As eleições do “grand remplacement”

A imigração de massa, consenso em que se encontravam os liberalismos de esquerda e de direita, ameaça dinamitar a República do Centro que governou a França até agora.

por Rodrigo de Lemos

“The center cannot hold”
W.B. Yeats

A imigração de massa, consenso em que se encontravam os liberalismos de esquerda e de direita, ameaça dinamitar a República do Centro que governou a França até agora. Emmanuel Macron, candidato independente que encarna esses dois liberalismos à perfeição, pode até superar Marine Le Pen (bem como o cripto-bolivariano Jean-Luc Mélenchon) no segundo turno das eleições de 2017. Uma noção, no entanto, se impôs às consciências, nas conversas quotidianas e nos debates intelectuais, como constatação ou como fantasmagoria conspiracionista: a França e a Europa sofreriam do grand remplacement, uma substituição étnica dos autóctones por populações alienígenas, inassimiláveis à civilização europeia por educação e por cultura. A esquerda liberal apoiaria o grand remplacement por furor multicultural. A direita liberal, por economicismo (quantos pontos a mais no PIB trazem os imigrantes? Como influenciam positivamente nas estatísticas de consumo e de inovação?). O termo empurrou parte da direita centrista ainda mais à direita, disputando ao Front National os votos de um eleitorado que sente, em sua vida quotidiana, uma grande mudança indesejada em seu país. Não se trata aí de uma pequena vitória – talvez ainda não nas eleições, mas na guerra da cultura.

O escritor Renaud Camus

Renaud Camus, que cunhou o termo, é uma figura dificilmente assimilável aos clichês da extrema-direita europeia; nada de suásticas, de jaquetas de couro. É difícil portar um julgamento de conjunto sobre suas duas identidades, a política e a artística, muito desiguais. Isso porque Renaud Camus é, sobretudo, um écrivain – quem sabe o último, e não dos menos relevantes. Começou nos anos 70, no círculo vanguardista do nouveau roman, como discípulo de Roland Barthes, que prefaciou seu livro de estreia, Tricks, uma coleção de curtas autoficções sobre brief encounters homossexuais. Desde aí, sua obra se espalhou pela narrativa experimental, por elegias aos companheiros de militância golpeados pela AIDS, por narrativas de viagem, pelo ensaio, pelo comentário social, pela crítica de arte e pelo escrito de combate. Acima de tudo, Camus é autor de um diário em dezenas de volumes que rivaliza com os de um Gide ou de um Julien Green em extensão e conteúdo, abarcando seus revezes sentimentais, suas aventuras libertinas no Marais ou em Ipanema, seu gosto pelas paisagens e sua erudição em história, música, arte, literatura e arquitetura. Quantos conseguem escrever com a mesma desenvoltura sobre Rubens e sobre Albers, sobre pintura clássica e sobre arte contemporânea, a qual ele expõe (coisa rara “à direita”) no castelo que habita na província? Isso em uma prosa que, por momentos, não seria exagerado colocar entre as melhores do idioma, por sua penetração intelectual e por seu amor dos lugares.

Camus é, em suma, um homem de cultura, e é a consciência dessa condição crepuscular que dita muito da sua atuação política, para o bem e para o mal. O grand remplacement seria precedido de outro grande fato social, a grande déculturation, da qual ele expõe a teoria em Les Inhéritiers (algo como Os desherdeiros em resposta a Os herdeiros, de Bourdieu), conferência proferida em encontro na Escócia com Roger Scruton. A esquerda após os anos 60, seguindo Bourdieu, teria identificado desigualdades culturais na sociedade democrática que obstruiriam a perfeita igualdade de oportunidades que o fracasso do comunismo lhe deixara como ideal. Tratava-se, então, para a esquerda na ressaca de Praga, de eliminar os herdeiros, os beneficiários de uma herança cultural que coubera outrora às boas famílias transmitir e que daria aos jovens burgueses vantagens sociais sobre os oriundos de meios mais precários. Com isso, segundo Camus, o que a esquerda bourdieusiana logrou foi menos o acesso igualitário à cultura do que a destruição da própria: sem uma classe de transmissão, o próprio transmitido se dispersou, ou melhor, foi substituído por seu simulacro – assim da música, por exemplo, não mais o termo que se referia à tradição de Palestrina a Stravinski, mas ao pop e assemelhados (tudo aquilo, enfim, que antes se chamava “variedade” ou “music hall”); assim também da própria Cultura, diluída em seu plural. A grande desculturação teria sido condição à substituição dos povos, ao solapar a identidade das nações europeias e abrir um grande vazio cultural em que se imiscuíram os propagadores do grand remplacement. “Um povo que conhece seus clássicos não se deixa ser substituído”, resume Renaud Camus.

Observações comuns a pensadores conservadores de diversos matizes se misturam aí ao combustível de um radicalismo reacionário que não seria sem derivas. Essa combinação de conservadorismo ponderado e de etnocentrismo incendiário dá o tom ao programa do Parti de l’In-nocence, por ele fundado em 2002. As propostas compreendem uma fiscalidade liberal, com o fim do imposto sobre fortunas e o teto de taxação em 30% da renda; uma adesão resoluta à Europa (exceção na extrema-direita); enfim, em cultura e educação, o retorno do grego e do latim à escola e uma regulamentação estrita para a preservação do patrimônio natural e cultural, além de inovações como a criação de um corpo docente de assistência individual, para auxiliar pessoalmente “qualquer estudante insatisfeito com sua situação escolar, intelectual, cultural ou profissional”. É a tentativa de reverter a desaculturação em marcha. “No meu governo, a indústria cultural será incumbência do Ministério da Indústria”, provoca o fundador do partido.

Tudo isso convive com medidas sulfurosas no que diz respeito à imigração, para não dizer liberticidas. De nada adiantaria, como quer parte da direita republicana, curvar o Islã à República, como se fez com o catolicismo; a saída seria a remigração, o retorno das populações muçulmanas a seus países de origem. A vocação à remigração seria decidida com base em uma Charte de la civilisation française et européenne, que elencaria os comportamentos pertinentes à cultura francesa (definida pela herança greco-romana, pelo cristianismo, pelo livre exame intelectual, pelos códigos da cortesia e pela liberdade sexual); tudo que lhe fosse julgado contrário cairia em suspeição. A adoção internacional seria proibida. O jus soli, abandonado. A imigração restringir-se-ia ao direito de asilo. A renegação pública da civilização francesa por um imigrado levaria à sua expulsão imediata, assim como sua presença ilegal sobre o território do país. O mesmo valeria para qualquer “fé muçulmana intensa e exteriorizada”. Os resultados possíveis não deixam de ser perturbadores. Para por em prática um tal programa, não seria necessária a instauração de um Estado policial feroz como o inspirado pelo mais desvairado progressismo?

Por extremo que seja, esse discurso extrapola o quadro francês e apela a uma franja do eleitorado europeu, crescente após os atentados; entretanto, ao menos por enquanto, seu triunfo ainda pertence ao reino da distopia. Se, por um lado, desacreditou o discurso de esquerda multicultural, que tende a reduzir os problemas da imigração aos econômicos e sociais, em detrimento da cultura, por outro lado, deslocou os critérios de razoabilidade à direita: Marine Le Pen passou a ser quase moderada, logo mais palatável. Quanto a Camus, não é improvável que esse extremismo termine por privá-lo do lugar que seria o seu de direito na história da literatura francesa; o mesmo já ocorreu com um Maurice Barrès. É fácil, entretanto, imaginar a réplica possível de Camus, a de que sua luta política é precisamente para que se preserve na França e na Europa algum senso de História, e alguma Literatura.

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