá-la, de acordo com os cânones de interpretação jurídica que aprenderam em seus livros de doutrina e nas decisões judiciais anteriores. Não é seu papel avaliar moralmente a situação. Seria melhor que o Direito fosse mais flexível em termos de obtenção de provas por meio de interceptação telefônica? Até poderia ser. Mas ele, atualmente, não é, e o juiz, ainda que triste e resignado, deverá curvar-se à lógica do direito.

Não é lógico, do ponto de vista moral, que um criminoso seja punido? Até pode ser, mas os juristas costumam objetar que o Direito tem a sua própria lógica. O mundo do Direito é um mundo paralelo, com suas próprias regras, suas próprias leis e seus próprios critérios do que é certo e do que é errado.

Isso não significa, então, que deveríamos abrir mão do Direito, e deixar que nosso julgamento moral e nosso senso de justiça decidam os casos, à medida que eles surjam? Existem várias razões – alguns diriam racionalizações – para termos um sistema de normas com as características do Direito. Ele pode servir para diminuir os conflitos sociais que surgiriam das divergências sobre a interpretação de uma norma moral. Ele pode facilitar a coordenação social entre pessoas que pensam e agem de maneiras distintas. Ele pode conferir segurança e previsibilidade às relações entre cidadãos. As razões são muitas.

Mas quero chamar atenção, aqui, não para a estranheza gerada no cidadão comum pela diferença entre a lógica artificial do direito e o nosso próprio senso de moral e justiça. Quero chamar atenção para o fenômeno inverso: a substituição do nosso senso de moral e justiça pela lógica artificial do direito. Em outras palavras: a falta de estranhamento diante do Direito.

A lógica implacável do Direito pode levar a decisões que contradizem o que achamos correto, tudo o mais considerado. O cidadão comum que esteja convencido da importância do Direito aceitaria o resultado com um certo sentimento de resignação. Infelizmente, pensa ele, esse é o preço que temos que pagar. Mas algumas pessoas, ao invés de um sentimento de resignação ou de revolta contida, passam a equiparar a sua própria regra moral com a regra do Direito. Não há mais a sensação de estranhamento diante do conflito entre consciência moral e regras jurídicas porque não há mais diferença entre consciência moral e regras jurídicas. Uma absolvição jurídica é também uma absolvição moral.

O filósofo inglês Jeremy Bentham ficava horrorizado diante da imensa complexidade do direito inglês, com seus métodos artificiais de prova, suas leis prolixas e obscuras, e seu excesso de formalismo. Mas, como nota H.L.A. Hart, Bentham ficava ainda mais horrorizado com a facilidade com que juristas aceitavam os abusos do Direito e propagavam a “enervante superstição” de que esses abusos eram “naturais e inevitáveis” (Essays on Bentham: Studies in Jurisprudence and Political Theory. Oxford: Oxford University Press, 1982, p. 26).

A mistificação do Direito denunciada por Bentham podia ser vista no uso recorrente de expressões que o filósofo chamava de “passion-kindling appellatives” e “imposter terms“: expressões que tinham um sentido mais emocional do que descritivo. Bentham citava o uso da expressão “manutenção da lei e da ordem” – ao invés da simples “aplicação da lei” – como uma dessas expressões, mas podemos encontrar outras: as regras processuais que não são simples regras, mas, sim, “garantias fundamentais”; a não observância de uma dessas regras, que não é vista apenas como uma nulidade, mas também como uma violação ao “Estado de Direito”.

Mistificar o Direito, assim, é elevá-lo à condição de regra moral natural que uma criação humana imperfeita não deveria ter. A existência do Direito pode ser necessária, mas a sua mistificação definitivamente não é. O criminoso hipotético, cuja confissão foi interceptada em um ato ilegal da Polícia, não deve ser condenado, segundo o Direito. Isso não significa que não devamos impor-lhe o castigo da reprovação moral e, a depender do caso, política, que sua conduta merece.

Diante da prova cabal de um crime, que consequências o criminoso deveria sofrer? Se a prova foi obtida de maneira ilegal, ele não deveria ser punido pelo Direito. Isso significa que não deva ser punido na esfera moral e política? Algumas pessoas, críticas da suposta sanha justiceira do cidadão comum, parecem crer que não. Estes, no entanto, não percebem que, por trás de um alegado compromisso sentimental com o Estado de Direito, estão reprimindo sua própria sensibilidade moral em nome da mistificação de uma criação humana importante, útil, porém falível e parcial. No mundo paralelo do Direito, deve vigorar a estrita lógica jurídica; no mundo da moral e da política, não.

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