por Mano Ferreira
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“Saber olhar para o espelho e recuperar um senso de decência é condição de possibilidade para que a democracia liberal seja possível e faça sentido por aqui”.
As boas provocações seguem o sentido etimológico da palavra: no lugar de “lacrar” — como está tão em moda nesses tempos —, convocam a nossa voz, ampliando o diálogo. Pois bem. Eu me senti convocado pela leitura da excelente resenha de Twilight of Democracy: The Seductive Lure of Authoritarianism, de Anne Aplpebaum, publicada neste Estado da Arte com autoria do nosso editor Gilberto Morbach.
Precisamos olhar no espelho, com disposição de encarar as nossas rugas e cicatrizes. Não como um exercício de auto penitência, mas de autoaperfeiçoamento. Assumir as fragilidades próprias de nossa individualidade ou grupo social, em vez de sinal de fraqueza ou falta de amor próprio, constitui sobretudo um ato de responsabilidade: a habilidade de responder adequadamente às circunstâncias, condição inseparável da agência humana e, por isso mesmo, da liberdade individual.
Estamos assistindo à consolidação política de um líder populista iliberal e autoritário de extrema direita. Nesse contexto, mais do que nunca, a defesa da democracia liberal exige o exercício concreto de seus princípios basilares: a capacidade reflexiva, a consciência de que nossa tribo — seja ela qual for — está sempre longe da perfeição, a necessidade de coexistência pacífica, o amor à diversidade humana. Para isso, precisamos investigar de que forma as nossas práticas culturais, seja como país, grupo social ou comunidade ideológica, têm favorecido ou prejudicado o exercício desses princípios.
Nessa toada, nunca é demais recordar o alerta de John Stuart Mill em seu clássico Sobre a liberdade: a sociedade tem tendências “para impor . . . as suas próprias ideias e práticas como regras de conduta àqueles que não as seguem, e para restringir o desenvolvimento — e, se possível, impedir a formação — de qualquer individualidade que não esteja em harmonia com os seus costumes, e para forçar todas as personalidades a modelarem-se à imagem da sociedade”.
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Esse impulsivo convite de adesão à homogeneidade (e, portanto, de repulsa às diferenças) parece ser um traço constitutivo da nossa espécie. Não passa incólume nos grupos políticos, mesmo dentro do meio liberal. É a disposição autoritária a que se refere Karen Stenner, destacada por Morbach. Seguindo a provocação inicial, no entanto, mais do que localizar essa disposição em uma parcela restrita da população — como faz Stenner —, acho importante alertar para o risco da fagulha autoritária que habita a todos nós. Uma fagulha que se disfarça e sofistica, mas permanece. A mesma fagulha que nos empurra a denunciar os autoritarismos alheios ao mesmo tempo em que nos cega aos nossos.
Essa forma de contradição não está subordinada a um monopólio de coloração ideológica. No momento, precisamos deter mais atenção sobre o processo em curso de consolidação do bolsonarismo, sob uma liderança política flagrantemente adversária dos direitos humanos e do pluralismo. Mesmo com tais aspectos, esse projeto conta com a adesão — por vezes envergonhada, mas em outras vezes até entusiasmada — de parcela expressiva do movimento liberal brasileiro. Sinal de que precisamos refletir sobre as condições que tornaram isso possível.
Vale um rápido sumário. Se o liberalismo combate a lógica patrimonialista desde o poder familiar baseado no sangue real da monarquia absolutista, o bolsonarismo se ergue em torno de um clã, com inteira confusão entre a família e o Estado. Se o liberalismo é filho do iluminismo, ligado a valorização da razão, da ciência e da cultura, o bolsonarismo adota a ignorância, a teoria conspiratória e o negacionismo. Se o liberalismo legou à civilização o edifício dos direitos humanos; o bolsonarismo cultua o elogio da tortura e da truculência. Se o liberalismo gerou a democracia liberal moderna, com pluralismo, direitos individuais e liberdade de expressão; o bolsonarismo idolatra a ditadura, demoniza a divergência e manipula o debate público com milícias digitais.
Com tantas e tão profundas divergências inconciliáveis em seus mais básicos valores, como podem tantos liberais brasileiros terem, afinal, aderido ao bolsonarismo? A resposta fácil seria simplesmente apontar o dedo para as circunstâncias. Eu poderia elencar em numerosas linhas os traços autoritários do período petista. De fato, assistimos a olho nu a degradação do debate público, reduzido a simplismos binários e tribais. Não importa, por exemplo, se metade da população permanecia obrigada a conviver com o esgoto não tratado pela ausência de saneamento básico, toda crítica era fruto do mais vil inconformismo daqueles que não aguentavam ver pobres andando de avião. O divisionismo fermentou o germe do ressentimento — afeto que está entre os piores conselheiros. Mas parar a análise aqui seria ceder ao conforto daquela fagulha que nos cega diante do espelho.
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Autocrítica liberal
Se, como dizia Ortega y Gasset, somos “nós mesmos e nossas circunstâncias”, precisamos pensar não apenas sobre as circunstâncias, mas também sobre nós mesmos diante delas. Há mais de 10 anos eu contribuo com a construção do ecossistema de organizações que compõem o movimento liberal brasileiro. Não foram poucos os avanços. Se por muito tempo neoliberalismo foi quase exclusivamente um xingamento, hoje há políticos buscando ativamente o rótulo de liberais. Se já fomos um movimento restrito, praticamente composto por pessoas de origem rica e com elevado grau de instrução, hoje os círculos liberais brasileiros possuem muito mais diversidade, seja no perfil sócio-demográfico de seus frequentadores ou nos tons e variedades de tendências ideológicas. É verdade que também há quem se incomode com essas mudanças e trate o crescimento orgânico do movimento como uma espécie de invasão de penetras na festa vip de outros tempos. Mas a diversidade é um caminho sem volta.
Muitas das principais organizações do liberalismo brasileiro de hoje foram criadas durante os anos de petismo. A hostilidade retórica e o desenvolvimentismo catastrófico da Era Mantega com sua marcha pela falência faziam do antipetismo um eixo de aglutinação dos diversos tons de liberalismo. Já a ascensão do bolsonarismo tem movido todo o jogo político brasileiro, abrindo uma fissura cada vez maior entre os liberais. Essa divisão é anterior à eleição de 2018. Basta lembrar da decisão do movimento Livres de deixar o PSL no instante exato em que o partido anunciou a filiação do então pré-candidato Jair Bolsonaro, como ficou estampado na capa da edição de 5 de janeiro de 2018 do Estadão — um registro para a história de que o Brasil da nossa geração também tem liberais que se opuseram ao bolsonarismo desde o seu início.
O registro é sempre importante, mas usá-lo para apontar o dedo para a divergência, denunciar a inconsistência do liberalismo alheio e cantar vitória seria um ato de exibicionismo improdutivo. Uma manifestação do chamado narcisismo das pequenas diferenças, que acha impuro tudo que não é espelho. Claro, aos nossos olhos sempre será tempo de dizer que as diferenças em questão, na verdade, são muitas e gritantes. Mas o fato é que, do ponto de vista político, por maiores que sejam as diversidades internas, o liberalismo no Brasil ainda constitui um campo pequeno demais para se dar ao luxo de brincar de madrasta da Branca de Neve.
A reflexão mais importante deve ser, como já disse, a busca pelos erros que estamos cometendo na formação de nossos quadros, enquanto movimento liberal, para que muitos de nós tenham caído no conto do vigário bolsonarista. Evidente que não pretendo esgotar a questão, mas tão somente apontar um problema e propor uma solução.
Parto de uma hipótese simples e sem grandes inovações: um dos elementos da questão está relacionado ao conhecido fenômeno dos liberais na economia, mas conservadores nos costumes. A bem da verdade, essa classificação é bastante enganosa. Em geral, não se tratam propriamente de conservadores nos costumes, mas de reacionários em todo o resto. Com isso me refiro não apenas às questões comportamentais, mas a aspectos gerais da vida em sociedade. A começar pelo desprezo às instituições fundamentais da democracia liberal, como a liberdade de imprensa, o direito à oposição e o pluralismo político.
Recuperando o filósofo liberal italiano Benedetto Croce, José Guilherme Merquior já chamava atenção, no Brasil dos anos 1980, para a extensão do fenômeno liberista, termo que designa a preocupação com o liberalismo econômico. Para Merquior, na ânsia de combater o estatismo, o vício no Estado que tudo provém, os nossos liberistas desembocavam na estadofobia, a completa negação das funções do Estado. O diagnóstico permanece atual. O radicalismo anti-estado seria criticado até por Ludwig von Mises, autor preferido de muitos liberistas de hoje, que escreveu: “O Liberalismo não é anarquismo, nem tem, absolutamente, nada a ver com anarquismo . . . Se tenho a opinião de que é desaconselhável atribuir ao governo a tarefa de operar ferrovias, hotéis ou minas, não sou mais “inimigo do estado” do que inimigo do ácido sulfúrico, por ser de opinião de que, embora útil em muitas finalidades, não se presta para beber, nem para lavar as mãos”.
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A propósito, acho importante esclarecer que não há oposição necessária entre liberismo e liberalismo. Pelo contrário: o liberismo é, sob todos os aspectos, um fruto do liberalismo. O fenômeno se torna preocupante, no entanto, quando o liberismo se descola do liberalismo. Ou seja: quando a defesa das políticas de livre mercado se desassociam dos demais pilares constitutivos da tradição liberal — em especial, a democracia liberal e a sociedade aberta. Se o texto sem contexto vira pretexto, como diz o ditado, o discurso liberista sem os valores liberais vira basicamente um pretexto para a defesa de interesses econômicos específicos.
Aqui vale um adendo: o uso incoerente do discurso liberista não é também uma novidade gestada pelas organizações do movimento liberal. O Brasil sempre conviveu com o “liberalismo da Fiesp”, que é basicamente a adoção de uma narrativa liberal para vocalizar o desejo de pagar menos impostos, mas sem abrir mão de um subsídio estatal pra chamar de seu, a começar pelas políticas protecionistas de isolacionismo comercial — afinal, sabe como é, o custo Brasil é péssimo para os negócios. Não à toa, a mesma entidade que ergueu o Pato amarelo na Avenida Paulista prestou apoio entusiasmado à Nova Matriz Econômica de Guido Mantega e Dilma Rousseff.
Se o movimento liberal não pode ser acusado de gestar o liberismo incoerente da Fiesp, infelizmente não pode ser isento de uma parcela de responsabilidade da preponderância do liberismo sobre o liberalismo.
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Uma mudança necessária
Entre praticamente todas as organizações liberais brasileiras, o livro mais indicado para a introdução ao pensamento liberal é o mesmo: As Seis Lições, de Ludwig von Mises. A obra é um compilado das transcrições de seis palestras proferidas pelo economista austríaco na cidade de Buenos Aires, na Argentina, em 1958.
As seis lições navegam por eixos importantes da reflexão liberal daquele período: capitalismo, socialismo, intervencionismo, inflação, investimento externo e política. Assim como para muitos liberais brasileiros de hoje, a apresentação panfletária das ideias de Mises foi bastante importante na minha formação ideológica. Isso posto, é preciso sair do modo de reprodução automática e reconhecer as grandes limitações do livro para a função de introdução às ideias liberais no contexto do Brasil de 2020.
A primeira razão é o tempo. O mundo mudou e os desafios do liberalismo se atualizaram profundamente desde 1958. O socialismo deixou de ser o grande adversário do liberalismo desde a queda do muro de Berlim. A inflação não assombra mais tantos países. Outros problemas surgiram.
A segunda razão é temática, de enquadramento. As Seis Lições versam basicamente sobre economia. Se o liberalismo, diferente do liberismo, é muito mais do que uma receita econômica, sua introdução não deve se dar exclusivamente por uma análise econômica. Mesmo o capítulo de Mises dedicado a política e ideias é sobretudo um conjunto de reflexões econômicas sobre a política. Além disso, ele não apresenta propriamente uma introdução ao liberalismo político, com os princípios essenciais da democracia liberal, mas uma crítica excessivamente focada no papel distorcivo dos grupos de pressão no funcionamento da democracia. A crítica permanece válida, claro, mas quando tomada isoladamente antes de uma introdução adequada a outros pressupostos fundamentais do liberalismo político, acaba sendo mal compreendida como uma condenação da democracia liberal que não faz jus ao pensamento do próprio Mises. Em outro livro, Liberalismo segundo a tradição clássica, o expoente austríaco escreveu:
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“A democracia é a forma de constituição política que torna possível a adaptação do governo aos desejos dos governados sem lutas violentas. Se, num estado democrático, o governo não mais se conduz segundo o desejo da maioria da população, não é necessária uma guerra civil para colocar no governo quem deseja governar segundo a maioria. Por meio de eleições e acordos parlamentares, processa-se a mudança de governo de modo suave e sem fricções, sem violência e sem derramamento de sangue”.
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A terceira razão é de coerência interna e possui um desdobramento cultural. Diferente do que pode ocorrer com o marxismo, fazer uma introdução ao liberalismo através da linhagem de pensamento de um único autor é uma contradição performativa. O liberalismo não sobrevive sem a dissonância e a pluralidade. O maior mérito da tradição liberal reside justamente na capacidade de autoaperfeiçoamento constante através do debate de ideias. Por isso, a tentativa de introduzir ideias liberais escolhendo um caminho personalista, sem incorporar o pluralismo, não apenas ignora esse mérito como abre um arriscado caminho ao dogmatismo. Seguindo uma perspectiva coerente com a tradição liberal, não é desejável para o próprio desenvolvimento do pensamento liberal brasileiro que haja uma projeção de referência única e personalista. Como defendia John Stuart Mill, ancorado no maior autor do liberalismo clássico alemão Wilhelm von Humboldt, o desenvolvimento da individualidade humana depende da exposição à variedade de situações. Ou seja: seguindo esse raciocínio, o liberalismo brasileiro será mais robusto e mais bem desenvolvido se for capaz de incorporar, em seu processo de formação de quadros, as mais variadas correntes do pensamento.
Diante disso, mesmo com todas essas razões elencadas, o melhor dos motivos para mudar a porta de entrada às ideias liberais no Brasil é o fato de que já existe uma opção melhor sob todos esses critérios, que é devidamente acessível ao público e também adequada para os nossos tempos: O Chamado da Tribo, livro do escritor peruano Mário Vargas Llosa.
Publicado em 2018, traduzido e lançado no Brasil em 2019, O Chamado da Tribo é uma espécie de autobiografia intelectual, mas também um excelente guia para conhecer o pensamento liberal, com suas diversidades e contradições. No prefácio, Vargas Llosa conta como deixou de ser seduzido pelo charme da revolução cubana a partir da prisão do poeta e revolucionário Heberto Padilla, que chegou a ser vice-ministro de Comércio Exterior de Cuba, mas acabou preso após ousar criticar a política cultural do regime. Na época, Vargas Llosa escreveu um manifesto em defesa de Padilla e acabou virando persona non grata da revolução. O episódio provocou uma profunda revisão de perspectivas e o escritor passou a defender a tríade institucional do liberalismo: a democracia liberal, a economia de mercado e a sociedade aberta.
Vargas Llosa narra essa transição ideológica apresentando 7 autores liberais que lhe influenciaram nesse processo: Adam Smith, pai da economia moderna, mas também o filósofo que pensou o papel dos sentimentos morais na vida em sociedade; José Ortega y Gasset, o escritor espanhol que pensou a desumanização da arte e a liberdade individual na cultura de massas da sociedade industrial; Friedrich August von Hayek, o economista austríaco que tratou das ordens espontâneas, do caminho da servidão e da arrogância fatal dos planejadores centrais; Karl Popper, o filósofo da ciência que usou o rigor do racionalismo crítico para pensar os dilemas da sociedade aberta e seus inimigos; Raymond Aron, o jornalista e sociólogo francês que defendeu a liberdade individual desnudando o ópio dos intelectuais; Isaiah Berlin, o historiador das ideias que sistematizou os conceitos de liberdade e valorizou a tolerância e o pluralismo; e Jean-François Revel, o jornalista francês que cultivou como marca da sua reflexão não o enquadramento da realidade em ideias pré-moldadas, mas a submissão de suas ideias à realidade.
Como não poderia deixar de ser, Vargas Llosa não apenas apresenta o pensamento desses autores, como também os critica, expondo contradições e atualizando insights para os dilemas do liberalismo e da sociedade de hoje. Na esteira de Popper e Berlin, o peruano escreve essa bela síntese do liberalismo democrático:
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“Se não há verdades absolutas e eternas, se a única forma de progredir no campo do saber é errando e corrigindo, todos nós devemos reconhecer que as nossas verdades poderiam não sê-lo e que aquilo que nos parece que são erros dos nossos adversários poderiam ser verdades. Reconhecer essa margem de erro em nós mesmos e de acerto nos outros é pensar que discutindo, dialogando — coexistindo —, há mais possibilidades de identificar o erro e a verdade do que impondo um pensamento oficial único ao qual todos têm que aderir sob pena de castigo ou de descrédito”.
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Por unir abrangência de perspectivas, reflexão sobre desafios do mundo atual e um espírito crítico provocativo, sendo menos um panfleto e mais um convite à reflexão, o Chamado da Tribo é o melhor guia para introduzir o pensamento liberal no século XXI. Incorporá-lo como livro introdutório pelas organizações liberais pode ser uma boa medida para fazer do movimento liberal não um chamado da tribo política, mas um chamado da liberdade.………..
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