por Felipe Pimentel
Há algum tempo, escrevi aqui para o Estado da Arte uma pequena série sobre ideologia e ideólogos. Nos três textos, procurei demonstrar como uma pessoa imbuída de qualquer ideologia passa por três momentos. O primeiro momento é o da adesão a determinada visão de mundo e o afunilamento das lentes pelas quais enxerga a realidade: ela começa a selecionar da realidade somente os eventos que confirmam sua visão e a interpretar todos os outros do mesmo modo. Em segundo lugar, o ideólogo começa a enxergar forças veladas que governam a realidade, se sobrepondo às ações das pessoas. Quer dizer, as pessoas não são mais indivíduos livres, mas marionetes de um sistema oculto através do qual falam, conscientes ou não. Este estágio é importante, pois é ele que permite a despersonalização das pessoas, pois, seja como agente ou como passivo das “más” ações que governam o mundo, as pessoas são meras ferramentas e não mais indivíduos autônomos (as distopias do século XX mostraram isso claramente com os totalitarismos reais ou fictícios). E, por fim, o último estágio é o mais importante: é o senso de dever moral que um ideólogo se incumbe de curar a realidade.
Perceba como as três etapas são decorrentes uma da outra. Primeiro eu adiro a uma visão de mundo e monopolizo a minha leitura da realidade. Depois, eu começo a perceber como as pessoas estão sujeitas, sem o saber, desse funcionamento, fazendo delas objetos e não sujeitos. Por fim, percebendo, através da minha teoria, que eu enxergo essa objetificação à qual as pessoas estão submetidas eu simplesmente me vejo na obrigação moral de impor às pessoas a minha visão e as ferramentas que vão libertá-las.
Eu poderia ter apresentado ilustrando-a com alguma teoria de esquerda. Seria fácil. Ou alguma teoria de direita. Pouco importa. Mas não seria honesto. Eu queria demonstrar como o que importa não é a orientação política, mas o grau de convicção ideológica de uma pessoa. Perdi na polêmica, mas ainda acho que estava correto. Explico.
A direita afirma, há anos (e com razão), que parte da esquerda age de forma autoritária, impondo seus valores, sua estética, sua concepção de cultura, suas noções de certo e errado e bem e mal. Que parte da esquerda não dialoga, é contraditória e só aceita os seus. É verdade. Durante anos, eu mesmo apontei isso. Porém, eu percebia que o problema não era ser de esquerda, mas ser ideólogo. Não existiam ideólogos de direita no Brasil porque ninguém, ou quase ninguém, lia nada de direita. (No Brasil, muitas pessoas são de direita por temperamento ou disposição, e não estudo). E isso porque era evidente que um ideólogo de direita agiria e pensaria do mesmo jeito.
No Brasil atual, isso ficou bem claro. A tal “patrulha”, levada ao estado de arte por parte da esquerda nos últimos anos, agora foi espelhada pela direita – uma polarização, ainda que tenebrosa, democrática, e, acima de tudo, didática. Ambos os lados apontam as suas contradições, as suas ambiguidades; se despirmos as frases de conteúdo, elas ficam, inclusive, idênticas: “não são vocês que defendem a liberdade de expressão? então porque agora não pode ter um filme com ( preencha )”. Ou melhor: “quando é com ( preencha ) vocês não falam nada, mas quando é com ( preencha ) vocês atacam”. Pena não parar aí, já seria suficientemente cansativo e enfadonho. Mas não. Começam as ações, as petições, as mobilizações e até, vejam, passeatas. E muito, muito debate nas redes sociais, mensagens inbox que acossam parentes e amigos por não estarem alertados sobre o perigo de ( preencha ).
O que aprendemos com isso? Fica claro que ambos os lados podem padecer do mesmo mal: a ideologização da realidade, isto é, a crença de compreenderem a realidade como um todo, aliada à crença de possuírem o remédio para curá-la dos seus males. E nós precisamos nos curar das curas que querem nos impor. E esse remédio sempre teve a mesma composição química: pegue uma base de democracia, que consiste especialmente na aceitação da verdadeira diferença (não a propugnada pela esquerda, que é o diferente que eu aceito e compreendo), acrescente um pouco de pequena contribuição individual (o mundo não precisa se conformar à nossa visão) e da própria insignificância (nós podemos ajudar o mundo, mas não tanto); a esta base acrescente alguma dose de ceticismo (a realidade é um pouquinho mais complexa do que os nossos tutanos podem supor); e, por fim, uma pitada de bom senso: ninguém está pedindo para ser salvo, procure salvar a si e aos seus, e já terá feito um grande trabalho.
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