por Lenio Luiz Streck
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O direito exsurgido do paradigma do Estado Democrático de Direito (forjado a partir do segundo pós-guerra) deve ser compreendido no contexto de uma crescente autonomização, alcançada diante dos fracassos da falta de controle da e sobre a política. A Constituição, nos moldes construídos no interior daquilo que denominamos de constitucionalismo social e compromissório, é, assim, a manifestação desse grau de autonomia do direito, devendo ser entendido como a sua dimensão autônoma em face das outras dimensões com ele intercambiáveis, como, por exemplo, a política, a economia e a moral. Essa autonomização dá-se no contexto histórico do século XX, tendo atingido o seu auge com a elaboração das Constituições do segundo pós-guerra.
Nesse contexto, o princípio abarca vários padrões interpretativos trabalhados pelo direito constitucional, denominados de métodos ou princípios, tais como o da correção funcional (designado por Müller como princípio autônomo que veda que a instância decisória venha a alterar a distribuição constitucionalmente normatizada das funções, nem por intermédio do resultado dela), o respeito à rigidez do texto constitucional (que blinda o direito contra as convicções revolucionárias acerca da infalibilidade do legislador), a preservação da força normativa da Constituição e da máxima efetividade (sentido que dê à Constituição a maior eficácia, como sustentam, por todos, Pérez Luño e Gomes Canotilho). Neste ponto, indubitavelmente temos de lançar mão da tese dos limites semânticos da Constituição, isto é, levemos o texto a sério. É evidente que o texto não se basta; é evidente que texto e norma não são a mesma coisa; mas o texto já fala de alguma coisa, sobre alguma coisa e alguma coisa, assumindo relevância a tese da “legalidade constitucional” de Elias Díaz.
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Trata-se da institucionalização de uma verdadeira blindagem contra os predadores do acentuado grau de autonomia conquistado pelo direito nesta quadra da história. Com efeito, podem ser detectados dois tipos de “predadores” do direito: os endógenos, que funcionam no plano da dogmática jurídica (entendida como senso comum teórico), pelo pamprincipiologismo, pelos embargos declaratórios (instrumentos utilizados para “salvar” decisões mal fundamentadas), pelas teses que relativizam a coisa julgada, pela aposta na discricionariedade judicial (que, no Brasil, não tem maiores diferenças da arbitrariedade), pela aposta no ativismo e nas suas derivações, como o instrumentalismo processual e todas as formas e fórmulas que deslocam o problema da legitimidade da interpretação/aplicação do direito em favor do protagonismo judicial (o que denomino de “interpretação feita pelo sujeito solipsista” — ou por sua vulgata que se forjou no âmbito do senso comum teórico).
Na outra ponta, tem-se os “predadores exógenos”, que funcionam no plano da teoria do direito, podendo ser destacados, tradicionalmente, a inserção (e o uso) da moral como corretiva do direito, a política, pelas constantes reformas que buscam fragilizar direitos fundamentais, e, finalmente, os discursos law and economics, que pretendem colocar o direito a reboque de decisões pragmaticistas (para dizer o mínimo).
Isso quer dizer que a moral e o direito são co-originários. O direito institucionaliza a moral. Portanto, não se deve ceder à tentação de corrigir o direito a partir da razão prática (ou do objetivismo ético ou qualquer forma de axiologismo). Sempre corremos esse risco. O direito é o produto de regras e princípios. Portanto, antes de “lançar mão” da razão prática, deve-se buscar a reconstrução da história institucional da regra e de sua inserção no conjunto principiológico. Não se aplica uma regra sem um ou mais princípios; e não se aplica um princípio sem uma regra.
Assim, mais do que sustentáculo do Estado Democrático de Direito, a preservação do acentuado grau de autonomia conquistado pelo direito é a sua própria condição de possibilidade, unindo, conteudisticamente, a visão interna e a visão externa do direito. É, também, uma “garantia contra o poder contramajoritário” (segundo Guastini, as denominadas “garantias contra o Poder Judiciário”), abarcando o princípio de legalidade na jurisdição (que, no Estado Democrático de Direito, passa a ser o princípio da constitucionalidade). Ou seja, a autonomia deve ser entendida como ordem de validade, representada pela força normativa de um direito produzido democraticamente e que institucionaliza (ess)as outras dimensões com ele intercambiáveis (portanto, a autonomia do direito não emerge apenas na sua perspectiva jurisprudencial, como acentua, v.g., Castanheira Neves — há algo que se coloca como condição de possibilidade ante essa perspectiva jurisprudencial: a Constituição entendida no seu todo principiológico), apontando para a Constituição como fio condutor dessa intermediação, cuja interpretação deve ser controlada hermeneuticamente, evitando-se que o sentido a ser atribuído ao seu texto e ao conjunto normativo infraconstitucional vá além ou fique aquém desse fundamento normativo.
A autonomia do direito, no modo como a abordo, somente pode ser conquistada a partir de uma teoria da decisão judicial que comporte, por sua vez, uma teoria da jurisdição e uma teoria da controvérsia judicial, como bem mostra Dworkin, em Taking rights seriously. Colocando a teoria da decisão judicial como eixo temático, tem-se por instalada uma reflexão concreta, livre das abstrações semânticas que sustentam o positivismo e, ao mesmo tempo, colocada no horizonte correto para que se torne possível encontrar os traços especificamente jurídicos da experiência humana concreta. Autonomia não será, assim, uma autonomia formal, tal como se dava — e ainda se dá — nas fórmulas positivistas, mas uma autonomia material, porque ligada ao mundo prático institucionalizado no texto constitucional.
Por isso, a validade do direito perante a política, a economia e a moral não pode depender de uma jurisprudencialização do direito, isto é, não é a jurisprudência que garante o indispensável grau de autonomia do direito, e, sim, é a autonomia do direito, sustentada em um denso controle hermenêutico, que assegura as possibilidades de a Constituição ter preservada a sua força normativa. Ou seja, não se pode confundir o direito (e suas possibilidades autônomas) com a instância judiciária; e tampouco a política com a lei (vontade geral sem controle).
Na verdade, a autonomia do direito é garantida pela história institucional que conforma a comunidade política. Assim, apenas a reconstrução da cadeia principiológica que estabelece os marcos definidores da moralidade de uma comunidade política é que pode servir de parâmetro sólido para a definição da referida autonomia. De se consignar que essa reconstrução é uma tarefa comum, tanto à legislação quanto à função judicante. No fundo, a afirmação da autonomia do direito significa que as decisões jurídicas devem estar fundadas e solidamente ajustadas aos compromissos fundamentais que guarnecem a política de uma comunidade. Esses compromissos não são ocasionais, não são circunstanciais — são, sim, históricos e, nesse sentido, vinculam as decisões futuras a serem tomadas pelos órgãos que aplicam o direito.
É dentro desse cenário que defendo o direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada.
Este princípio se traduz na garantia de que cada cidadão tenha sua causa julgada a partir da Constituição e de que haja condições para aferir se essa resposta está ou não constitucionalmente adequada. Trata-se de um princípio no sentido adequado do termo, tendo uma relação de estrita dependência com o dever fundamental de justificar as decisões.
Em última análise, o que pretendo referir é que uma decisão judicial que desconsidera uma lei sem fundamentar os motivos, a partir de uma alegação genérica que coloca a Constituição como um artifício retórico para sua não aplicação, será tão arbitrária (porque, no fundo, seu argumento encobre uma decisão solipsista) do que aquela que interpretar o texto legislativo sem qualquer filtragem hermenêutico-constitucional. Nos dois casos, tem-se uma inadequada compreensão sobre o papel da Constituição. Uma decisão, portanto, deve passar pelo filtro desses cinco princípios, devendo ser respondidas as seguintes perguntas:
(1) Está sendo respeitada a autonomia do direito? Essa decisão não está comprometida com argumentos morais, políticos ou econômicos? A decisão está imune aos predadores endógenos e exógenos do direito?
(2) Essa decisão é discricionária? Para chegar a ela, foi efetuada a reconstrução da história institucional da regra a ser aplicada? Essa decisão é arbitrária? Se eu decidi conforme “minha concepção sobre o direito”, essa concepção é coerente com o que vem sendo decidido e o que consta na doutrina? Foi feito um controle hermenêutico da presente decisão?
(3) Essa decisão possui uma consistência articulada? Os argumentos estão integrados ao conjunto do direito? Essa decisão pode ser aplicada a outros casos semelhantes? O princípio que se extrai da holding dessa decisão possui caráter de universalidade?
(4) Essa decisão está devidamente justificada/fundamentada? Todos os argumentos das partes foram enfrentados?
(5) Essa decisão está respeitando o direito fundamental a se ter a melhor resposta a partir do direito, sendo, portanto, uma resposta constitucionalmente adequada? A resposta foi dada com fundamento no direito, entendido, a partir de um conceito interpretativo, como aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas encontram, necessariamente, resposta nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador? Como filtro final — embora esses elementos devam estar presentes em todos os momentos, mormente na indagação acerca da autonomia do direito —, afirmo que o Poder Judiciário somente pode deixar de aplicar uma lei ou dispositivo de lei em seis hipóteses:
(1) quando a lei (o ato normativo) for inconstitucional, caso em que deixará de aplicá-la (controle difuso de constitucionalidade stricto sensu) ou a declarará inconstitucional mediante controle concentrado; as especificidades podem ser encontradas nos respectivos desdobramentos da presente;
(2) quando for o caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias. Nesse caso, há que se ter cuidado com a questão constitucional, pois, v.g., a lex posterioris, que derroga a lex anterioris, pode ser inconstitucional, com o que as antinomias deixam de ser relevantes;
(3) quando aplicar a interpretação conforme a Constituição (verfassungskonforme Auslegung), ocasião em que se torna necessária uma adição de sentido ao artigo de lei para que haja plena conformidade da norma à Constituição. Nesse caso, o texto de lei (entendido na sua “literalidade”) permanecerá intacto. O que muda é o seu sentido, alterado por intermédio de interpretação que o torne adequado à constituição. Trabalhase, nesse ponto, com a relação “texto-norma”. Como poderá ser visto amiúde mais adiante, a interpretação conforme, a nulidade parcial sem redução de texto e as demais sentenças interpretativas são importantes elementos para confirmar a força normativa da Constituição. São sentenças interpretativas e perfeitamente legítimas, quando proferidas sob o império de uma adequada teoria da decisão;
(4) quando aplicar a nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklarung ohne Normtextreduzierung), pela qual permanece a literalidade do dispositivo, sendo alterada apenas a sua incidência, ou seja, ocorre a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de determinada(s) hipótese(s) de aplicação (Anwendungsfalle) do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal. Assim, enquanto, na interpretação conforme, há uma adição de sentido, na nulidade parcial sem redução de texto ocorre uma abdução de sentido (conforme item específico no capítulo em que discuto esses mecanismos de aplicação do direito);
(5) quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto, ocasião em que a exclusão de uma palavra conduz à manutenção da constitucionalidade do dispositivo;
(6) quando — e isso é absolutamente corriqueiro e comum — for o caso de deixar de aplicar uma regra em face de um princípio, entendidos estes não como standards retóricos ou enunciados performativos. Claro que isso somente tem sentido fora de qualquer pamprincipiologismo. É através da aplicação principiológica que será possível a não aplicação da regra a determinado caso (a aplicação principiológica sempre ocorrerá, já que não há regra sem princípio e o princípio só existe a partir de uma regra — pensemos, por exemplo, na regra do furto, que é “suspensa” em casos de “insignificância”).
Fora dessas hipóteses, com grande probabilidade a decisão estará fora dos marcos do Estado Democrático de Direito. Será, pois, arbitrária.
Não faz sentido algum escrever tratados a respeito do direito ao contraditório ou do dever de fundamentar decisões se a decisão é, no final das contas, aquilo que o juiz concluiu, intimamente, que era. O Direito não é aquilo que os juízes dizem que é. Decidir é agir com responsabilidade política. Responsabilidade de meio (não de resultado), de construir a resposta correta a partir da melhor interpretação possível do material jurídico básico (leis, códigos, precedentes etc.) e dos princípios que conformam esse empreendimento coletivo (que remetem, por sua vez, a dimensões da dignidade humana). É uma questão de postura, pois, de atitude, diante de um problema jurídico (e não só moral e não só político e não só econômico). Responsabilidade de aplicar o direito corretamente. Uma questão de princípio: garantir os direitos de quem efetivamente os possui.
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