A serpente no ovo: Carl Schmitt e as democracias do século XXI

Influente e controverso, Carl Schmitt — por muitos considerado o Kronjurist do III Reich — parece estar de volta. Seguindo o conselho intelectual de Chantal Mouffe, um ensaio de Juliana Fonseca Pontes sobre Schmitt e suas dimensões, pensando com e contra ele.

por Juliana Fonseca Pontes

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“The evil that men do lives after them.”

Shakespeare, Julius Caesar

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Detalhe de pintura do séc. XIX na qual Brutus vê o fantasma de César

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Carl Schmitt (1888-1985) foi um dos mais influentes e controversos juristas do século XX. Durante a República de Weimar, empreendeu implacável oposição ao liberalismo e ao pluralismo consubstanciados na Constituição alemã de 1919 e advogou uma teoria jurídico-política autoritária no raso e nas profundezas. Em 1933, por meio de um pacto mefistofélico, o jurista se filiou ao Partido Nazista e se tornou, para muitos, o Kronjurist do III Reich.

A despeito (ou em razão) de sua intolerância beligerante, o professor William E. Scheuerman avalia que a obra de Carl Schmitt nunca foi tão popular e que o jurista acumula hoje uma significativa coleção de discípulos.[1] É forçoso subscrevê-lo: as lições schmittianas parecem estar na ponta da língua dos radicais de extrema-direita e seus conceitos já tomaram o debate público, as discussões legislativas e os gabinetes presidenciais. Carl Schmitt é o intelectual da vez — outra vez — e, para enfrentá-lo, é preciso, como Chantal Mouffe sugeriu, pensar com e contra ele.[2]

Uma de suas elaborações teóricas mais problemáticas — e mais populares — entre os reacionários dos dias atuais é a relativa ao conceito de igualdade democrática. Em sua Teoria da Constituição (Verfassunglehre, 1928), Schmitt argumenta que a igualdade possível em democracias é uma de tipo substancial: os integrantes do povo devem constituir um corpo social homogêneo por força do compartilhamento de uma substância comum, referente, por exemplo, à raça, fé ou tradição,[3] que os defina como um agrupamento semelhante em contraposição a outros povos, potencialmente inimigos. A democracia não se estrutura, para ele, sobre uma ficção do direito que reconhece e trata todos os cidadãos “como se fossem iguais”.[4] Diferentemente, é um regime de poder em que, a partir de algum critério objetivo e concreto, os cidadãos são iguais, reproduzem identicamente algum elemento social específico.[5] A igualdade normativa só surgiria em um segundo momento, para formalizar a igualdade entre os já “substancialmente iguais” e para promover seus desdobramentos — igualdade de direitos, igualdade no acesso à cargos públicos, sufrágio universal, serviço militar obrigatório etc.[6]

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Carl Schmitt

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Para Schmitt, o regime democrático, entendido como aquele em que um povo se autogoverna, é verificável na identidade entre governantes e governados, entre dominadores e dominados, entre os que mandam e os que obedecem[7]. Neste ponto, ele e Hans Kelsen, seu nêmesis liberal e positivista, concordam.[8] No entanto, em A crise da democracia parlamentar (Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, 1923), o jurista defende que essa identificação exige que o povo seja homogêneo, caso não seja, que se “elimine ou aniquile o heterogêneo”.[9] Como exemplos, menciona a Turquia que, naquele momento, realizava a repatriação forçada de gregos residentes e promovia a “turquificação” no país — em qualificação sua, “sem concessões” — e a Austrália, que aplicava leis rígidas de imigração e, como observa elogiosamente, só permitia a entrada daqueles que correspondiam ao “right type of settler”.[10]

No mesmo texto, Schmitt tece duras críticas ao parlamentarismo, que considera uma expressão do sistema metafísico liberal, e defende que seu design institucional construído em torno do debate público paralisaria o Estado por promover o fenômeno romântico das “discussões intermináveis” (ewige Gespräch), como caracteriza em Teologia Política (Politishe Teologie).[11] Essas discussões e, no limite, a divergência e o dissenso, seriam consequências forçosas do pluralismo em sociedade que, por sua vez, teria espaço graças ao princípio liberal da igualdade abstrata e normativa — se todos são iguais perante a lei, têm igual direito de viver segundo suas consciências e de ver representadas as suas convicções no Parlamento.

Nesse sentido, liberalismo e democracia são, para Schmitt, inconciliáveis: enquanto o liberalismo exigiria a afirmação primordial da igualdade abstrata — o que franquearia oportunidade para a manifestação da diferença —, a democracia exigiria homogeneidade. Em razão desse suposto descompasso, lhe é inconcebível algo como uma democracia liberal e é nessa esteira que afirma que o fascismo e o bolchevismo, bem como qualquer ditadura, são antiliberais, mas não são antidemocráticos, porque constituem regimes de poder em que a vontade do povo é “educada” para a formação da homogeneidade.[12]

Um regime democrático próximo do ideal, para Schmitt, é um em que o povo, uma vez constituído como grupo social homogêneo livre dos “obstáculos” do pluralismo, tornaria prescindíveis o debate público e o voto secreto. Para tomar decisões, se reuniria publicamente e exerceria seu poder de forma direta, por meio do que o jurista chama de “aclamação” (aclamatio), dizendo “sim” ou “não” ao que lhe é perguntado. Joel Klein explica, em excelente artigo sobre o tema, que o povo também escolheria seu líder por meio desse procedimento de aclamação, de modo que mesmo a partição do poder em Executivo e Legislativo se tornaria desnecessária, tendo em vista que o líder aclamado poderia expressar corretamente a vontade do povo.[13] Schmitt não vislumbra qualquer inadequação teórica necessária entre a constituição ideal das democracias e regimes ditatoriais.[14]

Ademais, Schmitt escreve que uma democracia pode excluir uma parte da população sem deixar de ser democracia, tendo em vista que uma igualdade sempre pressuporia uma desigualdade.[15] A história, para ele, provaria isso: muitos regimes democráticos conviveram com a escravidão ou tiveram como jurisdicionados pessoas com poucos ou quaisquer direitos. Para tornar essa elaboração mais clara, lembro aqui que, em O conceito do político (Der Begriff des Politischen, 1932), Schmitt afirma que o político (das Politischen) diz respeito essencialmente à distinção entre amigos e inimigos e que todos os conceitos políticos possuem um sentido “polêmico”, ou seja, têm em vista a possibilidade concreta da oposição de um grupo de pessoas a outros. Concebe que “termos como Estado, república, sociedade, classe, . . . etc., são incompreensíveis se não se souber quem, in concreto, deve ser posto em causa, combatido, negado e refutado”.[16] Logo, sendo o conceito de igualdade um conceito político, ele também ensejaria a possibilidade da distinção entre sujeitos.[17] Para o alemão, não é possível a afirmação de uma igualdade entre todas as pessoas e nenhuma democracia no mundo teria empreendido essa façanha.[18] Sua teoria iliberal da democracia é uma que tem na exclusão um pressuposto lógico.

Como o leitor deve ter notado, não são silenciosos os ecos dessa retórica no debate público mundial. Líderes de extrema-direita são bastante vocais no seu entendimento da democracia como, na certeira expressão de Scheuerman, uma “política de identidade”,[19] demandando a afirmação de uma homogeneidade substancial entre os cidadãos que permita a sua distinção em relação ao que é estranho ou inimigo. Wendy Brown nota que as políticas neoliberais contemporâneas estimularam a ascensão de discursos extremistas homogeneizantes na Europa, que se deixam intuir pelos seus slogans: “a França para os franceses” (Le Pen e a Frente Nacional), “Recupere o controle” (Brexit), “Nossa cultura, nosso lar” (Alternativa para a Alemanha), “Polônia pura, Polônia branca” (Partido Polonês da Lei e Justiça), “Mantenha a Suécia sueca” (Democratas Suecos).[20]

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‘Não deixemos Soros rir por último’, em outdoor na Hungria

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Nos Estados Unidos, o cenário não é diferente: o filósofo e historiador Jan-Werner Müller, se referindo ao governo de Donald Trump, asseverou que “quem exatamente é excluído e como — sejam mexicanos por meio de um muro ou muçulmanos por de meio uma prova religiosa — pode variar de dia para dia”. [21] Mas alguém há que ser excluído. A América é lugar para os americanos — para os “real Americans”, os “real citizens”. Müller parece ter acertado no seu diagnóstico: o populismo de direita dos dias atuais encontra seu centro gravitacional na rejeição enérgica ao pluralismo.[22]

No Brasil, discursos que parecem apelar a esse tipo de homogeneidade substancial também estão na ordem do dia. A categoria do “cidadão de bem”, folclórica no imaginário moral brasileiro, tem sido evocada para acompanhar argumentos que parecem subscrever Schmitt, quando este diz que “nas democracias, só existem a igualdade dos iguais e a vontade daqueles que pertencem aos iguais”.[23] Para quem engrossa o coro dessa retórica, o grupo homogêneo de pessoas que supostamente constitui o povo brasileiro é definível a partir de critérios objetivos e aqueles que não os preenchem satisfatoriamente ou não merecem ter direitos ou são verdadeiros inimigos nacionais — e, aqui, vale observar que a possibilidade de declaração de uma inimizade intraestatal é concebida por Schmitt em O conceito do político.[24]

A democracia liberal possui latentes deficiências, fragilidades e limitações, umbilicalmente associadas ao modo como o capitalismo organiza e sustenta as estruturas de poder. O raciocínio jurídico liberal, que a acompanha, também apresenta imensas dificuldades como, por exemplo, a de compreender os fenômenos sociais a partir de categorias coletivas, como raça, gênero e classe — que afetam diretamente a experiência da cidadania pelos sujeitos — e, consequentemente, a de aplicar o direito em ativa consideração à arquitetura dos sistemas de subordinação (sobre o tema, recomendo a leitura do ensaio do Professor Filipe Campello A cegueira da justiça, publicado aqui no Estado da Arte, assim como a obra Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica, do professor Adilson Moreira).

Mas se ambos, tanto o design liberal de organização e limitação do poder quanto seu raciocínio jurídico correlato, nos valem de alguma coisa, nos valem precisamente para isto: para dispensar a exigência de termos que reproduzir alguma rubrica concreta para que possamos ser considerados institucional e juridicamente “cidadãos”. Em outras palavras, para nos livrar da ameaça de termos que integrar um bloco social monolítico e homogêneo, a partir de critérios exigidos pela ideologia política que ocupa o poder, para vivermos em sociedade, gozarmos de proteção do direito e sermos contemplados por políticas públicas.

No mais, à essa altura do campeonato, não é possível fingir que não se sabe o que essa retórica de igualdade substantiva é capaz de edificar e, principalmente, o que é capaz de destruir. Todo alarme é insuficiente.

Carl Schmitt está de volta — e não se pode subestimá-lo.

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Carl Schmitt e Ernst Jünger

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Notas:

[1] SCHEUERMAN, William. The End of Law – Carl Schmitt in the Twenty-First Century. Londres/Nova Iorque: Rowman & Littlefield International, 2020, p. ix.

[2] MOUFFE, Chantal. The Challenge of Carl Schmitt. Londres/Nova York: Verso, 1999, p. 6.

[3] SCHMITT, Carl. Teoria de la Constituicíon. Tradução: Francisco Ayala. Madri: Alianza Editorial, 1996, p. 224-225.

[4] Ibidem.

[5] Schmitt concede que o “povo” só existe como sujeito idêntico de forma abstrata e que, na realidade, as massas são sociológica e psicologicamente heterogêneas. No entanto, defende que o esforço, em um regime democrático, deve se dar no sentido de obter homogeneidade, não diferença. SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Tradução Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996, p. 26.

[6] SCHMITT, Carl. Teoria de la Constituicíon. Tradução: Francisco Ayala. Madri: Alianza Editorial, 1996, p. 224-225.

[7] Ibidem, p. 230.

[8] “Democracia significa identidade entre governantes e governados, entre sujeito e objeto do poder, governo do povo sobre o povo”. KELSEN, Hans. A democracia. 2 ed. Tradução: Ivone Castilho Benedetti, Jefferson Luiz Camargo, Marcelo Brandão Cipolla, Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 35.

[9] SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Tradução Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996, p. 10.

[10] Ibidem.

[11] SCHMITT, Carl. Politische Theologie. Berlim: Duncker & Humbolt, 2015, p. 59.

[12] SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Tradução Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996, p. 16.

[13] KLEIN, Joel Thiago. A teoria da democracia de Carl Schmitt. Princípios: Revista de Filosofia (UFRN), v. 16, n. 25, p. 139-156. Set. 2010. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/principios/article/view/444. Acesso em: 19 out 2020.

[14] O jurista não só não acredita existir inadequação teórica entre ditaduras e democracias como defende que “uma Ditadura, em particular, só é possível em bases democráticas, enquanto contradiz os princípios do Estado Liberal de Direito”. SCHMITT, Carl. Teoria de la Constituicíon. Tradução: Francisco Ayala. Madri: Alianza Editorial, 1996, p. 232.

[15] “Uma igualdade que não tivesse outro conteúdo senão a igualdade comum de todos os homens por si próprios seria uma igualdade apolítica, pois lhe faltar o correlato de uma possível desigualdade. Toda igualdade recebe sua significação e sentido por meio do correlato de uma possível desigualdade; e é tanto mais intensa quanto maior é a desigualdade contrastante daqueles que não são iguais. Uma igualdade sem possibilidade de desigualdade, uma igualdade que existe por si mesma e não pode ser perdida, não tem valor e é indiferente”. SCHMITT, Carl. Teoria de la Constituicíon. Tradução: Francisco Ayala. Madri: Alianza Editorial, 1996, p. 224.

[16] SCHMITT, Carl. O conceito do político. Tradução: Alexandre Franco de Sá. Lisboa: Edições 70, 2018, p. 59

[17] “O conceito democrático de igualdade é um conceito político e, como todo conceito político autêntico, deve estar relacionado com a possibilidade de uma distinção”. SCHMITT, Carl. Teoria de la Constituicíon. Tradução: Francisco Ayala. Madri: Alianza Editorial, 1996, p. 224.

[18] SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Tradução Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996, p. 11-12

[19] SCHEUERMAN, William. The End of Law – Carl Schmitt in the Twenty-First Century. Londres/Nova Iorque: Rowman & Littlefield International, 2020, p. 334.

[20] BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Tradução Mario A. Marino e Eduardo Altheman C. Santos. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019, p. 13-14.

[21] MÜLLER, Jan-Werner. Real Citizens. Boston Review. 2016. Disponível em: http://bostonreview.net/politics/jan-werner-muller-populism. Acesso em 13 dez 2020.

[22] A respeito desse argumento, ver MÜLLER, Jan-Werner. What is populism? Pennsylvania: University of Pensylvania Press, 2016.

[23] SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Tradução Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996, p. 16.

[24] “Esta necessidade de uma pacificação intra-estatal conduz, em situações críticas, a que o Estado, enquanto unidade política, enquanto existir, determine a partir de si também o inimigo interno. Daí que em todos os Estados haja, numa forma qualquer, aquilo que o direito do Estado das repúblicas gregas conhecia como declaração de ?o??µo?, e o direito do Estado romano como declaração de hostis, espécie de ostracismo, de banimento, de proscrição, de perseguição, de colocação hors-la-loi, numa palavra, de declaração de inimizade intra-estatal que, mais suave ou mais incisivamente, surgem ipso facto ou atuam com base em leis especiais sob a forma da justiça, que são abertas ou escondidas em circunscrições gerais”. SCHMITT, Carl. O conceito do político. Tradução: Alexandre Franco de Sá. Lisboa: Edições 70, 2018.

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Referências

BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Tradução Mario A. Marino e Eduardo Altheman C. Santos. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.

MOUFFE, Chantal. The Challenge of Carl Schmitt. Londres/Nova York: Verso, 1999.

MÜLLER, Jan-Werner. Real Citizens. Boston Review. 2016. Disponível em: http://bostonreview.net/politics/jan-werner-muller-populism. Acesso em 13 dez 2020.

MÜLLER, Jan-Werner. What is populism? Pennsylvania: University of Pensylvania Press, 2016.

SCHEUERMAN, William. The End of Law – Carl Schmitt in the Twenty-First Century. Londres/Nova Iorque: Rowman & Littlefield International, 2020.

SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Tradução Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996, p. 26.

SCHMITT, Carl. O conceito do político. Tradução: Alexandre Franco de Sá. Lisboa: Edições 70, 2018.

SCHMITT, Carl. Politische Theologie. Berlim: Duncker & Humbolt, 2015.

SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitucíon. Tradução: Francisco Ayala. Madri: Alianza Editorial, 1996.

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