Charter Schools: um modelo para a educação pública?

O cientista político e professor do Insper Fernando Schüler relata nesta crônica  uma visita a uma charter school no Harlem, em Nova York, e nos faz refletir sobre os rumos da educação no Brasil.
Alunos da Kipp Infinity, no Harlem (NY): um futuro para gerações de estudantes.

por Fernando Schüler

Desci do metrô na altura da Broadway com a Dr. Martin Luther King Jr Boulevard. Mal passava das sete e meia de uma manhã fria de outono, em Nova Iorque. À saída da estação, não encontro o The New York Times e sim o Daily News, ao lado do “Diário de Mexico”. Ônibus escolares amarelos circulam apressados. O dia começa no Harlem enquanto me dirijo até a KIPP Infinity Midle School, algumas quadras adiante.

A Kipp é uma charter school, escola comunitária, privada, dirigida por uma organização sem fins lucrativos, que recebe estudantes gratuitamente, por sorteio, e é financiada pelo governo de Nova Yorque, além de receber contribuições privadas.

Charter schools são um fenômeno relativamente novo nos Estados Unidos. Criadas há pouco mais de vinte anos, hoje compõem um universo de mais de 6 mil escolas em 42 estados americanos. Trata-se de um novo modelo para a educação pública, semelhante ao das Academies, na Inglaterra, e de certa forma semelhante ao modelo das OSs, utilizadas nas áreas de saúde e cultura, no Estado de São Paulo.

Logo na entrada da escola, leio a frase, que serve como lema, para os estudantes: “No shortcuts, no limits” (sem atalhos, sem limites). Caminhando pelos corredores da escola, me chama atenção o silêncio. Sou acompanhado por Tonia Casarin, do Teachers College, da Columbia University, e Fellow da Fundação Lemann. Tonia trabalhou na escola durante um semestre e me explica que a salas funcionam com portas abertas. Pode-se entrar e acompanhar a aula. É o que faço, algo constrangido, e os alunos sequer me percebem. A sala tem as paredes cobertas de informação. Imagens e frases de estímulo, cartazes feitos pelos alunos, o ranking da classe, com o nível de conhecimento de palavras. No quadro, as regras de participação e organização dos alunos, em aula. A idade média é de 12 anos.

Assisto à Character Class, conduzida por Miss Leyla, jovem professora formada em Harvard. A aula tem apenas 30 minutos, tempo aproveitado rigorosamente. O foco da disciplina é discutir atitudes e comprometimentos éticos. Leyla propõe a discussão, alternando o debate rápido em duplas de estudantes, com a discussão no grande grupo. A cada resposta dada por um aluno, os demais estalam os dedos, no lugar de aplausos, com menor ou maior intensidade, conforme sua avaliação das ideias do colega. A participação é intensa, mas ninguém toma a palavra sem levantar o braço e receber a autorização da professora. Os tópicos são discutidos com objetividade, e sempre quando um aluno termina o seu diálogo mais rápido, com o colega, abre um livro para aproveitar o minuto restante, para ler.

No final da aula, três batidas com a palma das mãos, ritmadas, em uma rápida coreografia. Alguns alunos recolhem as pastas, outros os papéis e anotações, dos demais, e a sala se encontra preparada para a próxima turma. Me retiro. Sigo para conversar com a Principal Allison Holley para entender um pouco mais sobre o funcionamento da escola.

Principal é o nome que se dá, aqui, à diretora ou diretor da escola, e Miss Allison parece perfeitamente confortável na função. Peço que ela me defina seu maior desejo, na gestão da escola. Ela me diz que há muitas metas a cumprir, em especial referentes à ida dos alunos para a universidade. Mas o que define seu sentimento é fazer uma escola na qual ela e seus professores desejem colocar os próprios filhos. Depois eu descobriria que os professores, ou ao menos a maioria deles, de fato colocam os filhos para estudar na escola.

Allison explica que praticamente todos os professores atuam em tempo integral. Os alunos idem. Pergunto se ela considera as charters schools um modelo para a educação pública, ou ao menos uma alternativa ao ensino estatal tradicional. Ela sugere que isto dependerá da região, incluindo-se aí a força das comunidades, o empenho do setor público, e a abertura à inovação. Ela não tem dúvidas de que, em uma cidade como Nova York, o modelo irá prosperar. O mercado é forte, a cidade é inovadora e exigente.

Pergunto sobre a cultura meritocrática que se vê em cada iniciativa da escola. Ela se mostra surpresa com a questão, como se quisesse dizer: como a educação poderia não apostar na meritocracia? A escola criou um sistema de paychecks, espécie de moeda interna, com a qual são premiados os alunos, quando se destacam, pelo seu esforço, em inúmeras atividades, e na qual também são “descontados”, caso cometam uma infração nas regras acordadas entre todos. No final do ano, os alunos que alcançaram a pontuação esperada, participam do passeio anual. Na vitrine do corredor, vejo uma miniatura da Casa Branca, e um pequeno boneco de Barack Obama. Quem cumprir a meta irá até lá, no final do ano, e quem sabe conhecerá um de seus ícones, que estudou, aliás, ali pertinho, quando jovem, na Columbia University.

As regras são simples, claras, bem explicadas e aceitas por todos. São a base de convivência e a senha para a eficiência da aprendizagem. Se um aluno não lê o texto solicitado pelo professor, irá prejudicar o colega ao lado, nos debates em duplas; caso se comporte mal na sala de aula, irá distrair a turma e atrapalhar o andamento da aula, que é essencialmente participativa. A coisa toda soa meio dura, mas no fundo não é. Dura é a vida lá fora, que ele se preparam para enfrentar, aqui dentro. O ambiente da escola é colorido, e tem mais a cara de uma startup californiana, numa grande garagem, do que de um colégio convencional. Há espaço para a criatividade, para o pensamento crítico e expressão dos alunos. O segredo é apenas não confundir criatividade com desorganização.

Talvez a palavra que defina o funcionamento de toda a escola seja “produtividade”. Uma eficiência alegre, autorregulada, que torna o processo de aprendizagem mais rápido e efetivo. A aula começa e termina na hora marcada, não se perde tempo com alunos atrasados ou desorganização na sala, e o material de aula está sempre à mão. A escola reproduz, de certo modo, um traço do mercado de trabalho e da economia americana como um todo, a mais produtiva do planeta.

A conversa se estendeu, como era de se esperar, precisamente pelo tempo originalmente combinado. Na saída, observei que cada sala possuía o nome de uma universidade americana na qual estudou o respectivo professor. Havia a sala Columbia, a sala Cornell, a sala New York University, e assim por diante. Me chamou também a atenção o nome de cada turma. Uma delas era “Classe 2027”. Achei curioso, visto que se tratava de alunos muito jovens, talvez com nove ou dez anos. “É a data prevista para sua formatura na universidade”, me explicou Tonia. A escola não tinha o direito de oferecer àqueles alunos, 90% dos quais negros e latinos, nada menos do que esta perspectiva. E os meios para torná-la realidade. Nesse instante me bateu alguma coisa, não sei bem o quê, e meu pensamento se voltou para o Brasil. E com ele me fui rumo à estação do metrô, na Martin Luther King Boulevard.

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