Por Gabriel Heller
Os conflitos entre as instituições brasileiras parecem estar chegando ao limite aceitável pelo regime constitucional estabelecido em 1988. Sintoma disso é o fato de o Ministro Og Fernandes, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ter proposto aos seus seguidores no Twitter enquete com a seguinte questão: “o Brasil deve sofrer intervenção militar?”. Problemática e digna de críticas por uma série de razões – a começar pela função pública do proponente –, a pergunta do magistrado parece ser um alerta não desprezível no momento em que o confronto entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Senado Federal intensifica-se perigosamente.
Iniciado com o avanço da Operação Lava Jato sobre políticos de maior influência e agravado com a prisão do Senador Delcídio Amaral em 2015, a guerra entre as cúpulas do Judiciário e do Legislativo atingiu seu ápice com a decisão da 1ª Turma do STF que determinou o afastamento do Senador Aécio Neves de suas funções no Senado e seu recolhimento domiciliar noturno, como medidas cautelares diversas da prisão previstas no art. 319 do Código de Processo Penal (CPP).
Comecemos pelo óbvio: é deprimente e inspira a maior desesperança o fato de Aécio Neves não ter renunciado ao cargo ou não ter sido cassado por seus pares após a divulgação de áudio em que pede 2 milhões de reais a um corruptor confesso de centenas de políticos. Não se trata de novidade ou caso isolado. Contudo, tratando-se do Presidente de um dos maiores partidos nacionais (PSDB), candidato (quase eleito) à Presidência em 2014 e ex-Governador do segundo maior colégio eleitoral do País, a situação assoma em gravidade.
O impeachment de Dilma Rousseff teve a deletéria consequência de apaziguar os ânimos sem que houvesse mudanças significativas – à exceção da área econômica. A vontade e a capacidade de mobilização da população minguaram, deixando o mundo político tranquilo para deixar de punir alguém que violou o decoro e todo padrão de decência pública. Por conseguinte, o cerne atual da polêmica passa a ser o que o STF deveria fazer a par de mais um caso escandaloso envolvendo um parlamentar.
Tribunais supremos e tribunais constitucionais têm a peculiaridade de serem órgãos judiciários e políticos. Embora seja de todo desejável que o mundo político não interfira em decisões que devem se pautar pelo Direito posto, essa não é a realidade em cortes que precisam diuturnamente proteger a Constituição e, eventualmente, limitar as ações de outros Poderes. O dever de autocontenção das instituições judiciárias de cúpula, que devem respeitar o espaço de atuação dos demais Poderes, é o exemplo maior de como Direito e Política são, por vezes, indissociáveis.
Partindo dessas premissas, resta tentar responder às perguntas: a) o STF poderia ter afastado o Senador Aécio Neves de suas funções e determinado seu recolhimento noturno? b) o STF deveria ter tomado essa decisão?
Alguns apoiadores do Senador alegam a ausência de previsão constitucional para o afastamento do Senador. Segundo esse entendimento, se é a Constituição da República que disciplina o regime jurídico dos parlamentares e traz as garantias para o livre exercício do mandato, e se ela não previu expressamente a possibilidade de afastamento e recolhimento domiciliar noturno, estes não poderiam ser impostos. De seu turno, o Presidente do Senado, Eunício Oliveira, e outros parlamentares vêm argumentando que, se a Constituição exige que o Senado decida sobre a prisão de um Senador determinada pelo Judiciário, também o faz para o caso das medidas cautelares diversas da prisão.
Nada obstante, a ideia de que medidas cautelares diversas da prisão não seriam aplicáveis aos membros do Poder Legislativo mostra-se incompatível com um Estado e uma Constituição que se pretendem republicanos e democráticos. Negar a aplicabilidade das medidas cautelares a membros do Legislativo implica, por exemplo, recusar a possibilidade de proibição de ausentar-se do País, o que, por sua vez, possibilitaria que qualquer parlamentar investigado fugisse sob as vistas de uma Polícia Federal e de um Judiciário de mãos atadas.
Deputados e Senadores são, de fato, invioláveis civil e penalmente por opiniões e votos proferidos no exercício do mandato e são protegidos expressamente contra o encarceramento (art. 53, caput e § 2º, da Constituição). Contudo, a Constituição não vedou a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão; interpretar extensivamente os excepcionais dispositivos protetivos dos parlamentares, rejeitando a aplicação de cautelares, importa em transformar garantias necessárias ao exercício das funções em verdadeiro privilégio. A inaplicabilidade de qualquer medida cautelar diversa da prisão permitiria, ao fim e ao cabo, que um parlamentar coagisse testemunhas e queimasse provas sem maiores preocupações, bastando não ser pego em flagrante.
Vem ocorrendo, também, outra confusão: de acordo com o CPP, as medidas cautelares não são estritamente “substitutas” da prisão, mas simplesmente “diversas”. A prisão cautelar é a ultima ratio da investigação criminal, tem requisitos diferentes das demais cautelares e, portanto, não pode ser com elas confundida. Dessa forma, não há que se falar em deliberação pela Casa Legislativa a respeito da decisão do Supremo, seja porque não prevista na Constituição, seja porque a analogia pretendida não se justifica.
Concluindo-se pela viabilidade jurídica do decidido, ainda falta responder à segunda questão: deveria o STF ter assim decidido?
Como demonstra a reação do mundo político, o afastamento de Aécio Neves das funções parlamentares pouco ou nada altera em sua influência junto a correligionários e aliados. O Senador mineiro seguirá sendo visitado por pessoas que, ainda que não sejam investigadas, têm amplo acesso a estas, podendo planejar seus próximos movimentos e ações como se no Senado estivesse.
Desse modo, a 1ª Turma do STF conseguiu, no máximo, criar um incômodo pessoal ao ex-presidenciável e gerar uma crise política. Forneceu mais elementos para as impertinentes entrevistas do Ministro Gilmar Mendes – já analisadas neste Estado da Arte – e levou o Presidente do Senado a defender a usurpação por esta Casa da função precípua do STF: guardar a Constituição.
Em dezembro de 2016, o Ministro Marco Aurélio determinou, com uma solitária “canetada”, o afastamento de Renan Calheiros da Presidência do Senado. Em seguida, viu o político alagoano ignorar sua decisão e o STF reformá-la. Logrou, com isso, desacreditar o poder do STF de fazer cumprir suas decisões. A 1ª Turma do Supremo corre agora o mesmo risco: embora juridicamente defensável, a ineficácia da ordem e a iminência da crise institucional gerada revelam um julgamento um tanto questionável.
Não resta dúvida de que o Senador Aécio Neves deveria ter renunciado ao cargo ou ter sido cassado por seus pares. Na falta de “grandeza” do parlamentar – para usar a polêmica expressão do Ministro Luiz Fux –, cabia à sociedade civil manifestar-se energicamente cobrando de seus representantes uma ação. Hoje, porém, acostumamo-nos a tudo pedir ao Poder Judiciário e tudo dele esperar, chancelando eventuais exageros e proporcionando medidas inócuas.
Nada disso muda o fato de que, em democracias constitucionais modernas como a nossa, a guarda da Constituição compete a órgãos jurisdicionais como o STF. Ao Senador Aécio e ao Parlamento cabe apenas recorrer da decisão ou cumpri-la. Se devemos, enquanto sociedade, aguentar o fardo das más decisões que tomamos nas eleições, devemos também aprender a lidar com decisões possivelmente equivocadas de nossa Corte Suprema. O que está em jogo é a estabilidade de nosso sistema constitucional e de nossa democracia.