por Michel Gherman e Ronaldo de Almeida
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Este ensaio é uma parceria do Estado da Arte com o projeto Bolsonarismo: Novo Fascismo Brasileiro, desenvolvido pelo Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP, o Labô.
Em uma investigação multidisciplinar e colaborativa que envolve pesquisadores voluntários de diversas instituições de ensino superior do Brasil, o projeto BNFB pretende unir esforços para compreender o atual estágio da crise da democracia liberal, constitucional e representativa, a ascensão de populismos de extrema direita, a degradação das instituições brasileiras e a ameaça política, social e humanitária representada pelo movimento social e político do bolsonarismo.
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O texto foi produzido como resultado da conferência “Reações religiosas à Covid-19 na América Latina”, em junho de 2020, no contexto da pesquisa do BNFB..
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O genocídio é um fenômeno tipicamente moderno. Não apenas por se basear em um projeto de “limpar o território e destruir os inimigos”, para usar os termos do historiador Omer Bartov. É moderno principalmente por desconsiderar os direitos humanos e civis de populações inteiras. Tais direitos são adventos típicos da modernidade e a sanha genocida se estabelece justamente em sua negação. O dirigente genocida produz a noção de que seus inimigos têm características essenciais e que, por isso, devem ser completamente silenciados e, na melhor das hipóteses, destruídos. No imaginário genocida não há população civil. Há inimigos e aliados. A expansão dos direitos civis é vista como um pesadelo. Na sua gramática, anti-iluminista por excelência, não há espaço para acordos sociais. Não há espaço para direitos, apenas para lealdade e fé. Ou se acredita no genocida ou se é inimigo dele.
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Dentre os coletivos inimigos, há posições políticas, práticas sexuais, origem étnica, enfim, o genocida determina quais as condições para que grupos inteiros sejam adversários. LGBTs, indígenas, esquerdistas, judeus, islâmicos, negros, feministas… No mundo do genocida não cabe a diversidade, a diferença deve ser a inimiga. O Estado existe para ele (“Eu sou a Constituição!”), e os aparelhos de segurança (lícitos e ilícitos) são suas armas.
No contexto da pandemia, temos notado que em quase todos os países do mundo há um discurso de guerra contra a covid-19, inimigo invisível que tem produzido novas articulações sociais. A ciência e os cidadãos devem se unir contra a expansão do vírus, declaram os discursos mais sensatos. Alguns países têm sido mais bem-sucedidos do que outros, mas na grande maioria a noção de bem público e de cidadania ativa perpassa o combate ao novo coronavírus. Não é o que ocorre no Brasil, contudo.
Assim como em outros países, Bolsonaro tem utilizado a linguagem bélica para definir a sua ação na crise sanitária. No discurso, o vírus é um inimigo invisível a ser combatido. Entretanto, na prática, o vírus tem sido o inimigo de quem? Da sociedade, sem dúvidas; mas é de Bolsonaro? A resposta a esta pergunta passa por uma outra: quem são os inimigos do presidente?
Atuando contra a ciência e contra a cidadania, Bolsonaro esforça-se para aumentar o número de mortos. Primeiro negando a gravidade da pandemia (“É apenas uma gripezinha!”), depois negando a dignidade aos mortos (“E daí?”, “Eu não sou coveiro!”) e, finalmente, negando proteção aos vivos como no recente veto à obrigatoriedade do uso de máscaras em locais públicos, tudo em nome da “liberdade individual”. No atual estágio da pandemia (algo que só tende a se agravar), as principais vítimas têm cor e classe, e encontram-se em territórios periféricos. Se o vírus pode levar qualquer um ao óbito indistintamente, as desigualdades sociais expõem alguns mais do que outros.
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E como se não bastasse, Bolsonaro acrescentou posteriormente ao veto a não obrigatoriedade de máscaras também nos presídios. Qual seria a justificativa sanitária ou humanitária para tal requinte de perversidade com os presidiários? Por acaso ele deseja oferecer direito à “liberdade de expressão” aos presos que vivem aglomerados em prolongada quarenta? Seria exagero estabelecer uma correlação deste veto com estratégias de extermínio dos genocídios? “Bandido bom é bandido morto!” é o lema de milicianos que nunca se veem como bandidos.
Bolsonaro funciona como um genocida. O veto recentemente dado pelo governo a leis que exigiam que o Estado disponibilizasse água potável para populações indígenas deixa isso claro. Lutar contra a morte é uma intervenção pouco desejada para Bolsonaro e há populações claramente prioritárias da sua política de genocídio.
Até o momento não há uma campanha publicitária do governo federal para prevenção contra o coronavírus. A não prevenção é decisão política e a imunização do rebanho é a prescrição médica. Em síntese, a morte de muitos é a politica de saúde do governo Bolsonaro (afinal, “Todo mundo morre um dia!”). Desta forma, seu governo trabalha a favor do vírus, não contra ele. Para a covid-19, o presidente do Brasil não é inimigo, mas um aliado com o suporte de um exército de militares… além dos milicianos.
A tentativa de omissão de óbitos do coronavírus pelo general e ministro da saúde revela uma prática histórica dos genocídios. Em relação à pandemia não existe a tal “ala militar” como algo com relativa independência do seu superior, o presidente da República. Militares do Exército Brasileiro tem atuado politicamente ao serem cúmplices na produção em grande escala de um remédio cientificamente definido como ineficaz (a hidroxicloroquina), e os médicos infectologistas são tratados como produtores de pânico coletivo. Repleto de militares na organização e planejamento das ações, o Ministério da Saúde foi ocupado por quem é treinado prioritariamente para produzir mortes. Contradição simbólica maior é difícil de encontrar..
Na distopia bolsonarista, as forças de segurança e principalmente a Polícia Federal devem fidelidade ao líder, não ao Estado. Sendo assim, elas devem seguir apenas suas ordens. Seguindo modelos típicos das milícias nazifascistas, não é a segurança ou a proteção da nação que dirige a atuação das Forças de Segurança, mas são os sonhos e os delírios do “Chefe do Povo” que contam. Em uma articulação perversa, a atuação dos representantes do exército que estão no governo federal nos faz lembrar práticas consolidadas pelas organizações paramilitares típicas dos regimes de exceção. São típicas dos regimes que promoveram genocidas.
Aliados do bolsonarismo devem ser, portanto, entendidos como apoiadores de práticas genocidas. Como outros exércitos em outros casos historicamente conhecidos, eles terão que explicar às futuram gerações porque entre a saúde pública e a ação vírus, decidiram se aliar ao segundo. É necessário entendermos que a derrota desse regime que venera a morte e a doença somente acontecerá quando seus aliados prestarem contas de seus atos. Depois do bolsonarismo será necessária uma desbolsonorização do Brasil. Qualquer semelhança com outros regimes, em outros tempos e lugares, não há de ser mera coincidência.
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